Fanfic: Moinho de Vento | Tema: Felicidade Clandestina
O cheiro daquelas páginas me deixava inebriada. Aquele era o quinto livro que eu terminava neste mês. Ouvindo as reclamações de minha mãe dizendo que eu devia sair mais ao invés de ficar “mofando” no meu quarto lendo o dia inteiro. Acho que ela nunca foi capaz de entender o que a leitura era capaz de fazer. Eu saía do meu quarto, toda vez que folheava as páginas recém descobertas, eu navegava pelos sete mares, atravessava a selva mais densa, caminhava pelas dunas brancas do deserto, vislumbrava as riquezas dos mais lindos palácios.
Era isso que a leitura fazia, me libertava das correntes de minha realidade medíocre. Não que minha vida fosse ruim, era apenas normal.
- Filha você vai se atrasar para a escola! – Berrou minha mãe da cozinha. Fechei meu livro e o guardei, peguei minha mochila e saí.
- Já estou indo... – disse a minha mãe ao caminho da porta, ela se despediu e eu andei em direção ao ponto onde esperaria a van. Levou 15 minutos entre a espera e o caminho que ela percorreu até a escola. Nem havia terminado de sair do carro quando vi cachos ruivos esperando por mim.
Era brincadeira. Alguém havia jogado alguma praga em mim, ou eu havia irritado algum deus ancestral com cara de animal pra merecer isso.
Baixa, com pele branca cheia de sardas, cabelos alaranjados e olhos claros, Lilian me encarava com seu olhar malicioso. Eu nunca ia conseguir entender qual era o prazer dessa garota em me perseguir, tornar minha vida naquela escola um verdadeiro inferno. Por isso apenas bufei e saí dali desviando dela.
- Aonde vai? – indagou ela rapidamente.
- Se você quer matar aula o problema é seu, pouco me importa o que você faz...
- Que pena... Meu pai acabou de receber uma nova remessa de livros novinhos...
O pai de Lilian trabalhava em uma livraria, e ela fazia questão de me lembrar disso, se aproveitando de minha paixão pela leitura. Simplesmente por adorar me torturar, afinal estou proibida de entrar lá ou sequer pegar um livro. Graças a crueldade de Lilian que fez questão de rasgar as páginas de um livro da livraria e colocar a culpa em mim.
Ela riu por dias, e eu chorei por dias.
Não foi nem pelo fato da punição que seu pai me deu, mas pelas suas palavras. Me chamando de ser humano desprezível que nunca saberia o poder que o conhecimento concedia, e que jamais seria capaz de entender a profundidade de qualquer palavra encontrada em qualquer um de seus livros.
Mas ele estava errado, eu era capaz de entender, mais do que qualquer um.
Eu sabia que Lilian odiava quando eu a ignorava, então foi exatamente o que fiz, fingi que não escutei nada e continuei andando. Por semanas tentei entender o porquê ela não ia com minha cara, até o momento em que desisti e aceitei o fato. Sinceramente acho que nem sequer havia um motivo, o que para mim era bem mais fácil de lidar. Ao menos minha consciência estava tranquila sabendo que não tinha feito nada para ela me detestar.
As aulas passavam o mais tranquilo possível, ignorando todos os comentários daquela garota sobre os livros de seu pai, e as indiretas que ela fazia questão de dizer em voz alta para todos inclusive os professores. Todos na sala sabiam da acusação do livro destruído. Nem sei quantas recriminações já tinha ouvido.
Eu ficava quieta, tentando mostrar que quilo não me afetava, mas a verdade é que me afetava. No intervalo eu sumi. Me escondi embaixo da escada que levava para o laboratório no segundo andar e chorei. Rasgar as páginas de um livro era uma atrocidade, mas ser acusada disso sendo inocente era ainda pior. Eu via o olhar de reprovação dos professores, dos alunos, eu fingia que não via, mas eu via.
Por que eu simplesmente não podia ser uma adolescente normal? Que brinca com as amigas. Que faz festa do pijama, ficando a noite inteira acordada ouvindo sua banda favorita e comentando sobre garotos bonitos. Por que eu não podia ter isso? Por que o maldito bullying tinha que me escolher como sua vítima? Eu estava cansada daquilo. Daquela mentira. Mas quem acreditaria em mim? Lilian fez questão de superar sua crueldade e convenceu o pai a vir na escola e conversar com os professores sobre o que “eu” tinha feito. Mesmo contestando, ninguém acreditou.
- Você... – ouvi uma voz ao meu lado – precisa de ajuda?
Eu enxuguei o rosto rapidamente e olhei na direção da voz. Era Lucas, o garoto mais lindo da escola, estudava no segundo ano do colegial. Eu sempre tive uma queda por ele. Meu coração acelerou quando ele se aproximou e sentou na minha frente, desviei o olhar de seus olhos verdes.
- Eu estou bem – disse baixinho. Aproximando os joelhos ao me corpo.
- Acho que eu te conheço... – eu o olhei surpresa – Você é a garota que acusaram de ter estragado vários livros da livraria nova...
Eu quis gritar, mas não conseguia nem engolir.
- Como você sabe disso?! – disse de uma vez.
- Boa parte da escola sabe... – respondeu ele calmamente.
Eu não aguentei. Abaixei a cabeça entre minhas pernas e chorei.
Por vários minutos eu fiquei ali chorando, e ele ali, sem dizer nada. Eu nem ligava mais. Eu só queria gritar. O garoto que eu gostava, só me conhecia porque soube que eu rasgava livros. Eu queria sumir. Mas tudo que eu conseguia fazer era chorar.
- Você não fez aquilo né? – disse Lucas baixinho. Eu levantei o rosto e vi seu rosto tão próximo do meu que podia sentir sua respiração. Eu me afastei rapidamente. Ele se endireitou também.
- Você não... acredita nisso? – perguntei cautelosa. Ele sorriu.
- Bom... eu já tinha te visto na livraria antes... – começou ele com olhar de lembrança – Você tinha o olhar de uma criança dentro de uma loja de brinquedos...
Eu ri levemente, ele também.
- Acho que alguém com esse olhar, não faria algo assim... – terminou encostando na parede.
- Eu jamais faria isso – disse tomando coragem. Feliz por ele não acreditar naquilo. – Nem com os livros ruins.
Ele sorriu pra mim, eu me encolhi.
- O vento não pode ser impedido, mas você tem que saber como fazer moinhos de vento... – falou ele olhando para cima.
- Dom Quixote. – Ele sorriu sabendo que eu saberia quem dissera aquilo. Eu sorri de volta – Obrigada por acreditar em mim.
- De nada. Mas quem fez isso com você?
Eu suspirei tristonha, completamente exausta. Lucas se inclinou esperando minha resposta.
- Lilian, a filha do dono da livraria... – falei baixinho.
- Conheço ela. – ele suspirou – Não me surpreende, já vi ela falando mal de muita gente. Até daquelas meninas que ela chama de “amigas”.
- Ela me odeia, e eu nem sei porquê. Foi ela quem rasgou os livros.
- Maluca – ele bufou indignado – não se preocupe, eu acredito em você. Não está mais sozinha...
Eu sorri tão comovida como jamais imaginei que ficaria. Ficamos conversando por vários minutos, sobre livros que já tínhamos lido. Quando voltei pra sala eu já estava muito mais feliz. Tanto que todos os comentários feitos nas aulas restantes nem me afetaram. Alguém acreditava em mim! E esse alguém era Lucas.
Nós combinamos de nos encontrarmos no dia seguinte e conversar durante o intervalo no mesmo lugar. Eu já estava ansiosa por isso. Tanto que mal consegui dormir. No dia seguinte ele estava lá esperando por mim, com aquele sorriso lindo que fazia meu coração disparar.
Os dias estavam mais leves, até minha mãe percebeu que eu estava mais alegre, que parou de implicar comigo quando eu ia para o quarto ler. Lucas e eu nos encontrávamos todos os dias para conversar. Eu disse que meu livro favorito era As Reinações Narizinho. Ele me contou que o seu era Dom Quixote, como eu já suspeitava. Conversávamos tanto que já havíamos virado melhores amigos. Ele vinha me encontrar quando a van chegava na escola para garantir que Lilian não iria me importunar de novo.
Já ela ficava cada dia mais furiosa porque não conseguia mais me atingir. Mudara completamente sua personalidade. De persuasiva e cativante, para a irritante e insuportável com todos. Parecia que precisava despejar seu veneno em todos já que não conseguia fazer comigo. Era como se eu estivesse usando uma armadura impenetrável. Nada conseguia me atingir. Dois meses se passaram assim.
Só havia uma coisa que ainda me incomodava. Por mais que Lucas acreditasse em mim, ainda existia a reprovação dos professores, e do pai de Lilian, toda vez que ele vinha buscar ela na escola eu sentia seu olhar como uma metralhadora descarregando o pente inteiro em minha direção. E hoje também não foi diferente.
- Sabe... – disse Lucas se aproximando de mim de repente, percebendo meu incômodo e o olhar do pai de Lilian – Devíamos pensar num jeito de limpar seu bom nome senhorita.
Eu ri com sua sentença.
- É.. eu gostaria disso, estou cansada dos professores me recriminarem toda hora, e ficarem me vigiando o tempo todo chegando para ver se não tinha destruído os livros da escola – bufei – Mas como?
- O ideal seria fazer Lilian confessar tudo – pensou ele.
- Ela não vai fazer isso. – falei com firmeza.
- Talvez não na frente dos outros, mas com você... só temos que fazer com que algum professor escute.
- Temos que bolar um plano então...
- Posso ir na sua casa pra combinarmos tudo? – perguntou ele com um sorriso.
- Oh... minha mãe.. – cocei minha testa – Ela não sabe o que aconteceu...
- Hm.. seria bom contar pra ela, podemos fazer isso juntos.
Eu sorri e concordei. A van chegou e desta vez Lucas entrou nela comigo. Fomos conversando e rindo. Até o momento em que ele pegou na minha mão. Meu coração bateu tão rápido que eu fiquei um pouco vermelha. Ele percebeu isso e sorriu. Mas não soltou minha mão.
Quando chegamos em casa chamamos minha mãe e contamos pra ela toda a história, ela ficou chocada.
- Por que você nunca me contou isso filha?!
- Porque ia fazer um barraco mãe! – repliquei fazendo Lucas rir um pouquinho.
- Pode ter certeza! Acha mesmo que eu iria deixa minha filha ser acusada injustamente? Eu vou conversar com essa Lilian!
Minha se levantou em fúria eu corri e segurei na mão dela.
- Mãe por favor, não faz isso!
- Por que não?!
- Porque eu tenho um jeito de fazer Lilian confessar tudo! Por isso Lucas veio pra cá. Para combinarmos o plano. Só temos que fazer alguém ouvir ela confessando tudo.
Quando Lucas começou a explicar o plano minha mãe se acalmou. Iríamos enganar Lilian fazendo com que ela dissesse tudo o que tinha feito sem saber que estava sendo ouvida. Iria ser sem brigas, sem escândalo. Era o melhor jeito de resolver as coisas, usando a inteligência.
- Filha – começou minha mãe preocupada – Você acha que consegue confrontar essa garota.
Eu respirei fundo. Tendo a certeza da resposta.
- Sim – disse firmemente – Até o momento tudo o que eu fiz foi ignora-la, mas isso tem que acabar, eu cansei.
- Tudo bem então... – disse ela – Eu aprovo..
- Legal! – exclamou Lucas – Agora, pra você conseguir que ela diga tudo, você vai ter que irrita-la e muito. – eu assenti entendendo – Bom acho que é melhor eu ir para casa.
Lucas se levantou, despediu de minha mãe e foi até a porta. Eu o acompanhei até lá fora. Andamos alguns passos até que ele parou e se virou pra mim. Ele parecia querer me dizer algo. Fitava o chão por um momento.
- Está tudo bem? – perguntei ansiosa. Ele me olhou. Aqueles olhos verdes pareciam que estavam me atravessando.
De repente ele se aproximou de mim, chegando bem perto. Eu respirei fundo meu coração disparando. Ele esticou o braço e pegou minha mão, acariciando-a com os dedos.
- Eu... – começou ele devagar, parecia que estava tomando coragem – eu queria te conhecer desde o dia em que te vi na livraria...
- Sério?
Ele assentiu. Eu sorri, com o coração pulado de alegria. Lucas chegou mais perto, a ponto de sentir sua respiração. Fiquei nervosa que abaixei o rosto. Ele passou a mão em meus cabelos.
- Você... – começou ele fazendo eu levantar o rosto para olha-lo. Seus olhos brilhavam. – Eu... posso te beijar?
Meu coração parecia que saltar pra fora do peito. Eu estava perdendo o ar, tudo que eu consegui fazer foi fechar os olhos. Ele levou a mão para meu rosto acariciando devagar até chegar em meu queixo. E me beijou. Eu apertei sua mão não acreditando no que estava acontecendo. Lucas separou seus lábios dos meus sorrindo. Eu dei um leve riso, e antes que pudesse dizer algo ele me beijou de novo.
Era um sonho. Aquilo era um sonho. Voltei para casa completamente boba. Com um sorriso de orelha a orelha e borboletas no estômago. Mal consegui dormir, mas precisava. Tinha que estar pronta para enfrentar Lilian.
O dia chegara, o dia em que faria ela confessar, o dia em que eu acabaria com toda aquela falsidade. Lucas e eu combinamos que executaríamos o plano na hora da saída, minha mãe viria me buscar, assim teria mais tempo e não precisaria me preocupar com a van. Meu papel era enfrentar Lilian, provoca-la e Lucas daria um jeito de fazer um dos professores escutá-la.
As aulas passaram mais devagar, provavelmente por causa da ansiedade, quando acabou saí em direção a frente da escola. Vi Lucas a distância, que assentiu pra mim. Respirei fundo tomando coragem e andei determinada em direção a Lilian, parando em sua frente. Ela me olhou com desprezo.
- O que aconteceu? – falei vendo que ela estava sozinha – Sem seguidores fiéis?
- Como é? – sibilou ela.
- Será que seus “amigos” percebeu a cobra falsa que você é? – provoquei e saí andando, sabia que aquilo seria o suficiente para fazê-la me seguir.
Dito e feito, foi exatamente o que ela fez. Levei ela em direção a sala vazia mais próxima, onde havíamos combinado. Ela me empurrou.
- Ficou louca?! – bufei virando pra ela.
- Quem você pensa que é?! – berrou ela furiosa, parecia que aquela fúria estava guardada a muito tempo – Tá se achando melhor do que eu?! Você é uma idiota!
- Por que? Por não ser mais afetava pelo que você faz ou diz? Por saber que no fundo tudo o que você é capaz de fazer é mentir? Ou pelo fato de que a verdade a culpada de tudo que está acontecendo é você?
- Está se achando só porque o Lucas falou com você? Ele só fala com você por pena! – rebateu com desdém. Eu ri, lembrando do beijo.
- Me parece que você está com ciúmes...
- POR QUE EU TERIA CIÚMES DE VOCÊ? – berrou ela partindo pra cima pra me intimidar, mas desta vez eu não me afastei, levantei o rosto e inflei o peito em desafio. – Ele nunca gostaria de uma destruidora de livros ridícula que nem você!
- O que nós duas sabemos que é mentira! – retruquei levantando a voz.
- Só que ninguém mais sabe! – disse ela sorrindo.
Isso! Ela tinha mordido a isca! Eu tinha conseguido! Eu sorri de volta.
- Aceite Lilian! Você não pode mais me atingir! – falei com desdém.
- Será? Talvez eu devesse destruir mais livros e botar a culpa em você, com seu histórico seria fácil todo mundo acreditar em mim!
- Sua louca! O que foi que eu fiz pra você? Por que me odeia tanto? POR QUÊ?
- PORQUE VOCÊ AMA LER! – gritou ela – Você ama ler e eu ODEIO! E pai queria que eu fosse como você! Então eu vou destruir os livros da escola e por a culpa em você, igualzinho da primeira vez!
- Da primeira vez?! – falou a voz masculina vindo da porta. – Filha! Foi você que destruiu os livros?
O pai de Lilian estava bem ali, parado na porta, junto com três professores, minha mãe e Lucas. Nós tínhamos conseguido. Lucas veio até mim e me abraçou. Olhei para minha mãe e sorri.
- Pai.. eu... – começou Lilian – Não é nada disso...
- EU OUVI TUDO LILIAN! TODOS OUVIRAM! – berrou o homem furioso. – Como você pôde? E toda educação que eu e sua mãe te demos? NÃO VALEU DE NADA?!
Lilian estava completamente paralisada. Embora eu estivesse aliviada, no fundo fique com pena. Lucas pegou na minha mão. E vimos o pai da garota se descabelar atordoado.
- O fato é que sua filha acusou a minha, - começou minha mãe – e por meses minha filha teve que aturar o bullying vindo de todos da sala e a recriminação dos professores. Minha filha sempre amou ler. Ela fica dia inteiro lendo, só esse mês ela terminou cinco livros. – minha mãe sorriu pra mim – Mas me corta o coração saber que ela está sofrendo por algo que não fez!
- Eu não consigo acreditar que fomos enganados esse tempo todo! – disse um dos professores completamente pasmo.
- Lilian peça desculpa – mandou o pai.
- Pai...
- PEÇA DESCULPA AGORA!
Lilian me olhou com raiva, quase chorando.
- Desculpa...
Eu não disse nada, nem me movi. Fiquei ali apenas segurando a mão de Lucas vendo o pai de Lilian pedir perdão a minha mãe e a todos os professores, dizendo que queria recompensá-los. Ele brigou com a filha que começou a chorar e saiu dali com ela completamente envergonhado. Os professores saíram com minha mãe, pedindo para conversar com ela, a fim de se desculpar também. Tudo o que eu fiz foi soltar o ar em alívio. Lucas me olhou e sorriu para mim.
- Tenho algo pra você... – falou ele soltando minha mão e pegando algo em sua mochila. Ele tirou uma embalagem e me entregou.
Eu abri curiosa, e sorri de alegria, vendo a capa dura daquele livro.
As Reinações de Narizinho.
Eu ri e o abracei. Aquele era o melhor momento da minha vida.
Autor(a): denise_antunes
Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).
Loading...
Autor(a) ainda não publicou o próximo capítulo