Fanfics Brasil - Alma Dedicada ALMA DEDICADA

Fanfic: ALMA DEDICADA | Tema: FELICIDADE CLANDESTINA


Capítulo: Alma Dedicada

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                                                                              ALMA DEDICADA                                                                             Marlene Barros

Ela era magra, filha de professora, negra e de cabelos crespos, enquanto nós todas éramos gordinhas lutando para emagrecer. Como se não bastasse, vivia fazendo regime, enchia os bolsos de receitas de chás para emagrecer. Mas, possuía o que qualquer criança que gosta de histórias sonhava em ter: um pai dono de livraria.
Ela não aproveitava. E nós menos ainda: em seu aniversário, em vez de nos dá pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem da Bahia mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas ela era estranhamente indiferente às pessoas. Só pensava nela mesma e nos seus chás. Como ela nos tratava com indiferença, devia ter muita raiva de nós, éramos imperdoavelmente fofinhas, esguias, altinhas, de cabelos loiros. Comigo exerceu calmamente o sarcasmo com crueldade. Na inocência muitas vezes me humilhava pedindo-a um livro emprestado, o livro que ela não lia, e ela com o seu olhar gélido sempre respondia que iria me emprestar, deixando uma fagulha de esperança no ar.
Até que um dia após a aula ela me falou de um livro que há muito tempo sonhava em ler, (O conde de Monte Cristo) escrito por Alexandre Dumas, e para completar sua maldade me disse que não iria ler porque não gostava desse tipo de literatura.
É um livro magnífico, meu Deus, é uma história cativante. Eu, não tinha como comprá-lo. Dessa vez ela me disse que poderia me emprestar, passe pela minha casa amanhã para pega-lo, disse ela.
No dia seguinte fui alegremente, com o coração fervendo de amor pelo aquele livro que tanto queria ler, cada passo que eu dava em direção da casa dela me fazia mais feliz, pois o meu alvo estava lá.
Ela não morava numa casa simples como eu, e sim numa bela casa. Ao chegar ela me atendeu no portão, não me mandou entrar. Com seu conhecido olhar gélido me disse, emprestei o livro a outra menina, volte amanhã para buscá-lo. Decepcionada, porém esperançosa fui para minha casa, sai andando cantarolando como sempre pelas ruas da Bahia. Guiada pela promessa do livro, segui em frente ansiosa pelo dia seguinte, caminhei depressa sem tropeçar nenhuma vez.
Mas o pior estava por vir. O plano maquiavélico da filha do dono da livraria estava em execução. No dia seguinte lá estava eu em pé à porta de sua casa, aguardando-a me atender. Então ela me diz calmamente: o livro ainda não estava em meu poder, que eu retornasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela tinha planos sórdidos, queria que meu sofrimento durasse por tempo indeterminado. O que me parece é que ela me escolhera entre todas para sofrer. Às vezes me pego a aceitar tamanha humilhação. Nem sempre me compreendo.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Quando um certo dia, eu estava defronte à sua casa, ouvindo mais uma vez a sua negativa, de repente sua mãe apareceu. Ela percebeu a presença constante da menina à porta de sua casa. Então, indagou as duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A mãe achava cada vez mais esquisito o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa compreendeu. Ela olhou para a filha e decepcionada exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
A maior tristeza para aquela mulher não seria a descoberta da soberba da filha, mas era perceber que nunca a conhecera. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina gordinha em pé à porta, cansada ao vento das ruas da Bahia. E ela então firmemente disse: você vai emprestar o livro agora mesmo. “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Compreenderam? Fiquei surpresa e ao mesmo tempo muito feliz, era tudo que almejei ter o livro comigo “pelo tempo que eu quisesse”.
Em seguida recebi o livro, pressionando-o com força sobre o peito saí andando bem devagar. Pois, era o momento que eu deslumbrava a tanto tempo.
Logo após a minha chegada em casa o guardei. Tentei esquecê-lo só para ter aquela sensação de quando o peguei pela primeira vez. Horas depois abri-o, li algumas linhas apaixonantes, guardei-o de novo, tentei esquecê-lo fingindo que não sabia aonde ele estava, não resistir por muito tempo, fui logo ao seu encontro. A felicidade sempre me pareceu estar muito distante, em alguns momentos uma utopia, mas quando o encontrei tudo mudou, passamos horas e horas a sós, o tempo não importa mais, eu era inteiramente sua rainha, com a alma dedicada vivendo um romance a cada dia.




(BARROS, Marlene. Alma Dedicada. In: Alma Dedicada. Feira de Santana: Ed. Ello, 2019.)



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Autor(a): marlenesantanaandradebarros

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