Fanfic: História | Tema: Felicidade Clandestina
Mariáh era gorda, baixa, sardenta e de cabelos crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto eu Larissa, e minhas amigas Juliana e Kamilly, todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com caramelos deliciosos. Mas possuía a que qualquer criança devoradora de história gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava eu, e minha amigas menos ainda: até para aniversario em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos presenteava com um cartão postal da loja do pai. Ainda por cima era a paisagem do Recife mesmo, onde morávamos com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letras bordadíssima palavras como “data natalícias” e “saudade”. Mas que talento tinha pra crueldade. Mariáh era pura vingança, comendo caramelos boquiaberta, com barulhos irritantes. Como ela devia nos odiar, nos que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos lisos. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Em minha ansiedade de ler, nem notava as humilhações que Mariáh me submetia: continuava a implorar para me emprestar os livros que não lia.
Ate que um belo dia no parque a encontrei e lá ela começou a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Em meio as conversas, me informou que possuía As reinações de narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, um livro para se ler a todo momento. É completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu fosse no dia seguinte e que ela o emprestaria. Não medi esforços para ter o livro em minhas mãos, não me importei em caminhas varias quadras diariamente, para tê-los em minhas mãos. No dia seguinte fui toda contente em sua casa, literalmente correndo.
Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa enorme casa. Cheguei não me mandou entrar. Olhando bem para os meus olhos disse que havia emprestado o livro e que eu voltasse no dia seguinte para busca-lo. Triste sai de vagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem cai: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte seria mais tarde da minha vida inteira, andei pulando pelas ruas como sempre e nem cai nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu a porta de sua casa, com o sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida o drama do “dia seguinte” como ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que o tempo era indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. As vezes adivinho que ela me escolheu para sofrer, mas adivinhando mesmo, as vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Diariamente ia a sua casa, as vezes ela dizia: o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sobre os meus olhos espantados. Ate que um dia quando eu estava à porta de sua casa ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela deveria estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicação a nos duas. Ouve uma confusão silenciosa. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.”
Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Terminei! Que belo livro era esse, não me cansava de ler e reler varias vezes, sem a pressa para devolve-lo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.
Autor(a): armandoneto
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