Fanfic: Se eu soubesse... | Tema: Clarice Lispector; Felicidade Clandestina
Se eu soubesse
A menina cresceu, começou a trabalhar, se mudou para outro estado, casou e depois ainda virou mãe. A vida conseguiu me alcançar, mas nunca deixei morrer a alegria de me encharcar nas profundezas dos livros. Toda vez minha imaginação voltava para aquela cena, peito quente, coração pensativo, segurando com as duas mãos o livro dos meus sonhos, grosso, colorido e pronto para saciar a minha sede de histórias. Naquele momento a minha trajetória com os livros tinha entrado num caminho sem volta, aquela felicidade clandestina tinha virado meu vício.
Lembra da menina má, gorda, sardenta, baixinha, de cabelos excessivamente crespos e meio arruivados, então, ela também cresceu, casou, virou mãe de gêmeos e dona da livraria do seu pai, o senhor Adolfo. Eu a vi um dia desses no jornal, tinha uma matéria sobre a reinauguração da sua nova livraria. Estava com um semblante diferente, até parecia um anjo. Mas como? Aquela menina era diabólica, nada de bom saía dela, não pode ser, parecia meio duvidoso.
A reinauguração seria na semana seguinte, justo no dia anterior a minha convenção, coincidência? Ou destino? Quem sabe, só tinha certeza que daqui uma semana estaria pisando nas minhas terras novamente, minha amada Recife.
Parecia que a semana nunca ia acabar, os dias passavam lentamente e a ansiedade de reencontrar com aquela menina má, só aumentava. Finalmente chegou o dia, ao entrar no avião começou a subir um sentimento ruim, de desgosto, raiva, ódio, estava com sangue nos olhos, quase explodi com a moça que estava sentada do meu lado, que sempre esquecia alguma coisa na mochila, por isso, tinha que se levantar, passar por cima de mim e pegar no compartimento superior do avião alguma coisa.
O avião decolou, como estava estressada pela situação acabei esquecendo que tinha trago um livro de bolso para me deleitar no avião, só depois da aeromoça passar as instruções de voo que me lembrei. Retirei o livro da minha bolsa e divaguei nos versos da minha autora favorita, aquela mulher sabia escrever.
Chegamos em Recife, me dirigi ao hotel, deixei minhas coisas e sai em disparada para a reinauguração, queria ver o dragão em ação, não poderia perder nada desse show. Porque afinal, ela só poderia estar encenando esse papel de anjo, uma hora essa faceta iria cair, nem que fosse eu tirasse dela.
No caminho para a livraria continuei minha aventura nos mares da imaginação do meu livro, aquelas palavras pareciam uma droga para mim, não conseguia parar. O Uber parou no destino e ao olhar pela janela eu me deparei com uma fachada enorme, bem colorida e bonita, me fazia lembrar das capas dos livros do Monteiro Lobato.
Boquiaberta, sai do carro e fui em direção à porta, a livraria estava cheia de jornalistas, fotógrafos, amigos e familiares, tinha até alguns rostos conhecidos. De repente, por detrás de uma câmera eu avistei aquela bruxa, bruxa? Agora tinha cabelos lisos, continuava baixa e sardenta, mas agora era morena, magra e simpática. O que tinha acontecido? Será que finalmente a vida tinha sido cruel com ela, como ela foi com tanta gente? Minhas perguntas tinham que ser respondidas. Criei coragem e me aproximei dela.
Ela me recebeu com um sorriso, diz: “Nossa Melissa quanto tempo”, e me abraçou, achei estranho, mas agi normalmente, sorri e disse: “Sim, Jéssika, muito tempo mesmo, a livraria está linda, parabéns, mas desculpa a pergunta, mas porque decidiu fazer uma reinauguração, tinha necessidade mesmo?”. Eu estava esperando ela ignorar a pergunta ou até mudar de assunto, mas com toda sinceridade me respondeu e foi naquele momento que eu entendi toda a história.
Então Melissa, quando eu era apenas uma menina, meu pai era dono dessa mesma livraria, eu era rodada por livros, mas odiava ler. Ele sempre tentou transformar a paixão dele na minha, mas nunca cedi. Quando eu entrei na escola, essa repulsa por livros só aumentou. Abismada pela história que ela estava contando não me contive e exclamei: “Mas por quê? Os livros são a porta para a alma, o refrigério do aflito, a esperança para o desanimado. O que poderia vir de ruim deles”.
Meu pai pensava assim também, ao ponto dele passar horas e horas na livraria, lendo, lendo e relendo histórias magníficas do mundo fantasioso dos livros, mas no mundo real, onde existia eu e minha mãe, ela não vivia. Não éramos os personagens centrais na história dele.
O ápice foi no meu aniversário de sete anos, quando ele me deu o livro preferido dele “As Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato. Eu pensei: “Mais um livro que ele gosta mais do que eu”. Então minha reação natural foi rejeitar aquele livro e jogar na cara dele que eu não queria ler. Agora como uma criança machucada, sentia que tinha que extravasar em alguém, e você foi uma delas. Como eu via em você a mesma paixão que via no meu pai, fiz de você meu próximo alvo.
Aos poucos meu relacionamento com meu pai foi se esfriando, ao ponto de não conversarmos mais. Porém, todo ano no meu aniversário, ele me mandava o mesmo livro “As Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato, nunca entendi, só jogava fora quando ele me entregava.
Com dezoito anos de idade fui fazer faculdade em outro estado e acabei saindo de casa. Na hora da mudança, minha mãe me entregou uma caixa, pesada e empoeirada, pensei: “Mais coisa para levar”, mas quando eu abri eram todas as edições do livro que eu tinha jogado fora. Eu fiquei paralisada. Agradeci a mãe, me despedi e sai em direção a minha próxima aventura. Me senti culpada por não ter passado na livraria para me despedir do meu pai, mas, tudo bem, estava tão ocupado tirando pó daqueles livros que não sentiria minha falta.
Cheguei na universidade, organizei minha nova casa, coloquei tudo no lugar e comecei a jornada mais interessante da minha vida. Descobri que aquela paixão pelos livros que meu pai tanto falava estava no meu sangue, só pode, porque depois de tantas noites debruçada nos livros que o gene da leitura desabrochou. Os anos se passaram, os aniversários também, mas os livros permaneceram, todos os anos, o mesmo livro chegava na minha porta. Porém, como aquela menina de sete anos, pegava cada livro, e sem ler, guardava no depósito da minha casa junto com todos os outros exemplares.
No meu aniversário de trinta anos, em vez de receber mais um livro, recebi uma ligação da minha mãe falando que meu pai tinha sofrido um ataque cardíaco e que estava hospitalizado. Larguei o celular, filhos, marido e sai correndo. Mesmo eu não tenho o melhor relacionamento com ele, era meu pai. Peguei o primeiro voo para Recife e fui.
Cheguei no hospital e vi meu pai naquele estado, magro, pálido, parecia outro homem. Fiquei sem palavras e antes que eu entrasse no quarto eu avistei na poltrona do lado dele meu presente o livro “As Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato, edição atualizada, outra capa, mas mesmo livro. Não sabia o que fazer, se gritava com ele, se chorava, se perguntava o porque do livro, ou se simplesmente ficava calada.
Hoje depois de trinta anos eu decidi perguntar: “Pai, porque você me dá esse livro de presente de aniversário dos anos?”. Meu pai com uma voz tremula disse: “Você nunca abriu um livro se quer?”. Eu relutante em responder falei: “Não pai, nunca abri. Sempre tive repulsa por esse livro, porque quando eu era criança eu achava que você amava os livros mais do que eu, e esse livro tem sido um lembrete disso todos esses anos”. Meu pai com um olhar de compaixão olhou para mim e disse: “Abra o livro e veja o que tem dentro”.
O que eu não sabia, era que dentro desse livro e de todos os outros, tinha uma carta de amor, a mesma carta que ele escreveu para mim quando eu tinha sete anos. Todos os anos ele comprava o livro e escrevia a mão a mesma carta e me mandava.
Pela primeira vez eu abri o livro, e lá na contracapa estava a cartinha de amor que dizia: “Minha filhinha, o papai sempre teve dificuldade de se expressar, desde menino tenho usado os livros e as letras para compartilhar meu mundo para outras pessoas. Por isso abri a minha livraria para que outras pessoas como eu pudessem usufruir desse universo lindo da imaginação. Então quando nasceu tentei fazer você se apaixonar por esse mundo também. Mas o papai reconhece que não deveria ter forçado isso sobre você. O que eu deveria ter feito era me esforçado mais em entender quais eram as suas paixões. Como no livro a Narizinho se casa com o Príncipe Escamado, quero hoje ser seu eterno namorado e tornar você princesa do meu reino. Espero que esse livro seja um recomeço para nós. Te amo. Para minha eterna Narizinho, cheio de vida e cor.”
Para o meu pai, eu era a Narizinho. Como eu deixei isso passar em branco. Com lágrimas nos olhos olhei para o meu pai e perdi perdão, agradeci por tudo que ele fez por mim e naquele momento meu pai me abençoou. Foi um sentimento de libertação, nunca tinha me sentido daquela forma antes. Os meses se passaram e meu pai infelizmente faleceu. Mas eu estava em paz, sabia que o propósito dele aqui na terra já havia acabado, agora era minha vez de continuar o legado dele.
Por isso, voltei para Recife e decidi reformar a livraria do meu pai, para poder dar para outras crianças a oportunidade de se apaixonar pelo mundo dos livros e se mergulhar nas histórias de Monteiro Lobato e muitos outros autores. Agora todas as edições de “As Reinações de Narizinho”, que eu ganhei de aniversário estão expostas aqui na livraria. Se quiser, pode dar uma olhada.
Eu estava atônita quando ela terminou a história. Fiquei sem palavras. Até sugeri dela escrever um livro, ela agradeceu a sugestão, se despediu de mim e foi fazer uma entrevista com uma emissora de televisão. Ainda sem reação, eu fui em direção ao local onde estavam os livros que ela tinha mencionado e fiquei pensando em como as pessoas não são como elas aparentam. Eu fiquei anos remoendo o que a Jéssika tinha feito por anos, me fiz de vitima achando que eu era a única que estava sofrendo.
Na ânsia de me livrar dos meus próprios problemas, me mergulhava no mundo dos livros para encontrar um refugio, um universo colorido cheio de vida, esperança e amor, para fugir da realidade que eu estava vivendo. Sendo que na minha frente, todos os dias ao parar na porta da casa dela, estava uma menina que estava passando pela mesma situação e eu não sabia.
Se eu soubesse.
Autor(a): lindynega
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