Fanfic: NEM TUDO É O QUE PARECE | Tema: WHATSAPP
Numa cidade do interior, mais precisamente na Ilha do Marajó. Morava uma menina muito malvada. Tinha prazer em humilhar os outros por ser rica, mas nem tudo na vida dela eram flores. Pois, ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Sofria bulling na escola. Mas possuía o que qualquer criança, pobre daquela cidadezinha que gostava de histórias e gostaria de ter, seu pai dono da única livraria do lugar.
Ela toda dona de si, carrancuda, Pouco aproveitava. Nós menos ainda, por mais que tentássemos nos aproximar ela nos tratava com soberba e desprezo e nos aniversários, em vez de presentear, pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um folheto com o número do Whatsapp da loja do pai.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos escovados e chapeados e maquiadas. Comigo exerceu com calma sua maldade, vingança pelo bulling sofrido. Eu Era a fascinada por livros e na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, eu precisava ler este livro, buscava de todas as formas me aproximar dela, para que me contasse sobre a experiência de ler a obra, mas me era indiferente.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela me empresária. Fiquei pura ansiedade.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava numa casa de madeira como eu, e sim numa casa de alvenaria, toda linda e forrada, tinha um quarto só pra ela. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Muaná. O dia seguinte viria, seria mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto não se vingasse pelas diferenças entre nós. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, por andar com aqueles que lhe ofendiam. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que criei coragem e contei, o motivo de minhas vindas a sua casa. Ela entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme rispidez exclamou: mas, esse livro nunca saiu daqui, eu não permito que ela empreste nada que lhe pertence.
Fiquei horrorizada espiava em silêncio: a potência de perversidade daquela mulher olhava a desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Muaná. Foi então que, finalmente me refazendo, agradeci e sai triste e desolada.
No outro dia a menina levou o livro escondido, me emprestou e disse: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abrí-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, que era tão pequena, adiei ainda mais indo comer açaí com farinha, que pra mim era a felicidade. A felicidade sempre iria ser, desvendar aquele livro para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.
Autor(a): urielly
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