Fanfic: O caso do livro | Tema: Clarice Lispector
Eu via como elas me olhavam e se entreolhavam, com risinhos abafados, levando as mãos a boca. “Olha”, diziam elas, “a gordinha sardenta”, como se não bastasse, faziam gestos com as mãos na frente dos bustos, apontando para os meus seios que realmente eram muito desenvolvidos para nossa idade. Eu sei que o que as movia era inveja. Inveja dos olhares que os meninos me davam, inveja porque meus pais eram ricos e donos da maior livraria da região.
Pouco me importava, eu dizia pra mim mesma, eu me vingaria do jeito que podia. Minha mãe sempre fazia questão de que eu presenteasse meus colegas de classe na ocasião de seus aniversários. Por que você não dá uma caixa de lápis de cor, ou um livro, desses mais baratinhos, dizia ela. Ah! Mas não! De mim elas só teriam um cartão postal e desses com a paisagem comum do Recife mesmo. Ou elas se achavam merecedoras de um Cristo Redentor ou do Pão de açúcar? Não mesmo!
Elas me achavam cruel, julgavam que eu as odiava, por serem magrinhas, esguias, educadinhas. Entre elas, havia uma que me chamava a atenção. Era realmente bonita, de cabelos loiros e longos, com lindos olhos azuis, longas pernas. Pernas que pertenciam a uma bailarina de balé clássico!
Mas não eram seus dotes físicos que me aguçaram a curiosidade e sim o fato de que toda vez que eu tirava de minha mochila, alguns livros que trazia de casa, não os livros didáticos mas alguns livros de coleção que eu ganhava de meu pai, ela se debruçava em sua carteira para ver os livros e percebi que os olhos brilhavam de desejo de tocar nos livros. Percebi que ela amava livros, e foi aí que me nasceu uma ideia, como qual nasce uma sementinha, devagar, foi criando raízes em mim até que despontou e já não cabia em mim.
Perguntei se ela gostava de ler, e ela meio tímida, meio assustada por eu ter lhe falado, me respondeu que sim que era uma devoradora de histórias. Naquele momento senti que poderia me tornar sua amiga, seria uma amizade nascida do amor por livros. Ia lhe sugerir que fosse a minha casa para que escolhesse os livros que mais gostasse, quando um grupinho de suas amigas magricelas chegaram junto dela, já todas cheias de desprezo me olhando de alto a baixo. Pois então, Helena, que fazes sentada com a sardenta,disse uma delas, pensas que ela gosta de ler? Que nada! Traz os livros só pra esfregar em nossa cara que o pai é dono de livraria! Anda, vamos, que já estamos atrasadas para o ensaio de ginástica! E a Helena meio sem graça se levantou e foi com elas. Covarde! Teria de mim,aquilo que de mim esperava! Assim que eu lhe emprestava alguns livros de vez em quando e em troca ela fazia minhas lições de casa. Não que eu não soubesse fazê-las mas só pelo fato de que me dava prazer essa pequena crueldade. E o que mais me fascinava é que ela se submetia aos meus caprichos!
Um magno dia, como quem não quer nada, lhe informei que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Perguntei se ela já havia lido, sabia muito bem que não. Era um livro grosso de capa dura, caro, muito acima das suas posses, mas queria ver lhe a reação. Vá lá em casa amanhã, disse-lhe , que eu te empresto. Sentia-me como a bruxa do conto de fadas de João e Maria, oferecendo doces para aquela princesa, tecendo minha teia de vingança.
Fiquei a noite, imaginando a alegria que esse convite teria produzido nela. Quase podia imaginá-la, com aquela face de anjo, inocente, contando a sua mãe a novidade. Talvez nem tenha dormido.
No dia seguinte, lá estava ela a porta, com um olhar que era pura expectativa, como se o mundo fosse um lugar melhor apenas por possuir uma obra daquelas! Tive até um momento de dúvida, pensei até em deixar de lado aquela ideia mesquinha de vingança. Ia lhe convidar para entrar e com certeza sem a má influência daquelas suas amigas, ela iria aceitar e seria o começo de uma aproximação. Cheguei a afastar a porta, quando ela estendeu as mãos e perguntou se podia ter o livro. Então era assim, pensei enfurecida. Não ,um, boa tarde, ou como está você, qualquer coisa! Não, para ela só interessava o livro! Eu era ninguem, ela nao tinha nenhum desejo de amizade, ela queria o livro e eu tinha o livro. Fui então possuída de um sentimento forte de raiva que como fel se alastrou pelo meu corpo todo. Não teria mais piedade, exerceria nela uma vingança sem misericórdia! Olhei bem para aqueles olhos azuis e bem tranquila, com um olhar de inocência e disse que o livro não estava comigo, que papai havia esquecido de trazer da loja como eu lhe tinha implorado. Mas volte amanhã, que terei o livro comigo sem falta, lhe disse eu. Ela meio que demorou uns segundos para registrar a resposta e assim como que desapontada, disse que sim que voltaria amanhã.
E assim foi que, diariamente, ela vinha a minha porta e eu inventava as mais diversas mentiras,sempre com um ar tão inocente, tão cheio de boa vontade! Ah, que pena, se você tivesse chegado um pouquinho mais cedo! Fulana esteve aqui e eu lhe emprestei o livro! Disse-lhe eu certa vez e confesso que sentia um prazer imenso ao vê-la, com aquele olhar de espanto, boquiaberta, em perceber que eu na verdade estava mentindo. Mas ela voltava e voltava, na esperança, mesmo que pequena de que um dia teria aquele livro em suas mãos.
Até que um dia, quando ela estava à minha porta, ouvindo mais uma de minhas recusas, minha mãe apareceu e me perguntou a razão do que estava acontecendo. E foi assim que , em meio a explicações minhas que não faziam muito sentido e que ela nao achou nem um pouco convincente, é que ela compreendeu o que estava acontecendo e olhando horrorizada , mandou que eu fosse já pegar o livro que ela sabia muito bem, nunca havia deixado o lugar na estante. Trouxe-lhe o livro e ela se refazendo da sua indignação para comigo, pegou o livro de minha mão e o entregou para a menina à frente dela que para ela parecia um pouco assustada, cansada das idas e vindas das ruas empoeiradas do Recife. Pode ficar o tempo que você quiser com ele, minha mãe disse a ela, o tempo que quiser. E minha mãe virando-se para mim, me indicou com os olhos que não estávamos terminadas com aquele assunto e que meu pai provavelmente seria envolvido nisso, eu não tinha dúvida.
Como explicar minhas ações? Sem dúvida minha mãe estava desapontada, com certeza agora me considerava uma pessoa cruel, e talvez eu tenha agido com perversidade para com aquela menina. No começo, com certeza meu desejo era pura vingança pela forma como ela me tratava ou deixava que me tratassem mas depois eu quase que era levada por esse impulso de que eu deveria ensinar à aquela menina um lição. Eu tinha a noção de que um dia ela iria se rebelar com aquela situação de humilhação e que ela exigiria de mim o livro e então eu lhe entregaria o livro de bom grado. Era isso, sentia-me agora até injustiçada, incompreendida no meu desejo de ajudar.
Fiquei a pensar naquela garota que tanto me fascinava. Imaginei-a a olhar para aquele livro, objeto tão desejado por ela. Via-a acariciá-lo, abri-lo para logo então fecha-lo, prolongando o prazer que teria em lê-lo. Para aquela menina ter algo que ela desejava, justificava toda a agonia para possuí-lo, era assim como uma felicidade clandestina.
Autor(a): ludvsrocha
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