Fanfics Brasil - Clan(destino) Clan(destino)

Fanfic: Clan(destino) | Tema: Fanfic feita sobre o conto "Felicidade Clandestina", de Clarice Lispector, com a finalidade de um tr


Capítulo: Clan(destino)

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            Sabe-se lá o ventre de que nasci. Só sei de uma coisa: eu, Manu, fui adotada pelas palavras. Meu abrigo tinha nome de romances, contos, poemas. Meus endereços eram outros quase toda semana, e olha que nem mala, nem caixa eu tinha de arrumar. Me chamavam de órfã; falavam, às escondidas, com uma compaixão quase teatral, que eu tinha sido esquecida em uma lata de lixo. Eu ouvia isso e pensava “ora, ninguém esquece nada no lixo. Lixo é ponto final”. Bem, se meu histórico falava por mim, podia muito bem pensar que fui lembrada. Aliás, fui encontrada, e sei por quem: pelo bicho-homem, do Manuel Bandeira, que revira os lixos e engole os lixos. Depois vim parar aqui, nessa casa de passagem, que de passagem mesmo só o tempo, que força o girar dos ponteiros tão devagarzinho que faz a gente ter a ilusão de que a vida é demorada, e não é. Olho pela janela e comprovo. O mundo corre de um lado pro outro. Sinto uma angústia, não aquela típica de criança órfã que anseia por uma família, não; sinto o pesar da certeza de que não terei vida suficiente para me abrigar em todos os livros. Daí torno a olhar para o tic-tac baixinho, mas o tempo se denuncia em meu corpo, roubando minhas medidas, pesando meus seios, sangrando minhas estações. Não tenho para onde correr, o destino é um beco sem saída. Ou nem tanto. Quando entrei pela primeira vez na livraria Littera, senti que poderia pular o muro daquele beco e dar no pé. Havia inaugurado há três dias, o salão cheirava a novo. Eu tinha no bolso as moedas do picolé, insuficientes até para um livreto de cordel. Aquele lugar que chamavam de parque de diversões? Um paraíso a dois quarteirões do orfanato. Fundaram, ali, um sonho meu; sonho que sequer sonhei, eu acho. Descubro, por um acaso, que a Tati da minha turma é filha do dono. A menina mais desinteressada do planeta. Que não faz a própria cola da prova; tem de pedir aos outros. Que raiva eu passei a sentir da Tati. Tinha pai. Um pai livreiro. Uma livraria como herança. Soube que quando era mais nova, a mãe lia para ela toda noite antes de dormir. E ela dormia! Não se faz esse tipo de desfeita. Outro dia a professora perguntou “qual o seu livro de cabeceira?”. Ela não sabia o que era cabeceira. Nem o “Pequeno Príncipe”, livro clichê toda vida, ela conhecia. Parava na banca de jornal só para comprar bombom. Não tinha nem a bendita curiosidade de ler o recadinho impresso no embrulho do bombom. Que criança odiosa. Não puxou mesmo ao pai, o Seu Mauro, um sujeito grandalhão de coração compatível com a estatura. Me conduziu por todo espaço, me apontou os clássicos que eu ainda não conhecia. “Você é amiga da Tati, não é?”, e, para que deus se afeiçoasse a mim, menti, claro.


– Somos como unha e carne.


Passei a visitar a livraria diariamente, sempre após a escola. Amava cheirar os livros, tocar os livros; sentir o pulsar de cada um deles em minhas mãos. As letras pulsam histórias que se eternizam. E fui avançando em minhas investidas. Quando abracei as “Reinações de Narizinho”, discretamente me embrenhei em um ponto cego da livraria, totalmente cercado por estantes, e pus-me a ler. Como era gostoso viver no sítio, saborear os quitutes da Tia Nastácia, ouvir os causos da vó Benta... flertar com o Pedrinho, por que não? Pra não dar bandeira, lia dez páginas por dia. Uma felicidade ardida percorria minhas veias, e faziam minhas pernas formigarem de desejo de correr até a livraria. E eu corria! Lá, no fundo, eu sabia que estava cometendo um pequeno delito, e isso me excitava ainda mais. Prometi defronte ao espelho que, nessa vida, meu único roubo seria o das palavras. Mal sabia eu que elas é que me sequestravam.


Certa feita, quando já emendava o terceiro livro sem pagar, deparo com Tati, de braços cruzados e careta de bruxa. Disse que contaria tudinho ao pai. O que essa maria-ninguém estava fazendo ali, afinal? Não tive tempo para questionamentos. Fui obrigada a negociar, em nome da minha felicidade clandestina. Disse que se ela me dedurasse, que poderia se esquecer das minhas colas. Tati apertou minha mão mais do que ligeira, como se já estivesse esperando por essa proposta. Como é odiosa!


            Depois de dois meses frequentando assiduamente, tomo um susto ao dar de cara com uma confortável poltrona bem ali, no meu ponto cego que pelo visto não era tão cego assim. Sobre a poltrona, uma carta.


“Querida Manu,


Acomode-se, você conquistou essa poltrona. Mas não sirva aos acomodados, os que ignoram o passar do tempo e se acomodam na vida.  Não seja a poltrona deles. Permita que eles busquem o conhecimento com as próprias pernas. Permita que eles conquistem suas confortáveis poltronas, assim como você o fez. A vida não dá nada de presente: ela só retribui.              


Com carinho, Mauro”.


Com os olhos marejados, me sentei timidamente na poltrona. Não sabia ao certo se tal conquista podia ser considerada justa. Fora isso, entendi o recado do Seu Mauro. Estava nas entrelinhas, no invisível que somente um leitor mais treinado e sensível é capaz de enxergar.


Ao final do dia, troquei um olhar com Seu Mauro; um acordo tácito foi firmado ali. Um acordo nobre, de confiança. Ele rachou um sorriso e eu, em minha silente gratidão, acenei um tchau meteórico e saí arfante da livraria. Naquele momento, pela primeira vez, me senti amparada por uma família. Além das palavras, que nunca se esqueceram de mim em canto algum desse mundo, agora também havia um olhar paterno, que me transmitia segurança, expandia meus horizontes, compreendia meus anseios, e me abraçava mesmo sem me abraçar. Um pai, cujo gesto fez com que eu sentisse que a sua casa era a minha casa. Um gesto que me deu de presente um lar. Ou melhor, me retribuiu um lar. Nosso destino acontece aonde a gente faz com que ele aconteça. Mesmo que nos recôncavos, nas entrelinhas, nos pontos cegos. Agora eu não era mais uma simples menina adotada pelas palavras: era filha de um pai, irmã de páginas imortais, e, de quebra, ainda tinha uma poltrona super relaxante.


 



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Autor(a): ilcemar_aldea

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