Fanfic: A Sonhadora solitária | Tema: Releitura do texto Felicidade Clandestina de Clarice Linspector
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio ruivo.
Tinha um busto enorme, enquanto nós ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia o coração de esperança. E possuía o que qualquer criança gostaria de ter: Uma imaginação e liberdade, verdadeiramente invejáveis.
Ela aproveitava. E nós gostávamos mais ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos cartões com histórias próprias criadas e vividas por ela. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “incentivos” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a escrita. Ela toda era pura leveza, abrindo seu coração sempre que precisávamos. Como essa menina devia nos amar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu carisma. Na minha ânsia de ler, eu me perdia ao que ela me submetia com suas lindas palavras: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela mesmo escrevia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía várias história guardadas que ela escrevia e que além de tudo ela teria vivido.
Era livros magníficos, meu Deus, eram livros para se ficar vivendo com eles, comendo-os, dormindo-os. E completamente mexia com minha imaginação. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela me emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. ela me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que me levaria até os livros, e fomos. Boquiaberta, saí devagar, e depois de ter acesso aqueles livros a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para pegar outro livro: os livros me levavam a um mundo distante, ela pedia que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto passei a perceber que ela não tinha companhia reais. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para ser sua amiga, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer e esteja precisando danadamente de minha presença.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: tenho novas histórias, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a sorrisos, sentia o sorriso em meus lábios.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa uma de suas histórias, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição diária daquela menina à sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe egoísta entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas estes livros nunca saíram daqui de casa e tão pouco você!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada de que a filha havia feito uma amizade. Ela nos espiava em silêncio: a potência de sua perversidade desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas. Foi então que, finalmente se refazendo, perguntou firme e calma para a filha: vocês são amigas, agora?. E para mim: “E você gosta de ler os livros que ela escreve?. ”Entendem? A sua amizade e a sua vivência valia mais do que me emprestar os livros: ” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.”
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada. Aquela menina nunca viverá aquelas histórias, tudo fazia parte de sua imaginação. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei ! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma amiga confidente.
Adaptação do texto de: (LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1998)
Autor(a): debora_bianca
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