Fanfics Brasil - Felicidade Levada Felicidade levada

Fanfic: Felicidade levada | Tema: Felicidade Clandestina Clarice Lispector


Capítulo: Felicidade Levada

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Eu tinha meu mundo dentro da livraria do papai, onde podia fugir do marasmo escolar. Saía da escola com os bolsos transbordando em balas, cabelos grudando na testa conforme transpirava. Ao chegar na livraria, passava ligeira pela porta para que o sino mal pudesse ressoar e procurava pelo meu próximo grande amor literário.


Uma das garotas da escola também gostava de ler. Sei disso pois sempre a via passar pela vitrine a observar os livros, principalmente quando papai trouxe a nova edição dos livros do Sítio do Pica-Pau Amarelo o qual ela me pedia emprestado todo santo dia, e eu compartilhava do mesmo desejo que ela. Que beleza de exemplares. Possuíam como carro chefe uma edição esplendorosa de Reinações de Narizinho, livro esse que minha avó lia para minha quando eu era pequena de tudo. Um livro grosso, gravuras magníficas feitas à mão.


Como ansiei tê-lo em minha estante! Papai não permitia levar meus queridos livros para casa, pois traria prejuízo para os negócios e o desejo por livros não era o ponto forte da minha geração. Por meses namorei o livro que narrava uma das inúmeras aventuras da turma criada por Monteiro Lobato, economizei cada centavo que pude dando nada mais que cartões postais da nossa cidade para os colegas de classe. Sinto que não gostavam muito disso, mas cada olhar torto valeria a pena meses depois.


Poucos dias antes de meu aniversário, corria em direção à livraria como de costume, mas me detive em frente à vitrine. Onde estava o livro? Entrei rapidamente no imóvel, papai não estava no balcão nem nos corredores próximos. Corri para meu local favorito, o corredor de literatura nacional infanto-juvenil, e comecei a busca pelo meu livro amado. Meus olhos rolavam pelas prateleiras e não pude deixar de notar o vazio entre os volumes da coleção de Monteiro Lobato. Era meu livro que havia sido levado.


Economizei por tanto tempo... Papai já havia negado quaisquer possibilidades de que aquele exemplar poderia vir a ser meu, pensei que talvez pudesse comprá-lo eu mesma economizando na mesada, diga-se de passagem já baixíssima, que recebia e no presente de aniversário dos meus colegas. Aqueles estúpidos cartões postais! Como se no último ano já não houvessem me esnobado o suficiente, agora ainda me acham muquirana.


Fui para casa desolada, porém logo que entrei encontrei papai dando um largo sorriso e lá estava. Apoiado no meu abajur e com uma Emília sorridente bordada em um marcador de página, meu sonhado exemplar. No momento meu corpo foi tomado por uma súbita alegria e mal me lembrei de agradecer o papai. Corri para a cama e comecei a folhear Reinações de Narizinho, admirando cada traço das ilustrações de Paulo Borges, não dormia tão feliz há meses.


Entretanto, no dia seguinte tudo começou. Aquela garota da escola, a mesma que visitava a vitrine da livraria do papai frequentemente, notou a ausência do exemplar dentre os restantes na vitrine. Provavelmente me viu com ele pela janela de casa, pois no dia seguinte me perguntou se eu o possuía. Eu não havia começado a ler, estava desfrutando cada detalhe dele como se fosse um sacrilégio viver a leitura sem o fazê-lo, então disse que sim, era meu. Pois mal acabei minha frase e ela me pediu emprestado, um sonoro 'não' se prendeu na ponta da minha língua e apenas respondi que no dia seguinte ela poderia passar em casa para pegá-lo, erro gravíssimo de minha parte.


No dia seguinte lá estava ela, os olhos sedentos, mas não fui capaz tentar ser gentil, logo ao abrir a porta disse que não poderia emprestar porque uma outra menina havia pedido mais cedo, que deveria voltar no outro dia. Mal sabíamos que essa saga duraria por semanas, diariamente a garota aparecia na porta da minha casa e eu precisava criar uma nova desculpa para não dar a ela o que era de mais precioso para mim. É claro que, para amantes de livros, estudar com alguém que pode te emprestar algum é uma dádiva, porém eu jamais correria o risco de deixar com que alguém se descuidasse com meu exemplar porque, além do valor alto, já não haviam muitos exemplares nas livrarias da região. Esse diálogo se repetiu por dias e pude notar que a cada dia que passava o olhar dela mudava, seu anseio aumentava e a curiosidade de mamãe também.


Um dia, estava eu em meu quarto quando ela veio novamente me chamar. Escondi o livro por baixo do travesseiro e caminhei até a porta já pensando no que diria aquele dia. Porém, enquanto falava com ela, mamãe apareceu e perguntou o que estava acontecendo ali. Mamãe não conhecia o pessoal da escola pois poucos falavam comigo e nenhum me visitava em casa, claro que ver uma garota batendo a porta todos os dias, trocando duas frases comigo e indo embora causaria estranheza para ela. Tentei explicar para mamãe sem que nenhuma descobrisse o que estava realmente acontecendo, mas ao ouvir a menina dizendo que eu estava há semanas negando o empréstimo de um livro que não saiu de casa, mamãe me olhou torto e ordenou que o emprestasse. Caminhei para o meu quarto como se tivesse perdido um ente querido, como se não pudesse piorar mamãe disse para ela que poderia entregar o livro quando quisesse porquê eu não estava lendo.


Ela saiu sem falar nada e eu entrei para o meu quarto com os olhos marejados. Não sabia quando o veria novamente tampouco quando teria acesso a um novo exemplar, meu apreço pela leitura não parecia válido sem ele na minha estante. Fico pensando se ela está se divertindo com ele tanto quanto eu estava enquanto curtia minha felicidade clandestina.



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Autor(a): saorita

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