Fanfics Brasil - Felicidade Incompreendida Felicidade Incompreendida

Fanfic: Felicidade Incompreendida | Tema: Felicidade Clandestina - Clarice Lispector


Capítulo: Felicidade Incompreendida

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Felicidade Incompreendida


Gabriela Santiago


Numa cidade onde todas as meninas eram bonitinhas de nascença, esguias e louras, com cabelos que escorriam livres para baixo dos ombros, morava eu. A vilã de todas as brincadeiras. A que não poderia ser a princesa na peça teatral da escola pois, de acordo com a diretora, não me encaixava no perfil.


Meus cabelos excessivamente crespos e arruivados não cabiam na coroa de plástico. Meu rosto sardento não combinava com o vestido rosa de baile. Meu enorme busto, ainda que tão nova, não cabia em nenhum manequim.


Na competição da vida, eu já havia nascido perdendo – com minhas estranhas feições e amargura de ser quem era. Nem mesmo as balas que eu carregava comigo nos bolsos da frente da blusa serviam para adoçar alguma amizade.


Era minha, porém, a vantagem de ser filha de dono de livraria e ter à minha disposição as mais variadas leituras que a biblioteca pública não tinha condições de adquirir. Confesso que não era algo de que eu me aproveitasse realmente, pois vivia tomada pela minha vontade de ser igual às outras meninas e por minha dor de não o sê-lo.


Das meninas, havia essa em particular que vivia a me perseguir, querendo que eu a emprestasse meus livros. Dizer-lhe “não” vez após outra era minha única vitória pessoal, diante daquele lembrete ambulante do grande azar que era eu ter nascido na minha pele, e não na dela.


Eu temia o dia em que ela se cansaria dessa busca pelos livros que apenas eu possuía e me roubaria esse mísero trunfo. Peguei o costume de casualmente citar em voz alta os livros sob meu domínio, a fim de ver por qual ela se interessaria mais. Até o dia em que mencionei As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.


Um livro grosso, meu Deus, com páginas para se ler por meses. Caso ela o tivesse, certamente se libertaria da nossa dança silenciosa. E, logo, eu voltaria a não fazer parte de nada relevante naquela cidade. Eu precisaria então, ser cautelosa para mantê-la presa à minha teia.


Disse a ela que passasse pela minha casa no dia seguinte, que eu a emprestaria o livro. Logo cedo, já estava eu espiando pela janela. Ela vinha pela rua, literalmente correndo. Desci e abri a porta, mas não a mandei entrar. Apenas lhe disse que havia emprestado o livro a outra menina, também loura e esguia como ela. Que voltasse no outro dia para buscá-lo.


Ela foi-se devagar, mas logo recomeçou seu andado saltitante pelas ruas de Recife. Entristecia-me pensar que eu e meu corpo grosso que era, certamente pareceríamos ridículos se nos movêssemos assim.


Meu plano secreto era fraco e mal elaborado. Porém, no dia seguinte, lá estava ela de olhos e dentes arregalados aguardando o livro prometido. Eu pensava em falar de outro assunto, convidá-la a entrar para um suco e talvez começar uma amizade. Mas sabia que nunca seria aceita entre as outras meninas, que me achavam grotesca e monstruosa. Então, acalmei meu coração e minha voz, e disse a ela que o livro não estava em meu poder. Que ela voltasse no dia seguinte.


E assim continuou. Eu sabia que não seria por muito tempo. Ela fora escolhida para me abrir o caminho para o grupo de amizades. No entanto, a cada dia faltava-me mais a coragem de ser sincera das minhas intenções. Às vezes eu dizia que o livro havia estado comigo à tarde, mas como ela havia vindo de manhã, eu o emprestara a outra menina – assim ela pensaria que eu tinha amigas de verdade, e não estava desesperada.


Até que um dia, quando ela estava na porta de minha casa, ouvindo minha mais nova desculpa para recusar-lhe o livro, apareceu minha mãe. Em sua mocidade, mamãe havia sido magrinha e compridinha, de cabelos louros e livres, assim como minha visitante. Talvez por isso, me compreendia tão pouco. Ela pediu explicações a nós duas. Ouvindo nossas meias palavras que se entrecortavam e contradiziam, mamãe chegou a uma conclusão.


Sem se preocupar com a exposição a que me submetia, minha mãe revelou que o livro nunca havia deixado nossa prateleira – e eu mesma nem o quisera ler! Logo senti o rubor queimando meu pescoço e minhas faces. Não queria acreditar que iria ser roubada do meu único privilégio. Traída – por minha própria mãe!


Mantivemo-nos todas em silêncio por uma eternidade de segundos. Eu mal segurando as lágrimas que começavam a queimar. Mamãe, como sempre alheia aos sentimentos da própria filha, me disse que buscasse o tal livro agora mesmo e o emprestasse. E para aquela menina que mal havia visto de longe algumas poucas vezes, disse que ficasse com o livro pelo tempo que quisesse.


Entendem? A traição se entendia para além de me forçar a abrir mão daquela tênue conexão: “pelo tempo que quisesse” doía mais que qualquer outro fim que eu pudera temer. Anos poderiam se passar sem que aquela menina voltasse até mesmo um olhar para mim.


Observei da janela, o estranho caminhar da menina com seu precioso livro. Não saiu pulando nem correndo como sempre. Andava devagar, carregando seu tesouro. Era tudo que lhe importava no mundo inteiro. Quanto tempo fiquei ali, olhando, não sei dizer. Meu peito estava vazio, meu coração entristecido e abandonado.


Lentamente, fui voltando para o quarto. Tentava fingir que nada havia mudado, mas era impossível. Sentia-me em luto. Havia perdido a única chance de pertencer a um grupo, de ser e ter alguém. Haviam me tirado meu bilhete dourado. Andava pela casa como quem perambula, sem rumo e sem graça. Triste e solitária, fui fechando-me novamente em mim.


Não era uma menina sem um livro: era uma mulher abandonada, sem compaixão. Traída por sua mãe e roubada de seu amante.


 



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Autor(a): gabeewho

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