Fanfic: Uma nova felicidade clandestina | Tema: Encontro em Wakanda
UMA NOVA FELICIDADE CLANDESTINA
Léo Bastos
Ela era gorda, baixa, negra de pele clara e de cabelos excessivamente cuidados, meio amarronzados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem de Salvador mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “axé” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, negras altinhas, de cabelos empoderados. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. Mas que eu queria muito ler. Amo muito, de maneira toda especial, aquele que tratam da mãe África e da população negra. Isto nos representa.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura egípcia. Como casualmente, informou-me que possuía As histórias de tia Nastácia, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, meus orixás, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. Irei navegar em um mar de livros no barco de tia Nastácia, a quituteira contadeira de história... Devota de Nossa Senhora Aparecida, São Benedito e filha de Iansã conforme o candomblé. É a personificação do sincretismo brasileiro.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, torturada e ferida em minhas expectativas, mas em
breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Salvador. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Estava guiada e guarda pelos meus ancestrais malês, vindos do rei do Mali, os filhos de Alá não aceitaram o julgo português, pois eram livres e soberanos, indomáveis, revoltaram-se... Eles me guardavam por essas ruas de Salvador onde lutaram no passado.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo. Eu queria o livro, queria-o bastante não só ele outros tantos também. Eu me converteria em uma menina devoradora de livros e contadeira de histórias como a tia Nastácia, contudo, histórias em prosa escrita e não falada com ela fazia. Uma menina, mulher negra escritora. Oxalá! Oxalá!
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. A minha dor seria um caso de fantasmas de livros ou de deuses da literatura de alguma mitologia, aí seria um caso para os irmãos Wincherter, de Sobrenatural.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. A peçonha dela escorria... Conseguia ser puro veneno!
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Salvador. Foi então que,finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” E quando quiser outros venha buscar, não se constranja. Emprestá-los-ei com alegria para ti.
Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão, mas estava diferente, havia um brilho distinto e uma bela pantera negra ao lado da tia Nastácia na capa. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, abre-o a ler, de repente, aquele resplendor. Quando dei por mim não estava mais em meu quarto, estava em uma belíssima cidade do reino de Wakanda. Fiquei pasmada, não compreendia como, porém, ao meu lado vi a tia Nastácia, com a Emília de boca cosida com linha branca, finalmente de boca costurada, a fim de que não dissesse besteiras. Mais adiante vejo o próprio rei Tchalla em companhia de Dean e Sam Winchester, os irmãos. Se estar com a Nastácia e Emília, de boca cerrada; já era bom, ao lado dos demais era melhor ainda. Era um encontro da diversidade pra lá de surreal.
Embora parecesse mentira, lá estava eu, em Wakanda, com meu rei herói; pantera negra, em um reino de população negra, com tecnologia avançada e sem desigualdade social gritante. Eu estava em casa, finalmente em casa, em Wakanda e, sobretudo, na mãe África... Sam e Dean eram dois pontos brancos em meio ao demais. Todavia não se importavam, estavam integrados. Era um sonho, meu momento, uma nova felicidade clandestina e real! Não, era uma felicidade em nada clandestina, era legítima como sempre deveria ter sido.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com os seus amantes, em Wakanda, na mãe África, em companhia de tia Nastácia, o rei Tchalla, Sam e Dean e a boca de trapo de pano velho, a saber, a Emília de boca costura com linha branca; como ela merece. Ali era a minha utopia realizada, estava feliz, deverasmente feliz, e aproveitaria cada segundo naquele lugar com aquelas companhias, meu Deus, meus orixás. Eu era pura felicidade, mas em nada clandestina.
(BASTOS, Léo. Texto criado do conto de: LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1998)
Autor(a): leo_bastos
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Uma nova felicidade clandestina II Logo depois que Dandara abriu o livro emprestado pela colega sádica, aquele com uma pantera negra ao lado de Tia Nastácia, ela, os irmãos Winchester e Nastácia com Emília, foram transportadas para Wakanda e o próprio pantera negra, rei T”challa com suas doramilajes vieram ao encontro ...
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