Fanfics Brasil - A Bela A Bela Menina Má

Fanfic: A Bela Menina Má | Tema: reescrita do conto Felicidade Clandestina de Clarice Lispector


Capítulo: A Bela

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Reescrita do conto “  Felicidade clandestina “ de Clarice Lispector.


                           A bela menina má


Ela era magra, alta, pele de pêssego, dentes muito alinhados e cabelos maravilhosamente arruivados e brilhantes. Sempre muito bem vestida e comportada. Não tinha busto ainda. Enquanto nós todas já tínhamos em demasia para a tenra idade; e éramos gordas, baixinhas, pele cheia de espinhas, dentes tortos e por nascer... Sentia prazer em comer coisas saudáveis, como frutas, legumes e verduras, coisa que detestávamos. como se não bastasse tanta perfeição, possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.


Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era da paisagem de Taubaté mesmo, onde morávamos, com suas paisagens mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".


A sua beleza era tal qual seu talento para a crueldade. Ela toda era pura vingança, saboreando alfaces e brócolis, com delicadeza e ironia. Como essa menina devia sentir pena de nós, nós que éramos imperdoavelmente desprezíveis, feias, gordas, baixinhas, de cabelos desgrenhados. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.


Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.


Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.


Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.


No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim em um  Castelo. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Taubaté. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.


Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.


E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo esguio, azedando a sua terrível beleza. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.


Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.


Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, saltou das páginas, e apareceu diante de mim, dona benta. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Fitou-me nos olhos como que a pedir explicações. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa avó tão boa entendeu tudo o que se passava. Voltou-se para a neta e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!


E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da neta que tinha, imaginando como iria contar isso a sua filha quando esta chegasse do trabalho. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua neta desconhecida e a menina gorda E baixinha em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Taubaté. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a neta: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.


Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar de braços dados com Narizinho e Emília. À frente seguiam também, com passos firmes, o Visconde de Sabugosa, rabicó e Pedrinho. O Saci acompanhou-nos por alguns instantes, mas logo sumiu em um Redemoinho. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levamos até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.


Chegando em casa, depositei meu tesouro num trono, não comecei a ler,  preferi regozijar meus ouvidos com as reinações contadas por Narizinho e complementadas por Emília. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri- o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer O pão com manteiga preparado por tia Nastácia.   Fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.


Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.


Não era mais uma menina feia com um livro: Eu agora era a personagem principal das reinações de narizinho... Tão linda, alta, esguia. Meus olhos eram estrelas azuis, meus cabelos voavam ao vento. E das reinações de narizinho segui cavalgando até hoje, de tesouro em tesouro sigo em meu alazão, descobrindo moinhos de vento, sempre na companhia do meu amigo inseparável Sancho Pança, montado em seu pangaré, traçando minhas rotas para que eu jamais me curve diante de  bruxas travestidas de fadas bondosas e singelas. Era uma mulher com o seu amante.


 


 


 



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Autor(a): diuli_alessandra_da_silva

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