Fanfic: A Busca Incessante | Tema: Felicidade Clandestina de Clarice Lispector
Ela tinha a pele negra, estatura baixa, cabelos cacheados e curtos, uma voz estridente, com um rosto cansado por conta da idade e um olhar depreciativo. Era assim que podíamos definir a aparência da principal bibliotecária que governava aquele cômodo que era adorado pelos demais alunos da escola.
As conversas que tínhamos com ela eram sempre curtas, mas sempre acompanhadas com um sorriso amarelo e falso. Pouco se importava com o que os leitores buscavam naquele lugar, e para poupar-se de diálogos, ela criou um catálogo que continha uma diversidade enorme de: livros, histórias em quadrinhos, bibliografias, dicionários, revistas e muitos outros tipos de encadernados.
Ela adorava reclamar da presença dos alunos e a barulheira que eles traziam, parecia que isso fazia parte da sua diversão diária. E sempre que pegávamos livros com ela, recebíamos seu desdém junto a obra, mas pouco nos importávamos, a nossa ansiosidade perante a fome pela leitura era maior do que a preocupação que sentíamos ao ouvirmos as ofensas que ela praguejava.
Eis que um dia, em uma busca pelo livro ideal em seu catálogo, encontrei um dos livros que eu mais tinha curiosidade em ler, o famoso Fantasma da Opera, de Gaston Leroux. Cuja minha paixão se iniciou após ver o filme de 2004 junto a minha mãe e descobrir que havia até peça de teatro sobre essa história.
Não era um livro muito grosso, mas em sua capa havia a icônica máscara de Erik estampada nela, ao admirá-lo eu consegui relembrar de tudo o que havia visto naquele filme em minha infância. Era meu sonho de consumo. E como vivia em uma família que mal tinha condições de pagar pelo meu ensino, me sentia mal em pedir para que gastassem em coisas para o meu próprio lazer.
Ao indagar a senhora sobre o livro, ela me mostrou que no momento estava em sua posse, e que eu não poderia pegá-lo. Mal eu sabia que aquele era o seu livro favorito e que raras eram as pessoas que conseguiam tê-lo em suas mãos.
Após encher a bibliotecária de perguntas sobre o bendito livro, ela indicou que eu buscasse o livro ao final daquela semana. E foi a partir daquele momento que eu poderia definir para qualquer um que me indagasse o que era o significado de felicidade.
A partir desse dia me tornei uma visitante assídua daquele lugar, não me contentava em esperar pelo fim da semana, ia todo santo dia para ver se poderia pegar antes da data, e ela sempre dizia que ainda não havia terminado e que eu deveria esperar um pouco mais.
Mas foram se passando dias, semanas, meses, talvez até um ano. Eu não me importava com o tempo que eu tinha gasto, eu não me cansava: guiava-me na esperança de conseguir tê-lo em minhas mãos. De finalmente ler a obra em sua forma mais completa e pura, não encurtada como podíamos ver no filme.
Mal eu sabia que aquele era um simples plano para me infernizar, durante todo esse tempo ela já o tinha lido inúmeras vezes, mas não queria dar o braço a torcer.
Até que um dia, após perceber aquele meu descontentamento diário, sua ajudante veio em minha direção. Ela também era uma senhora baixinha, tinha cabelos tingidos em ruivo, usava óculos bem grandes para o tamanho de seu rosto, rugas por todos os cantos e bochechas bem cheias. Com um sorriso, me indagou sobre o porquê de eu estar todo dia lá e nunca sair com os livros em mãos, e com lágrimas em meus olhos, respondi sobre meu dilema.
Com seu sorriso se desfazendo em um olhar de dúvida, ela me disse calmamente que a cópia do livro que havia na escola ainda estava na estante, e a outra cópia que a outra mulher sempre carregava, era o que ela trazia de sua casa para ler em seu tempo livre. A bibliotecária maldosa, ao perceber que estava sendo desmascarada, fingiu que nada havia acontecido, enquanto a bondosa entregava em minhas mãos o livro pelo qual eu buscava sem cessar.
Aquele momento, para mim, foi como se os portões dos céus tivessem aberto na minha frente, o tempo que eu gastei para pegá-lo não me importava mais, toda a crueldade que a mim foi infringida nem me atingia mais. E como se ainda fosse possível me deixar mais alegre do que eu me encontrava, a senhora ruiva disse alegremente que eu teria um prazo maior para ler pelo meu esforço contínuo. Mal podia acreditar naquelas palavras que foram proferidas.
Coloquei-o junto ao meu peito, emocionada, enquanto agradecia a senhora pela generosidade e depois me voltei para a outra e a agradeci também, por que se não fosse por ela, eu não perceberia o tamanho da felicidade que um pequeno aglomerado de papel poderia trazer a uma pessoa.
Enquanto me direcionava a saída, pude ver pelos cantos dos meus olhos a cruel mulher se enrubescer de raiva, já que todo seu esforço em me atormentar foi jogado por água a baixo.
Durante todo o trajeto para casa eu me peguei saltitando em comemoração por finalmente ter conseguido o que tanto desejava. Aquela sensação de enfim segurá-lo era única. Chegando em casa o coloquei em cima do meu criado mudo, para que pudesse vislumbrá-lo sempre que acordasse e saísse para estudar.
Me pegava lendo-o em todos os lugares que podia: quando acompanhava minha mãe em seu trabalho, na cozinha de nossa casa enquanto me preparava pra escola, na sala enquanto meus pais assistiam a um filme, no meu quarto antes de dormir e até mesmo no banheiro para que não ouvisse mais minha mãe reclamando que o levava para todos os cantos.
Cada dia que se passava, eu fazia questão de ler um capítulo, para que eu pudesse reler até a data final de sua devolução.
E quando percebi, me vi tendo a mesma mentalidade de Clarice Lispector em seu livro Felicidade Clandestina, em que ela diz: “Quando me dei conta, eu não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.”
Autor(a): lizas
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