Fanfic: Felicidade sem Destino | Tema: Trabalho de Letras
Ela era linda, magra e loira, seu nome era Lisa. Tinha um lindo corpo e era mais velha enquanto eu era considerada criança por ser a aluna mais nova do conservatório Allegro. Como se não bastasse, ela tinha acabado de voltar de um intercâmbio, sonho de muitos. Além disso, possuía o que qualquer aluno do Allegro gostaria de ter: um pai dono de uma produtora.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para presentes, em vez de pelo menos um CD ou um instrumento barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem da cidade mesmo, onde morávamos, com seus parques mais do que vistos. Atrás escrevia com letra, palavras como “data natalícia” e “música no ar”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, usando roupas importadas e mostrando novos instrumentos. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente musicistas, baixinhas, sorridentes, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de cantar e tocar, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe visitas a produtora de seu pai que ela se quer visitava ou importava.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que seu pai havia visto minha apresentação para o prêmio revelação e que gostaria muito de me ver em sua casa.
Era um sonho, meu Deus, eu poderia receber um convite de trabalhar na produtora, cantar ou até mesmo gravar algo. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte, pois seu pai gostaria de falar comigo.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. Era um sonho muito grande que se tornaria realidade, apenas ver seu pai já poderia me trazer oportunidades.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num apartamento como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que seu pai havia saído, e que eu voltasse no dia seguinte para vê-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas da cidade. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa de entrar naquela produtora, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pela música me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da produtora era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: “o meu pai ainda não está”, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela, ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o meu pai esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, e hoje cedo ele já saiu. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua desculpa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas seu pai está no estúdio e você nem vai lá!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina sonhadora em pé à porta, exausta, ao vento das ruas. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai chamar seu pai agora mesmo. E para mim: “E você pode entrar e ficar à vontade.”
Entendem? Valia mais do que estar na casa do maior produtor: “eu podia ficar à vontade” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim que fui recebida, a enorme surpresa, seu pai já estava me procurando, ele tinha visto meu vídeo no premio revelação e me disse que eu era perfeita para uma turnê, feita pela sua gravadora. Acho que eu não disse nada. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sonhava acordada com aquela notícia. Quanto tempo levou até chegar à minha casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ensaiar. Fingia que não sabia da proposta da turnê, só para depois ter o susto de tê-la. Horas depois ensaiava, compunha algumas linhas maravilhosas, parava de novo. Fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara meus cadernos de composições, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa sem destino que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser sem destino para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada em cada show que fazia.
Às vezes sentava-me no palco, balançando-me com o microfone, escutando o publico, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um sonho: era uma mulher com a sua música.
SOUZA, Larissa Oliveira. Felicidade sem destino. RELEITURA PESSOAL. Letras, 2019.
(LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1998)
Autor(a): lariduarte
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