Fanfic: Felicidade Clandestina | Tema: Clarice Lispector
Ela era magra, alta, um pouco sardenta e de cabelos longos e crespos,
meio loiros. Tinha um busto que se encaixava a seu corpo, enquanto nós todas, com exceção de algumas ainda éramos
achatadas. Como se não bastasse, enchia sua mochila com contos e historias escritas em formato de livros. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de doces
gostaria de ter: um pai dono de mercado.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de
pelo menos alguns dos doces mais baratos, ela nos entregava em mãos um panfleto aonde estava era escrito as promoções e ofertas da
loja do pai. Ainda por cima eram de ofertas da semana passada. E ainda nos pedia para que ajudassemos a divulgar as ofertas pela cidade.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança,
chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que
éramos parcialmente achatadas, desastradas, baixinhas nem sempre com o cabelo penteado como ela.
Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de comer doces,
eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorarlhe
doces que ela não gostava, pois sempre tinha consigo muitos deles.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma
tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía consigo algumas caixas de Ferrero Rocher que avia ganhado de aniversario, e não iria comer todos.
Era um doce gramuroso, meu Deus, era um doce para se ficar sonhando com
seu gosto, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses.
Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela dividiria comigo o doce.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu
não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me
traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava
num sobrado como eu,e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem
para meus olhos, pediu que eu voltasse no dia seguinte para comer o chocolate, pois o seu pai averia pedido a ela para não comer mais daqueles chocolates naquele dia. Boquiaberta, saí devagar, mas em
breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar
pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa
vez nem caí: guiava-me a promessa da guloseima, o dia seguinte viria, os dias
seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me
esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono do
mercado era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua
casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o chocolate ainda não poderia ser devorado, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu
como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se
repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo
indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo magro. Eu já
começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho.
Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer
esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer.
Às vezes ela dizia: pois aquele delicioso chocolate meu pai deixou eu comer um pouco agora de manha e você só veio de tarde, de modo que agora não tenho mais permissão para comer mais. E eu, que não era dada a
olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde
e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a
aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações
a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco
elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar
entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com
enorme surpresa exclamou: mas seu aniversario ainda nem chegou, como assim chocolates? Você nem gosta de chocolates!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia
ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a
potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina de cabelos bagunçados em pé à
porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que,finalmente se
refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai agora mesmo até o mercado e ira comprar quantos doces ela quizer. E para mim: “E você pode escolher qualquer doce que quizer até mesmo seus Ferrero Rocher.”
Entendem? Valia mais do que me dar doces: “quantos eu quisesse” é
tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim que a gente voltou do mercado com meus doces e meu delicioso chocolate. Acho que eu não disse nada. Não, não saí pulando
como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava a sacola com uma de minhas mãos, quanto tempo levei até chegar
em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração
pensativo.
Chegando em casa, não comecei a degustar meu maravilhoso chocolate. Fingia que não o tinha, só para
depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, comi alguns pedaços maravilhosos, logo em seguida fui passear pela casa,adiei ainda mais indo comer pão com
manteiga, fingi que não sabia onde guardara o chocolate, achava-o, sentia seu maravilhoso cheiro. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa
clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para
mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia
orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me a sombra de uma arvore com o chocolate no
colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um chocolate: era uma mulher com o seu
amante.
Autor(a): emanuelwid
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