Fanfic: FELICIDADE | Tema: FELICIDADE DOS SONHOS
Felicidade dos sonhos
Ela era estranha, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de padaria.
Muito aproveitava. Até para aniversário, em vez de pelo menos um docinho barato, ela nos entregava em mãos um guardanapo da padaria do pai. Ainda por cima era de paisagem de vários brigadeiros. Atrás escrevia com letra bordadíssima uma mensagem como “mais uma flor no jardim”
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, ao ponto de ao menos um cupcake nos oferecer, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu prazer em demostrar que havia uma bolsa cheia de doces. Na minha ânsia de querer comer todos eles, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a olhar para sua cara de prazer ao nos ver aos olhos fixos em seu lindo caderno de receitas, cheio de figurinhas de sonhos coloridos e ainda escrito “mistérios de um doce”.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma doce tortura por aquele livro de receitas. Como casualmente, informou-me que possuía e que nele havia muitas receitas feitas pelo seu bisavô e que a receita do sonho maravilhoso ao qual ela me torturava todos os dias estaria nele.
Era um livro delicioso só de olhar, meu Deus, era um livro para se ficar comendo. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria o livro para que eu faça o sonho.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo, na esperança de fazer aquele sonho de livro. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa padaria coberta de doces lindos e sobremesas tortuosas. Meus olhos rapidamente correram no delicioso sonho coberto de granulados coloridos, assim como no livro que ela me emprestaria.
Não me mandou entrar, fiquei olhando somente um homem com as mãos cobertas de farinha. Ela veio olhando bem para meus olhos, disse-me que havia esquecido onde pusera o livro, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo doce me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da padaria era diabólico. No dia seguinte lá estava eu à sua porta, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não encontrei, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua porta fixada nos sonhos, cada dia mais lindos e diferentes, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: eu encontrei o livro esteve comigo ontem de tarde, mas já não lembro onde o coloquei, e eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados e minhas noites mal dormidas sonhando com o sonho.
Até que um dia, quando eu estava à porta da padaria de seu pai, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à sua porta. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você sabe muito bem onde ele está.
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser. ”entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão com o gosto do doce de leite na boca. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, comecei a ler. Só para depois ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas e deliciosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, criava as mais lindas e belas decorações. A felicidade sempre iria ser doce para mim. Parece que eu já pressentia. Eu vivia no ar… Havia orgulho em mim. Eu era uma rainha delicada e toda açucarada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com um sonho nevado, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Cada bocada um sentimento de sonho realizado.
Não era mais uma menina com um sonho: era uma mulher cheia de sonhos.
Raiele Donato Alves dos Santos.
30/10/2019.
Autor(a): raiele_donato_alves_dos_santos
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