Fanfic: Conto Segredo roubado - a partir do conto Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector. | Tema: Releitura do conto Felicidade Clandestina
E a fala da mãe ressoava, estridente e debochada: “Seu pai só lhe deu um tablet novo porque você prometeu que daria este à sua prima!”
A cabeça parecia ter um coração dentro. Ressoava. Seus cabelos ruivos e crespos alvoroçavam-se ao vento, numa cadência loucamente solta, como seu coração enclausurado no peito. Destoavam do corpo pesado, cravado na calçada, como árvore que não dança.
Após presentear Roberta com o tablet que não lhe pertencia e lhe jogar como ramalhete de flores seus sorrisos mais doces, a mãe não se deteve para vingar-se como costumeiramente fazia, tripudiando de suas dores. Simplesmente virou-se e equilibrando seu corpo esguio sobre dois saltos que mais pareciam dentes vampirescos e adentrou a casa, fechando a porta atrás de si.
“Megera”, pensou. A mãe era assim: sempre alheia aos seus sentimentos mais visíveis, mas dona de absoluta perspicácia para privá-la de seus desejos mais secretos. "Já que vamos fazer a festa da Patrícia, poderíamos falar com meu irmão e a Roberta debutaria junto", ouviu o pai sugerir. "Ah, querido!... Eu sinceramente não gostaria. Nossos amigos com certeza iriam comparar, não a condição financeira que isso pra mim seria insignificante. Mas o perfil diferente das meninas.." O pai murmurou qualquer coisa, mas não ficou para ouvir mais.
Agora estava ali. Os lábios crispados e pálidos contornavam seus dentes tortos e amarelados. Os olhos negros e miúdos esbugalhavam-se esgueirando até o fim da rua, onde desaparecera Roberta. Ladra. Com seu tablet apertado ao peito, numa demonstração de afeto que nunca lhe tivera. Um suor frio escorria pelo corpo obeso. Sentia-se mais pesada do que costumeiramente. A roupa, sempre lhe lembrando da ausência de curvas, apertava-a, sufocava-a. Ofegava, presa naquela camisa de força.. Teimava em raciocinar e projetar atitudes contra o que sofrera, mas a cabeça rodava. Sentou-se na calçada e se deixou ficar, desraciocinada.
Perdeu-se no tempo ali. A mãe gritou seu nome mais de uma vez. Já não a chamava “Patrícia”, mas “Patrícia Beatriz”, depois “Patrícia Beatriz Cravinhos”... Não queria almoçar, não queria entrar, não queria nada além de ganhar a rua até a casa de Roberta.
Andou devagar, desvencilhando-se dos cocôs dos cachorros da calçada. “Merda”, falou baixo, quando pisou em um. Estava seco. Menos mal. Aproximou-se da casa. Lá estava: humilde ostentando aquele azul marinho desbotado. Porta fechada. A ladra lá dentro. Com certeza já tinha acessado seus poemas. Culpa da mãe que a obrigava a tirar a senha de acesso. Agora estava ali, exposta, tentando reorganizar seus pensamentos, inventar uma história, defender-se do que a outra certamente a acusaria.
O sol já se curvava ao anoitecer. Alguns carros, poucos, passavam pela rua, certamente trazendo pessoas cansadas de um dia de trabalho. A porta velha, fechada, não se abria. Seus olhos estavam secos pelo vento e pela vigília. Com certeza ela estava lá, bisbilhotando tudo, ridicularizando-a com mensagens de watsapp a todas as colegas de classe. Só o fato de pensar nos risinhos pelas costas, nos comentários encostados fazia seu corpo tremer. Vergonha e medo.
De repente, como se soubesse que ela estava ali, escondida atrás do velho tronco da árvore que quebrava a calçada, a porta se abriu. Roberta saiu e foi diretamente onde estava. Não conseguia decifrar sua expressão. O olhar era firme, mas suave. O sorriso era um misto de surpresa e satisfação. E a voz... ah, era um tom de pena e desaprovação. “Meus tios enchem você de presente... e de que adianta, se o que você quer, nunca terá?”. Esticou o braço e devolveu o tablet. A tela aberta escancarava seu poema mais secreto. Sentiu as pernas moles como lesmas quando seus olhos leram o primeiro verso: “Roberta, te quero”. Os dedos suados apertaram-se sobre o objeto ,enquanto Roberta esguiamente leve voou para dentro e fechou a porta.
Autor(a): lucianodamico2019
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