Fanfics Brasil - Biblioteca Clandestina Biblioteca Clandestina

Fanfic: Biblioteca Clandestina | Tema: Baseada no conto Felicidade Clandestina de Clarice Lispector (1987)


Capítulo: Biblioteca Clandestina

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Biblioteca Clandestina


Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados, seu nome era Júlia. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem de Porto Alegre mesmo, onde morávamos, com suas ruas mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.  Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Meu nome é Amanda, e principalmente comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.  Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía “ As reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.  Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Porto Alegre. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.  E assim continuou. Quanto tempo?


Não sei! Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer, mas, depois de vários “nãos” percebi sua verdadeira intenção. Quanta maldade!


Fui até sua casa, despretensiosa desta vez, numa última tentativa, do fundo da minha alma de tentar entender o que se passava naquela mente insana. O porquê de tanto rancor? Afinal de contas era só um livro e para ela, só mais um. Bati na porta com coragem, aguardei longos e eternos minutos, até que apareceu uma senhora de traços delicados, não parecia ser sua mãe.


Mas era, e ela devia estar estranhando a minha aparição diária à porta da sua casa. Pediu explicações a nós duas, e quanto mais falávamos, menos ela entendia, de repente, voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis lê-lo!


A menina ficou vermelha, vermelha de vergonha, afinal de contas foi desmascarada pela própria mãe.  A boa senhora sugeriu que devíamos conversar, nos “entendermos”, nas palavras dela. Trouxe-nos suco gelado e biscoitos caseiros, porque a “conversa” seria longa, deixou-nos a sós na sala, com o silêncio ensurdecedor.


Eu estava tomada de raiva, o único som que escutava era o da batida do meu próprio coração, batendo forte, quando escutei: desculpe, e para meu espanto, escutei um outro desculpe, mais alto, desta vez.  Demorei alguns minutos para falar algo, não por orgulho, mas porque estava perplexa com aquela situação e, um tímido: tudo bem, finalmente saiu dos meus lábios.


Quando dei por conta, a mãe de Júlia veio nos alertar que já eram quase seis horas da tarde e que logo anoiteceria. Quase não acreditei! Ficamos conversando por horas e quantas coisas tínhamos em comum, e para meu dia terminar perfeito, ainda fui presenteada com o livro, voltei para casa “pisando em nuvens”. Nossa amizade continuou e já adultas montamos um projeto de empréstimo de livros à outras pessoas que dividiam o mesmo gosto pela leitura e, que mais tarde, deu origem a uma biblioteca, que ajudou muitas outras pessoas que não podiam, como eu, comprar livros.



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Autor(a): miriam_fabiane_silva

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