Fanfic: A PERSISTÊNCIA LEVA A FELICIDADE PLENA | Tema: TAL MÃE TAL FILHA
Em um vilarejo no interior do Pará, havia um rio de pequeno porte, que tinham casas de pau a pique de um lado, onde moravam algumas famílias e do outro lado umas casas belíssimas dos comerciantes em homens ricos da cidade, lá ficava a escola e a única livraria do vilarejo.
Do lado rico do rio vivia uma menina, ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós, suas colegas de classe, ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter, o pai era dono da livraria da cidade.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos uma boneca de plástico ou um carrinho com boizinhos para os meninos, e junto um convite de visitação da loja do pai. Ainda por cima era dizendo ás maravilhas que poderíamos encontrar lá.
Ela era toda crueldade. Pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo então, exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Pois em minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Um dia ela decidiu começar a exercer sobre mim uma tortura. Como quem não quer nada, informou-me que possuía As reinações de Narizinho de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. O dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, atravessava nadando devagar, o rio que nos separava, a correnteza me levava e me trazia. No dia seguinte, peguei o casco, remando apressadamente para chegar à casa do outro lado. Ela não morava em uma casa bonita, com móveis modernos e tinha até computador. Meus olhos corriam por trás da costa dela, com a porta entre aberta, mas não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava a remar cantarolando, que era o meu modo estranho de atravessar o rio, todos os dias.
O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Indagando o motivo de minhas visitas diárias, ela só poderia estranhar a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro não para cada vez vem alguém emprestá-lo, você não gostaria de levar outro? ela tem vários. Embora não leia.
Essa mulher me encheu de esperança, pois já achava que a felicidade de sua filha era me ver implorar todos os dias . Foi então que, disse firme e calma para a filha: “vá buscar o livro, está com a filha da vizinha, e entregue a sua amiga” “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.”
Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo’ o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu?
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa,adiei ainda mais indo almoçar Camarão, meu prato preferido, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o,abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade.
Minha felicidade sempre ia ser a contemplação daquela leitura. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma menina esfamiada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.
Autor(a): naily
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