Fanfic: Felicidade Clandestina (Reconto) | Tema: Clarice Lispector
Felicidade Clandestina (Clarisse Lispector) –Reconto
O pai era dono de uma livraria. A mãe, dona de casa. A menina era meio solitária. Não tinha irmãos, não tinha amigos. Não sabia ao certo o motivo de não ter amigos na escola, mas imaginava, toda noite antes de dormir, o que pensavam e o que falavam sobre ela. Imaginava se achavam seu cabelo crespo bonito ou feio, se estava mesmo acima do peso como se enxergava no espelho ou se era apenas coisa da sua cabeça, perguntava-se por que não tinha a mesma altura das outras garotas da sua idade.
Ninguém sabia, mas a livraria do pai era seu refúgio noturno. Quando, às onze da noite, não conseguia relaxar ao fechar os olhos, levantava, pegava a lanterna da gaveta do criado mudo e atravessando a sala de estar, abria a porta devagarinho para não acordar ninguém. A porta dava acesso à livraria, o caminho era tão conhecido pela garota, que só usava mesmo a lanterna para ler os títulos dos livros. No balcão longo esbranquiçado, os cartões postais enfileirados descansavam. Fazia muito tempo que ela não ia a uma festa de aniversário. O motivo? Ela não sabia. Não sabia por que as outras crianças mal a convidavam para as festinhas e agora já não mais a convidavam. Havia feito algo errado? Ou não era boa o suficiente para elas? A única certeza que a garota da livraria tinha era que sua maior paixão eram os livros. Todos os livros daquela livraria na qual havia passado a maior parte da sua infância até então. Naquela noite fria de Novembro, escolheu “Atrás da Porta”, de Ruth Rocha, um dos seus livros favoritos. Aquela história simplesmente a encantava, e não importava quantas vezes a havia lido, era sempre muito bom voltar a ler e se imaginar na biblioteca secreta da casa de Pedrinho.
Acordou com o clique do interruptor da luz. Era a mãe, dizendo que o café da manhã já estava na mesa e que ela precisava se apressar para não chegar atrasada na escola. Não sabia como havia dormido em cima da mesa sobre o livro que escolhera para ler, a história era envolvente demais para sentir qualquer sono. Espreguiçou-se e, com cuidado, colocou o livro de volta na prateleira. Por dentro, torcia com todas as forças para que ele não fosse vendido tão cedo.
Escovou os dentes, tomou banho, vestiu o uniforme e tomou de uma vez só o copo de leite. Correu para o quarto para pegar a mochila e no caminho teve uma ideia maravilhosa: iria levar “Atrás da porta” para ler no intervalo da escola. Atravessou a sala novamente, entrou na livraria e pegou o livro da prateleira. Saiu de casa balançando os cabelos crespos e chupando uma bala, como de costume. Sentia-se feliz, mesmo que ficasse sozinha na hora do intervalo, estaria com seu livro como companheiro inseparável.
A primeira aula era de matemática. A menina da livraria odiava números. Porque não conseguia desenhá-los direito no caderno sem que ficassem tortos, porque todos aqueles zeros não faziam sentido nenhum para ela, porque não eram atraentes como as letras. Resolveu ficar olhando para o quadro e contar os segundos para que o intervalo chegasse logo.
Ouviu seu nome ecoar ao longe, mas era tão longe... Estaria ouvindo coisas? De repente, a ponta de uma régua bateu na sua mesa, e ela então voltou a si. A professora havia perguntado algo e ela não prestou atenção. Olhou para o quadro. Era um problema matemático a ser resolvido. Não fazia ideia por onde começar. Balançou a cabeça, então. “Essa até meu irmão de 5 anos consegue fazer”, disse uma voz fininha lá da primeira fileira da sala de aula. Os risos preencheram a sala em coro. A professora, repreendendo-os, foi interrompida pelo sinal do intervalo.
A menina da livraria, agora sorrindo, nem pensou no lanche, abriu a mochila e procurou o livro com as mãos. De cabeça baixa ao vasculhar a mochila, nem percebeu que duas crianças, uma de tranças pequenas e outra com tranças longas, haviam parado em frente a sua cadeira. “Vai ter um campeonato de corrida dos meninos lá no pátio”, disse uma delas. A menina levantou a cabeça rapidamente. Estariam mesmo duas crianças falando com ela assim tão naturalmente? “Quer vir com a gente?”, disse a criança com tranças longas. Com o livro nas mãos, precisou de um segundo para pensar. Abriu os dedos, soltou o livro dentro da mochila e seguiu as meninas, ainda sem acreditar.
No pátio, a multidão de crianças se organizava para assistir a tal corrida. As duas crianças de tranças gritavam em coro o nome de um dos meninos participantes da corrida, o Bento. As duas puxaram a menina da livraria mais para perto e a incentivaram a gritar também. Quase sem perceber, a menina já estava no mesmo ritmo eufórico das outras crianças, dando pulinhos enquanto entregava-se à torcida. Em toda sua vida, nunca esteve tão conectada à tanta gente ao mesmo tempo. Já havia ficado no meio de multidões, na escola principalmente, mas dessa vez era diferente. De repente, a menina da livraria sentia a mesma felicidade que sentia ao ler os livros de seu pai, mas dessa vez o que a rodeava não eram prateleiras. Sentiu-se ligada àquelas crianças, pelos sorrisos, pelos olhares, pelas vozes todas juntas.
Aquele intervalo havia sido mágico. Tão bom que terminara muito rápido. As crianças voltaram para suas salas de aula, ainda eufóricas, algumas correndo, outras dando pulinhos pelos corredores. A menina da livraria sentou de volta à cadeira, o coração aquecido. Fazia um tempo que não tinha um contato assim com crianças da sua idade. Abriu a mochila novamente, dessa vez para pegar o caderno. Subitamente, sentiu falta de algo. Ali estava seu caderno, estojo, livros. Mas onde estava o livro que trouxera? Tirou todo o material de dentro, sacudiu a mochila, olhou embaixo da cadeira, nos arredores. “Atrás da porta” havia sumido. Pior, um de seus colegas havia o roubado. Este pensamento lhe pegou de surpresa. Ela sabia que não era amada pelos colegas, sabia que não tinha amigos, mas não imaginava que alguém pudesse roubar algo dela, ainda mais um livro, seu livro favorito.
A menina da livraria que já era meio muda, ficou sem palavras. A decepção estampava no rosto e as lágrimas desciam enquanto piscava os olhos. A professora, que acabara de chegar na sala, percebeu a estranheza no ambiente. “O que houve, mocinha?”, perguntou. A menina conseguiu explicar entre soluços. A professora informou a turma que todas as mochilas seriam revistadas. A classe toda ficou em silêncio. A menina sentiu-se estranha. A classe estava em silêncio por causa dela. A professora começou com a primeira fileira e, não encontrando o livro passou para a segunda. Devido à pressão, talvez, um garoto da última fileira veio andando em direção à menina com o livro na mão. Estava meio amassado, mas inteiro. A professora lançou um olhar de reprovação e o levou para a diretoria, onde seria punido pelo que havia feito.
Era a primeira vez que a classe via a menina da livraria chorando. As duas crianças com quem ela havia passado o intervalo aproximaram-se. “Não chora”, disse uma delas. A menina sentiu cócegas no coração ao ouvir aquelas duas palavras. Até sorriu.
“Sobre o que é o livro?”, perguntou outra garota sentada no meio da sala. A menina explicou que era sobre umas crianças que encontravam uma biblioteca secreta. “Conta pra gente”, disse outra criança, e várias outras repetiram a mesma frase. A menina olhou em volta. As crianças queriam que ela contasse a história enquanto a professora não voltava.
E ela contou. Calma e delicadamente, sua voz doce estendeu-se à sala toda, que ouvia com atenção. A menina empolgou-se, usou as palavras que melhor encaixavam em cada parte da história. Sentiu-se, pela primeira vez, bem-vinda naquela sala de aula. Ao terminar, todos aplaudiram, até a professora, que havia chegado da diretoria. Sorrindo, a menina fechou o livro e ouviu um “Conta outra história amanhã, por favor”. Aquela era a frase mais linda que já ouvira na vida. Além disso, foi repetida por quase todos os colegas.
Ela sabia, lá no fundo, que a partir daquele dia sua vida mudaria, pois ela havia começado a compartilhar com o mundo algo que era especial e só dela, a sua leitura.
Autor(a): ptgletras2019
Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).
Loading...
Autor(a) ainda não publicou o próximo capítulo