Fanfics Brasil - Um livro e um amigo Um livro e um amigo

Fanfic: Um livro e um amigo | Tema: Baseado no conto "Felicidade Clandestina", de Clarice Lispector


Capítulo: Um livro e um amigo

174 visualizações Denunciar


Alfredo era baixinho, gordo, e tinha braços bem pesados, que ele adorava usar para bater em quem o irritasse: todo mundo. Todos tinham medo de chegar perto dele. Seu rosto era rosado, cheio de espinhas precoces, pois ainda não tinha idade para tudo aquilo. Vivia comendo palha italiana. É um doce maravilhoso, mesmo! Mas, ninguém conseguia comer tanta palha italiana como ele. Usava sempre uma camiseta dos Beatles, com quantas palhas italianas coubessem no bolso em estilo marsupial, que cobria sua barriga enorme. Filho único, foi criado pela avó. Perdeu os pais cedo, coitado! Talvez por isso ele fosse meio revoltado. Sem dúvidas, isso explica o motivo não ser muito querido pela turma. Apesar disso, sua avó era dona de uma sebo, chamada “Sebolândia”, o que deixava a turma toda com uma invejinha, já que adoravam ler... Mas, quem teria coragem de fazer amizade com o Alfredo?


Michel era o devorador de livros da classe. Às vezes lia três livros ao mesmo tempo! Ele não se conformava em ver que o Alfredo não dava a mínima para os livros que tinha ali, tão perto, tão ao alcance. Aliás, nas festinhas de aniversário, esses garotos trocavam livros e, por educação – e um pouco de interesse em, quem sabe, ganhar um dos títulos da sebo – sempre convidavam o Alfredo. E... advinha? Ele só trazia cartõezinhos daqueles com origami ou musiquinha. Pro Marquinhos ele já até deu cartão repetido... Eram até legais demais, considerando de quem vinham. Mas nem um livrinho velho sequer?


Certa vez, Michel, que era fã do Sítio do Pica-Pau Amarelo, passava em frente à sebo, quando viu algo que o deixou em êxtase: “As reinações de Narizinho”, o livro de Monteiro Lobato que deu origem ao seriado. Ele ficou em desespero para comprar o livro. Correu em casa, e implorou à mãe que lhe desse uns trocados, que somados ao que já tinha no cofrinho em formato de livro, chegava ao valor para a importante aquisição. Isso lhe custou o trabalho de dar banho na cachorrinha da família, Minnie, mas ele sabia que valeria a pena. Quando terminou, a sebo já estava fechada. Então ele tratou de levar o dinheiro para a escola no dia seguinte, e na volta, passaria por lá, para resolver este inquietante assunto. Nem dormiu à noite. Sonhava acordado mesmo, em como seria abrir aquela capa dura, vendo a bela ilustração da contra-capa, cheia de detalhes que não pudera apreciar na vista rápida na sebo. Começar a leitura lentamente, para que não acabassem logo os longos capítulos.


Alfredo estava na sebo, e viu quando Michel ficou parado, admirando a capa do livro e revolveu evoluir mais um estágio em sua crueldade. Ele pediu à avó que lhe desse o livro, que para ele era muito especial. A avó, mesmo estranhando o súbito interesse pela literatura, resolveu ceder ao seu desejo. Quem sabe o rapazinho começaria a desenvolver seu intelecto? Pronto! Aqui começa uma longa história de tortura à moda chinesa.


Michel era filho de pai negro e mãe loira, herdando o melhor de ambos. Corpo todo certinho, mesmo sendo bem jovem, já tinha a barriguinha definida, pernas torneadas, rosto angelical com lábios vermelhos e carnudos e cabelos louros, que balançavam ao vento à medida em que andava. Para Alfredo, isso era revoltante! Ele achava que a natureza não tinha sido muito generosa com ele, e odiava Michel, porque este vivia rodeado de amigos e de menininhas com olhares apaixonados, não só por sua aparência convidativa, mas também por sua doçura e educação.


Agora o destino cruzava seus caminhos. Michel chegou à Sebo de Dona Edite, e esta lhe informou que Alfredo tinha ficado com o único exemplar que ela tinha. Michel sentiu até seu estômago se revirando. Já pensou? Querer tanto uma coisa, e quando você consegue os meios para obter, alguém passa na sua frente e lhe toma esse prazer?


No entanto, Michel não era vingativo. Antes, ele resolveu conversar com Alfredo, e pedir emprestado o livro. Será que seria simples assim?


Bem, Michel foi até a casa de Alfredo e tocou a irritante campainha de cigarra da casa com um portão de aço, sem aberturas, de forma que quem estava do lado de dentro nada via da rua, e vice-versa. Havia ensaiado várias vezes como pediria o livro emprestado, mas quando a porta se abriu, Michel se assustou e hesitou. Alfredo comia 3 palhas italianas empilhadas, de uma só vez. E não tinha um olhar de quem estava querendo emprestar algo, ou mesmo entabular uma conversa. Não foi dessa vez...Alfredo sabia o que Michel queria, mas ninguém disse nada. Se olharam por longos e silenciosos 20 segundos. Quase silenciosos, pois só o que se ouvia era o som de Alfredo mastigando. Michel saiu e foi embora no auge de sua frustração. Ele sabia que não ia ser fácil.


No dia seguinte, na escola, Michel viu Alfredo na hora do recreio, novamente comendo seu doce favorito, e resolveu criar coragem. Foi até ele e disse: “Olá, Alfredo!”


Recebeu um “hmmm” como resposta. Sim, novamente estava ele de boca cheia. Então Michel foi direto ao assunto, ou quase: “Livro...Narizinho...Lobato...Sebolândia...comprar...”


Alfredo disse: “Qual o seu problema? Não fala Português?”


Nisso, já se formara uma roda em torno dos dois. Michel, tão belo, bem quisto e confiante, de repente, tornara-se um bebê com olhos desesperados e, já que não conseguia se livrar de sua gagueira, preferiu mais uma vez, se retirar. Ele sabia o quanto era odiado por Alfredo, e tinha que pensar em uma forma de se aproximar, mas ainda não sabia como.


Pensou em pedir uma ajuda à Dona Edite, mas, concluiu que isso poderia parecer fraqueza de sua parte. Decidiu ir novamente à casa do rapazinho, e tentar não gaguejar. Tomou dois copos de suco de maracujá, que sua avó sempre dizia ser um ótimo calmante, criou coragem, e foi até o endereço do pavor. Funcionou!! Ele conseguiu explicar o que desejava, embora Alfredo continuasse com cara de poucos amigos, e mastigando seu doce, sem sequer oferecer um farelo a Michel.


Após conseguir se fazer entender, Michel até respirou aliviado, embora esperasse um redondo “não”. Para sua surpresa, Alfredo disse: “Claro que empresto!”. Michel já ia começar a dizer: “Poxa, mas não tem como... Espera aí! Você disse que empresta?” E Alfredo acenou com a cabeça lentamente que sim, mas seu olhar era diabólico. Michel sentiu até um frio na espinha. Alfredo completou: “Emprestei à minha prima, e ela me devolve amanhã. Volte aqui amanhã à tarde e eu te empresto”. Michel ficou eufórico, agradeceu muitas vezes e saiu todo feliz em sua patinete, quase atropelando as pessoas na calçada, enquanto se imaginava devorando cada palavra do livro.


No dia seguinte, Michel parecia flutuar. Embora adorasse as aulas de Língua Portuguesa, mal prestou atenção. Só pensava no que se seguiria: o prazer de ver, comer, respirar o livro que, naquele momento, era o principal objeto do desejo. Mal sabia ele, o que o aguardava...


Acabou a aula, Michel correu até em casa, deixou suas coisas, pegou sua patinete e quase literalmente voou até a casa de Alfredo. Quando lá chegou, Alfredo estava comendo biscoitos recheados de chocolate. Será que tinha enjoado da palha italiana? Antes mesmo que Michel respondesse mentalmente à sua retórica de um milésimo de segundo, Alfredo puxava de seu bolso marsupial mais uma palha italiana, para comer com o biscoito. Parece que era uma boa combinação. Michel nem tinha almoçado depois da escola, só pensando em seu livro. Mas realmente, ele já  nem prestava atenção no que Alfredo comia...


“E o livro?”, disse Michel. Alfredo, disse “Boa tarde pra você também!”, deixando Michel ainda mais desconcertado. Desculpou-se, cumprimentou, e então repetiu sua pergunta. Alfredo disse que sua prima não tinha devolvido o livro ainda, mas que ele deveria voltar no dia seguinte. E assim foi por tantos dias, com tantas respostas diferentes... Michel alternava frustração e esperança todas as tardes. E pensava em como fazer para ter acesso ao livro que tanto queria, sem ter que enfrentar o grande empecilho chamado Alfredo.


Michel já pensava ter sido escolhido pessoalmente por Alfredo, para ser vítima de sua amarga maldade. Alfredo parecia sentir imenso prazer em fazê-lo sofrer. Michel já não dormia bem, nem se alimentava direito. O belo rosto admirado por todos começava a exibir olheiras. Não queria mais jogar bola com o pessoal no recreio, apenas pensando em Narizinho e as histórias que poderia conhecer em detalhes no tão desejado livro.


Até que um dia, quando estava à porta de Alfredo, humildemente ouvindo sua milésima recusa por motivos cada dia mais esdrúxulos, Dona Edite chegou do mercado e ficou olhando, enquanto silenciosamente Michel implorava com os olhos pelo livro, e Alfredo negava também com o olhar. Ela logo ligou os pontos, lembrou de ter visto Michel quase entrando no livro outro dia, e entendeu ali o motivo de Alfredo ter um súbito interesse por leitura. Voltou-se para o neto e com enorme surpresa exclamou: “mas este livro nem saiu daqui de casa e você nunca quis ler”! Ali Michel confirmara suas suspeitas. Alfredo perseguia-o pessoalmente, e queria fazê-lo sofrer. Mas por quê? O que Michel havia lhe feito para despertar tamanho ódio? Dona Edite não tomou partido da situação e apenas entrou silenciosa. Nem quis ajudar Michel nessa guerra fria que começava a pegar fogo! Foi quando Michel teve uma ideia! Disse um “tchau” alegre e amistoso a Alfredo, e se retirou. Pareciam visíveis os vários pontos de interrogação sobre a cabeça redonda e quase sem pescoço de Alfredo.


Mais um dia se passava e Michel não tinha o prazer e passear suas mãos e seus olhos pelas páginas do tão desejado livro...mas Michel não estava com raiva, não! Ele entendera tudo o que motivava Alfredo. Decidiu atacar o problema, e não a pessoa.



No recreio seguinte, Michel aproximou-se de Alfredo e perguntou se ele queria brincar de bola com a turma. Alfredo ficou surpreso. Jamais havia sido convidado para nada pelo pessoal da escola. Seus olhos pareciam crescer de tanto que brilhavam! Fazendo-se de durão, ele negou, mas Michel insistiu. Ele, então, disse que não conseguia correr muito rápido, mas que gostaria muito de participar. Michel, apesar do descrédito da maioria, convenceu o pessoal a deixa-lo participar da brincadeira rápida da hora do recreio. Todos meio ressabiados, pois sabiam da fama de agressivo do Alfredo. Num dado momento, Betinho pisou no pé de Alfredo, cujos olhos por um instante pareceram flamejar em chamas, mas logo o fogo se apagou e Alfredo disse: “Tudo bem! Isso acontece num jogo de bola né?” E o jogo continuou pacificamente. O pessoal até tocava a bola para ele, mesmo sabendo que ele não corria tanto, talvez por medo, ou por quererem mesmo que ele participasse.


O recreio acabara, o dia de aula também. No dia seguinte, a mesma coisa. Aos poucos, Alfredo ria com a turma, que já não zombava dele por seu peso, sua altura e suas espinhas. Michel percebera a chegada de um novo amigo e quase se esquecera do tão desejado livro, motivo pelo qual ele acabou inserindo Alfredo na turma.


Um belo dia, Alfredo chegou com um embrulho feito com papel de presente estampado com os Beatles, banda que ele ouvia todo dia, lembrando-se de seus pais. Michel já tinha tomado alguns lanches da tarde na casa de Alfredo, tendo oportunidade de saber que ele perdera seus pais cedo, que era criado pela avó, que também ouvia Beatles e outros sons dos anos 60. Assim, ao ver o presente embrulhado com aquele papel, Michel entendia que o presente tinha significado especial para quem o carregava. Imagine a surpresa de Michel, quando Alfredo foi até sua mesa, entregou em mãos com mais um cartãozinho de origami, porém com uma palavra em destaque: “Ao meu AMIGO Michel”. Ele ficou emocionado!


E o que mais poderia ser o presente? Claro! O livro de Monteiro Lobato, o tão desejado: “As reinações de Narizinho”! Michel mal podia acreditar no que seus olhos viam! A turma da sala também não! Todos sabiam a fama de Alfredo, mas viram em primeira mão, como é importante quebrar o preconceito e se aproximar das pessoas. Entenderam que o ataque de Alfredo era sua defesa. Que ele era uma vítima de circunstâncias da vida, e que com um pouco de calor humano e carinho, todos poderiam conviver em paz. A classe aplaudiu o momento, nem tanto pelo presente em si, mas pela ação de Michel, que derreteu o gelo do coração de Alfredo e novamente o aqueceu, tornando-o uma pessoa melhor.


O fim da história? Michel ficou contemplando o livro por uma semana, sem começar a ler. Dava muito valor a cada momento que tinha de posse do tão desejado livro. Ele entendera também que, por mais que estivesse feliz por ter um novo livro, ele tinha um novo amigo, e amizade é algo que não tem preço. Por isso, aos poucos foi entrando no mundo de Alfredo, ouvindo Beatles e descobrindo novas referências musicais, à medida em que incitava em Alfredo o gosto pela leitura, trazendo-o para seu mundo também.


Como que numa felicidade clandestina, estabeleceu algumas limitações para poder ler: Só leria o um capítulo depois que Alfredo o lesse, afinal, Alfredo gostava muito do Sítio do Pica-Pau Amarelo e tinha assistido a todos os episódios, mas antes tinha preguiça de ler o livro, quase tão grosso quanto uma enciclopédia.


Agora, ambos tinham muitos motivos para se deleitar com a leitura. Michel, que achava tratar-se de um caso de perseguição em âmbito pessoal, descobria agora que, na verdade, ambos tinham essa paixão em comum. Leram juntos. Cresceram juntos. E a amizade dura até hoje.



Compartilhe este capítulo:

Autor(a): Flávio Ventura

Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).

- Links Patrocinados -



Loading...

Autor(a) ainda não publicou o próximo capítulo



Comentários do Capítulo:

Comentários da Fanfic 0



Para comentar, você deve estar logado no site.


ATENÇÃO

O ERRO DE NÃO ENVIAR EMAIL NA CONFIRMAÇÃO DO CADASTRO FOI SOLUCIONADO. QUEM NÃO RECEBEU O EMAIL, BASTA SOLICITAR NOVA SENHA NA ÁREA DE LOGIN.


- Links Patrocinados -

Nossas redes sociais