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Fanfic: Felicidade Caipira | Tema: Nerso da Capetinga e sua viola


Capítulo: Felicidade Caipira

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FELICIDADE CAIPIRA


Bão?! Vamu começá então?! Óia isso... “Viola caipira, viola de arame, viola sertaneja, viola brasileira, viola de dez cordas, viola cabocla...” Chique?! Capaz de sim, Capaz de não... Mas que eu tenho nome e sobrenome, ahhhh... isso sim, sô! Prestenção... Venho me apresentar e já dizer que não sô boa com as palavras rebuscadas, abarrocadas, se me entendem... Mesmo entalhada no estilo do célebre Aleijadinho. Minha história é longa pra chuchu... Pode botar mais de 700 anos nisso aí. Acompanhei todo o desenvolvimento da música ocidental como a conhecem hoje, e, sendo ela tão antiga e tão contemporânea, não é de se espantar que sou usada em diversas correntes estéticas na atualidade. Tô falando bonito já... Vou me esforçar até o fim, pois minha alma é de um instrumento que vos toca pela ligação com a terra, com o passado que carrego em minha longa biografia.


Aí já aviso, cumpadi e cumadi... senta que lá vem a história!!!


Aceita um café?!


Tudo começou naquela chuvosa tarde de 25 de novembro de 1971, no bairro da Capetinga, em Muriaé, cidade da Zona da Mata mineira, quando fui dada de presente de aniversário a ele. Seus olhos brilhavam, não existia sentimento mais fulgente para aquele pirralho que completava dez anos. Era algo que fazia minhas dez cravelhas despertarem loucamente, atingindo a afinação ideal, tamanho o êxtase momentâneo. Nerso. Isso mesmo... Nerso, era assim chamado por todos. Meu novo dono era um menino matuto que vivia no campo e sua personalidade revelava rusticidade de espírito, falta total de traquejo social. Um absoluto menino caipira, roceiro, jeca. Tendeu, fulano?


Então, ele pegou-me em seus braços, delicadamente, quase pensando em não pegar e afagou-me como uma dama o faz em seus cabelos pelos ombros. Deixou de lado seu carrinho de rolimã, que há tempos o acompanhava, e, a partir daquele instante, deu-se uma nova era! Nerso, tímido e desconfiado, começou a arrastar os dedos sob minhas finas cordas, o que não era novidade para ele, pois nas aulas de música, lá na igreja central, naquela linda pracinha florida, uma outra amiga minha servia-lhe de cobaia. Agradeço-lhe, querida, pois agora meu Nerso já está adaptado ao som encorpado, doce, menos estridente que o violino e mais grave que o violoncelo.


Então... alí estávamos nós dois, trancafiados no único quarto da casa –  lugar quente, úmido e escuro – beirava ao insalubre. Ele, em devaneios incríveis para uma criança tão inocente, parecia em transe. Eu, em um misto de alegria e desespero. Ah, sim... você deve estar se perguntando o motivo do meu desespero. Caríssimo(a), já pensou que começamos a morrer no momento em que nascemos? Então... para nós, instrumentos, começamos a morrer quando há o primeiro afinamento. Nossos dias são contados a partir disso. Assim, começa nossa história! Bom, mas seguindo... Nerso não pensava em outra coisa - dia após dia - e sua orquestra era composta, mentalmente, em seu quarto, aquele ambiente inóspito mencionado lá em cima na história. Seu lugar era sempre o mesmo, sob uma barrica de carvalho em que seu pai guardava o ganha-pão da família: a cachaça. Ele sabia que aquele odor característico era pano de fundo para seu grande espetáculo e, dessa forma, nem se importava com as dores de cabeça que o acompanhavam quando havia algum descuido e seus pés, no auge do momento, aquele em que os grandes músicos até fecham os olhos e dobram a cabeça para trás, apertavam aquela enferrujada torneirinha que fazia vazar, quarto à fora, a bebida mais consumida naquela cidadezinha.


Dia após dia eu era tocada, deliciosamente apreciada, vez ou outra judiada, porque ele nunca conseguia colocar-me dentro da capa sem que eu caísse de suas mãos, pequenas – concordo – mas gigantes, no que faziam soar. A cada dia meu Nerso tornava-se um exímio violeiro, daqueles grandes e, sem exageros, estilo Almir Sater. Aliás... Este era seu ídolo! “Ando devagar/ Porque já tive pressa/ E levo esse sorriso/ Porque já chorei demais...” Nunca toquei tanto essas notas... mas confesso que as amo. Sempre me encontrava no mesmo lugar... no colo do meu dono sob a barrica. Como eram doces os sorrisos de canto de boca do meu Nerso! Tá entendendo que tipo de sorriso é esse que tô falando, sô?! Só quem realmente sentiu algo tão louco e profundo sabe que encanto há num sorriso verdadeiro... sai da alma pura e brilha nos lábios inocentes!


Dias lindos ao lado dele se foram e, beirando a véspera do Natal de 71, ouvi uma conversa mais seca, grosseira, até envolvida a gritos, entre os pais do meu Nerso e seus pais, gente da cidade grande. Pareceu-me que as finanças não iam bem, pois todas as economias da casa foram investidas no bar. Dalí já se imagina... mesmo eu sendo um objeto, entendia, perfeitamente, que o lucro era baixo e o custo, alto. Não estavam dando conta do recado e, para sobreviverem justamente no final do ano, época de festas familiares, teriam que abrir mão de algo valioso. Oi? Eu? Não!!! Nem brinca! É isso mesmo, produção?! Gente, mas eu sou o coração daquele menino... ele estava na escola, mal sabia o que lhe esperava de notícia ao chegar. Assim ocorreu...


Nerso era só pranto... Dava dó, pena mesmo... Suas lágrimas desesperadas se misturando à secreção nasal. Nunca o vira assim desde que nasci naqueles dedos finos com unhas imundas. Uma viola como eu valeria muitos reais, ops, Cruzeiros (Cr$) e, entendo sim que seria a salvação para aquela família. Dinheiro rápido e em grande volume. Pronto! Resolveria o problema, mas criariam outro. Ninguém queria saber se havia afeto entre nós dois. Ninguém queria saber se eu era a felicidade dele. Ninguém queria saber se ele sofreria. Todos – aliás, os adultos do campo e da cidade – queriam mesmo era saber se devorariam um enorme peru da Sadia, uma Coca-Cola gelada e um delicioso pavê de biscoito champanhe com amendoim. Nerso não se importava com mais nada, já que estava prestes a me perder. Não cogitavam uma segunda opção para aquela situação financeira delicada. Como os adultos conseguem ser frios e calculistas, né?! Que sentido teria o Natal para aquele menino, coitado?! Escrever cartinha pra Papai Noel? Só se for pedindo de volta seu grande amor que, da mesma forma que chegou, se ia...


E eu estava lá, entre seus braços e suas lágrimas, esperando algum fim para aquele drama. Feliz Natal? Onde? Cadê? A felicidade do meu dono estava se desfalecendo e ele ainda teria que sorrir no dia 25? Injusto! Beira ao imoral... Não sou só um monte de madeira qualquer por aí não... Eu sou uma viola! V.I.O.L.A!!! Mas tudo bem... Eu entendo, não tenho direito à escolha porque pensam que sou inanimado. Ninguém nunca estudou sobre Personificação não? Gente... cadê as aulas de Figuras de Linguagem?! Talvez, se eu tivesse participado do filme Hollywoodiano “A Bela e a Fera”, hoje eu não estaria aqui chorando as pitangas!!!


Então... pra fechar esse conto, que tá me sufocando de tristeza já, realmente tentaram me vender. Espalharam a notícia por toda a região. Estávamos lá, tensos, mas Nerso ainda vivia para mim e para meus sons encantadores. Ele aproveitava cada segundo como se fosse o último, pois a qualquer instante, poderia aparecer um comprador e a felicidade daria tchau.


A felicidade?! Ahhhh...


A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.  Às vezes, sentava-me no colo de Nerso, balançando-me junto a suas pernas, em êxtase puríssimo. Não era mais um menino com uma viola: era um homem com a sua amante. 



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Autor(a): xavierzaca

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