Fanfics Brasil - Felicidade Clandestina Felicidade Clandestina

Fanfic: Felicidade Clandestina | Tema: Felicidade Clandestina - Clarice Lispector


Capítulo: Felicidade Clandestina

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Felicidade Clandestina


 


Na escola havia uma garota que era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Porém ela possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Ela não deveria aproveita muito, e nós, colegas de aula, menos ainda. Ela nunca emprestava nenhum livro, para ninguém. Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.  Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía ‘As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato’. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela me emprestaria.  Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.  E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.  Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas eu te falei que vocês está proibida de emprestar os seus livros, você sabe que ninguém cuida ou devolve! E o pior para mim, não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da mãe que essa menina tinha. Ela nos espiava em silêncio: o tamanho da tolice de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai dar o livro agora mesmo para essa menina, mas pode esquecer que vai ganhar outro. E para mim: “E você fica com o livro, mas não apareça aqui novamente. ”


Entendem? É tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.  Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.  Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.  Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.


Eu sabia que era um sentimento errado, tendo em vista que aquela garota queria me emprestar o livro para se aproximar de mim, fazer amizade, e só não tinha feito isso antes, por medo de sua mãe. E ela ia sofrer as consequências disso. Mas não podia esconder a felicidade que eu sentia por ter o livro comigo.



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Autor(a): pandolfoclaudia

Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).




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