Fanfics Brasil - HERANÇA E SAUDADE. Felicidade Clandestina

Fanfic: Felicidade Clandestina | Tema: Letras


Capítulo: HERANÇA E SAUDADE.

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Ela era alta, linda, de cabelos excessivamente lisos, muito negros. Tinha bustos já desenvolvidos, enquanto todos nós ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, era muito generosa. Comprava balas com parte de sua mesada, assim como também seu lanche, conosco compartilhava. Além disso, possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.


       Era muito proveitoso. Mas para nós, ainda não era. Já que não tínhamos recursos para adquirir exemplares e livros ainda que baratos, nem tínhamos o gosto por suas histórias, pela distância que tinha com aquela cultura que ela tinha tão perto. Além dos lanches que recebíamos e as balas que ela distribuía, sonhávamos com brinquedos e diversões, roupas bonitas e pulseiras, ignorando os livros que ela devorava.


        Mas que talento tinha pra nos conquistar. Ela era toda simpatia. Como essa menina devia se importar comigo, eu que era tão tímida, feia, magrela e sem graça, auto estima baixa, resultado dos massacres e dificuldades da vida e pelas humilhações que as circunstâncias me submetia? não me sentia digna de muita coisa, a última da fila.


        Até que veio para ela o magno dia de começar comigo uma influência bendita, pois me convidou para ir à sua casa. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. Pensei em seus luxos e diversões, caprichos e vaidades, tudo que uma pessoa de posse poderia querer ostentar e que agora iria me apresentar, como seus aposentos luxuosos, seu quarto com cortinas de seda, seus estojos de maquiagens, suas coleções de brincos e suas roupas de festa. Eu me sentia privilegiada em poder conhecer seu mundo, embora sem graça, por não pertencer àquela classe.


       No dia seguinte, fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa linda casa. Logo me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que me mostraria o que tinha de mais precioso. Meus olhos brilharam e eu me sentia nas nuvens diante da possibilidade de conhecer o que uma menina rica poderia considerar precioso, e é claro, estava boquiaberta esperando conhecer todo seu luxo e ostentação.


         Ela me levou pra uma sala simples e pouco decorada, contudo, muito iluminada. Eu pensei que fôssemos a outro lugar, mas ela parou diante de uma estante de livros, era a sala de leitura. Tinha livros de todas cores e tamanhos, deitados e em pé. Foi direto ao que estava fora da arrumação. Era um livro grosso, que abraçando ao peito, disse ser o mais recente que possuía, As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Pra mim, não tinha muito significado, pois não conseguiria ler aquele volume tão grande, e imaginava como alguém com tanto dinheiro poderia me chamar para mostrar apenas livros.


        Mas não ficou simplesmente nisso. Depois de andarmos por toda a casa e fazermos um lanche, ela se propôs a ler comigo algumas páginas do livro. Na verdade, eu queria participar de seu mundo, e se o mais precioso eram os livros, isso seria também importante pra mim. Mergulhei na história enquanto ela lia, e sonhava com situações mágicas de um imaginário inspirador. As horas voaram e eu precisava voltar pra casa.


        Me ofereceu um livro pequeno, pra que eu devolvesse quando terminasse de ler. Pensando na possibilidade de voltar à sua casa, aceitei o livro, pois queria lê-lo o mais rápido possível, para estar novamente ali.


        Saí pela porta devagar, mas a esperança de voltar me tomava, e começava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas rua de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a alegria de estar entrando numa realidade que não conhecia, e a possibilidade de retornar e reviver aqueles momentos de sonhos, naquele lugar especial.


        Devorei o livro, viajei na história! Comecei a entender por que ela gostava tanto de livros. No dia seguinte, estava disposta a voltar e quem sabe, pegar mais um livro emprestado. É claro que deveria ser um bem fininho, pois ficaria mais fácil acabar, para mais rápido voltar.


        No dia seguinte, voltei. Sua mãe me atendeu à porta, e gentilmente me deixou entrar. Ela estava na sala de leitura, e ao me ver, veio me abraçar. –Vim entregar o seu livro, -disse eu tentando disfarçar –Não precisava essa pressa, -respondeu, me levando a sentar. Depois de servir-nos um lanche, sua mãe nos deixou às leituras, às conversas e passeios pela casa, à Clarisse Lispector, a Monteiro Lobato. Saí com mais um livro, mais vontade de ler, mais vontade de voltar.


       Muitas vezes voltei, pois estava apaixonada! Era isso que eu queria: me ensinou a viajar, me ensinou a imaginar, me ensinou a sonhar! Estava disposta até a devorar volumes bem maiores, e até reescrever com novas versões suas histórias. Quem sabe, criar novas aventuras ou narrar contos imaginários. Começava até a ensaiar situações possíveis e impossíveis para a composição de uma obra.


    Naquela última vez, emprestou o mais desejado: As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Li com calma suas linhas maravilhosas, como demorei! Vivenciei um êxtase puríssimo! Eu havia mudado, ela havia me mudado. Ou o livro havia me mudado.


      Demorei um pouco mais a retornar, pois o livro era maior. Ao bater em sua porta, demoraram a atender, e com os olhos inchados, sua mãe apareceu, me olhou com ternura, me abraçou e disse: -Entre, minha filha, não sabe o que aconteceu? Depois de um terrível acidente, ela não sobreviveu. Agora só resta saudade, quanto ao livro ele é seu.


A partir daquele dia, não era mais uma menina com um livro: era uma  lher com sua herança, uma sonhadora, com saudade.


 



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Autor(a): israel_lima

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