Fanfic: felicidade clandestina de Ana | Tema: felicidade clandestina 1987 de Clarice Lispector
Ela era magra, alta, tímida, sardenta e de cabelos excessivamente lisos, curtos e ruivos. Tinha um busto mediano, enquanto nós todas já éramos bem desenvolvidas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos do moletom, com algo que mais pareciam papeis com pequenas anotações. Mas possuía o que qualquer criança apaixonada por aventuras e culturas gostaria de ter: uma mãe viajante. Que todas as férias, feriados, fim de semanas possíveis, viajavam em busca de uma nova aventura. E nós só assistíamos: até para aniversários, era muito difícil ela e sua família irem, Julia nos entregava em mãos um cartão-postal. Que sempre era do mesmo lugar, Rio de Janeiro, parecia que tinham achado uma caixa e estavam distribuindo. Atrás escrevia com letra caligráfica palavras como “felicidades” e “juízo”. Mas que talento tinha para a estranheza. Ela toda era puro mistério, com seus bloquinhos de papel. Como essa menina devia nos achar tediosas ou algo assim, pois mal via ela falar com alguém, ainda mais nós que éramos imperdoavelmente comunicativas, esguias, altinhas, de cabelos livres e longos. Com Ana ela exerceu com calma toda sua plenitude de esquisitice. No anseio de ler um diário de uma verdadeira viajante, Ana nem notava as coisas a que se submetia: continuava a implorar- lhe emprestados os livros de viagens, culturas locais, que sua mãe trazia a ela. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre Ana um banho-maria. Como casualmente, moro em frente a Julia a garota mistério, de longe observava as exigências estranhas, para obter o tão esperado, diário. Era um caderno grosso, com um botão na capa, meu Deus, era um caderno que só de olhar sentia o cheiro de aventuras, sonhadas, vividas, concretizadas. E, completamente acima das posses de Ana. Escutei que se Ana passasse pela sua casa no dia seguinte ela poderia pegar emprestado o diário de viagem de sua mãe. Até o dia seguinte lá estava Ana se transformando na própria esperança de alegria: Ana não andava, navegava devagar num mar suave, as ondas a levavam e traziam. No dia seguinte, literalmente correndo Ana passou por mim. Mas a nossa colega não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Olhando bem para meus olhos, Ana passa por mim novamente, agora devagar e cabisbaixa, dizendo-me que não havia conseguido o diário, e que a Julia disse que voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve aquela história se repetiria, esperançosa de novo Ana recomeçava na rua a andar pulando, que era o modo estranho dela de andar pelas ruas de Porto Feliz. Dessa vez nem cai: guiava-se a promessa do tão encantado diário, Ana que era uma menina apaixonada pelo mundo e suas riquezas culturais, se firmo na ideia de que o dia seguinte viria, mas os dias seguintes seriam mais tarde uma vida inteira, o amor pelo mundo a motivava, andava pulando pelas ruas como sempre e não caia nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha da viajante era tranquilo e talvez diabólico. No dia seguinte lá estava Ana à porta de sua casa, com um sorriso e o coração acelerado. Para ouvir a resposta calma: o diário ainda não estava em sua posse, que ela voltasse no dia seguinte. Mal sabia Ana como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir, e eu de longe observava atentamente tudo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. E ambas sabiam que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo dos cabelos ruivos de Julia, aquilo parecia uma vingança, pelo que? Por nunca conseguir se enturmar. Eu já começara a adivinhar que Ana não conseguiria o diário, às vezes adivinho. Mas mesmo assim Ana parecia ter aceito: como se quem quer a fazer sofrer esteja precisando danadamente que ela sofra. Quanto tempo? Ana ia diariamente à casa de frente a minha, sem faltar um dia sequer. Às vezes eu escutava: “pois o diário esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, assim o emprestei novamente”. E Ana, que não era dada a olheiras, vi as olheiras se cavando em seus olhos. Até que um dia, quando eu estava à porta de minha casa, ouvindo humilde e silenciosa as recusas, apareceu o pai da Julia. Ele devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações as duas. E houve um clima silencioso, entrecortada de palavras pouco elucidativas. O senhor achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que esse pai bom entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas o diário de sua mãe nunca saiu daqui de casa e você nunca nem quis ler! E o pior para esse homem não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta de tais atitudes assustadora da filha que tinha. Ele as olhava em silêncio: a perversidade de sua filha com a menina morena em pé à porta, exausta, de subir e descer os morros de Porto Feliz. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calmo a filha: você vai emprestar o diário sim e agora mesmo. E para Ana: “E você fica com o diário por quanto tempo precisar.”
Entendem? Valia mais do que dar o diário: “pelo tempo que ela precisasse” é tudo o que alguém, grande ou pequeno, amante de viagem, pode ter a ousadia de querer. Como contar o que se seguiu? Ana estava estonteada, e assim recebeu o diário em mãos. Acho que ela não disse nada. Pegou o esperado diário, como uma vitória. Não, ela não saiu pulando como sempre. Saiu andando bem devagar. Sei que segurava o caderno grosso com as duas mãos, abraçando-o. Quanto tempo deve ter levado até chegar em casa, também pouco importava. Seu rosto estampava alegria, ela exalava felicidade. Chegando a escola no dia seguinte Ana me disse como agiu em casa, posso dizer que me soou um tanto como idolatria, mas quem sou eu para dizer o que fazer um diário de viagem, segundo Ana: “não comecei a ler de imediato. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, imaginei cada lugar, cada cultura diferente, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer bolo de chocolate, fingi que não sabia onde guardara o diário, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais bobas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como sonhei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era a rainha do mundo. Às vezes sentava-me na cadeira de balanço de minha avó, balançando-me com o caderno aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um caderno: era todo o meu roteiro para a vida, os passos que queria seguir”.
Autor(a): abacaterosa
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