Fanfics Brasil - FELICIDADE DE VERDADE FELICIDADE DE VERDADE

Fanfic: FELICIDADE DE VERDADE | Tema: CONTOS


Capítulo: FELICIDADE DE VERDADE

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Ela era gorda, baixa, sardenta e dentuça, lembrava muita a Mônica aquela que é “dona” de uma turma. Como se não bastasse, ainda carregava consigo sempre consigo uma bolsa em formato de coelho, mas não era azul e sim branco, quando aparecia de vermelho era motivo para piadinhas. Mas possuía o que qualquer criança gostaria de ter: um pai dono de doceria. Nós sempre aguardávamos a sua chegada, na esperança de sobrar ao menos uma bala, mas nunca acontecia. Tinha o prazer de passar na nossa frente e mostrar os papéis que guardará em sua bolsa após acabar com o doce. Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de dentes no lugar. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha vontade de comer um doce, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a pedir-lhe ao menos uma bala por dia. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía livre acesso ao estabelecimento comercial de seu pai. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela me mostraria a loja toda por dentro. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia esquecido de pedir autorização ao seu pai para levar uma amiga a loja, e que eu voltasse no dia seguinte. Tristonha, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa de ter muitos doces de grátis, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da doceira era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: minha mãe não está em casa hoje, não posso sair sozinha, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: Hoje meu pai não irá abrir a loja. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas você nunca pediu para levar amigos até a loja! E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: Nunca mais faça promessas desse tipo aos seus amigos. E para mim: “Eu mesma te mostrarei a loja e te darei o doce que quiser.” Entendem? Valia mais do que apenas ir à loja: “te darei o doce que quiser” é tudo o que uma pessoa, pequena, pode ter a ousadia de querer. Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim fomos a loja. Acho que eu não disse nada. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Quanto tempo levamos até chegar na loja, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. Chegando na loja, não comecei a percorrer tudo correndo. Fingia que estava fazendo um passeio turístico, como no filme “a fantástica fábrica de chocolate” e a mãe da menina gorda, baixa, sardenta e dentuça era o Willy Wonka, me mostrando e oferecendo tudo. Descobri o que era a felicidade, pensava que a felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia na expectativa. Eu era uma rainha delicada. Sentei-me em um banco, balançando-me com um sorvete na mão e no colo muitas balas, chicletes, pirulitos em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com doces: era uma menina no paraíso.


(Texto baseado no conto Felicidade Clandestina de Clarice Lispector)


(LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1998)



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Autor(a): camilaaraujo

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