Fanfic: Nova verção de Felicidade Clandestina | Tema: Literatura na era digtal
NOVA VERSÃO DE FELICIDADE CLANDESTINA
Ela era magra ao extremo, feia, com os cabelos excessivamente espetados, meio amarelados. Como se não bastasse, usava roupas bregas como se tivesse 95 anos de idade, usava um blêizer tamanho G, com bolsos enormes que enchia de balas. Uma menina que possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de uma biblioteca, junto a melhor cafeteria da cidade, mas que só podia ler se consumisse um lanchinho.
A mesma pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de, pelo menos, um livrinho e um café barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas.
Tínhamos o desprazer de ser colegas dessa criatura, que não gostava de ler e nem compartilhar o seu mundo da leitura. Aliás, nunca percebeu as maravilhas que haviam naquela cafeteria.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, meigas, de cabelos lisos.
Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler e sem dinheiro para comprar um café, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía Histórias de Tia Nastácia, de Monteiro Lobato, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife.
Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha feia do dono de biblioteca era um planejamento diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, louca para saber um pouco sobre dona Nastácia, não era privilegiada, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu seu pai que num dia de folga estava lendo a tão sonhada história que eu queria. Ele devia estranhar a minha aparição à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. O senhor achava cada vez mais estranho o fato de não entender. Até que ele entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler, inclusive estou lendo e chegando ao fim! Leve-o, leia e me conte o final desse livro, mas fique o tempo que quiser.
E o pior para esse homem não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ele nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.
Autor(a): m.machado
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