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Fanfic: Felicidade Clandestina | Tema: Reescrita do conto Felicidade Clandestina


Capítulo: ...

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Éramos estudantes do ensino fundamental, naquela fase, todos nós estávamos muito ansiosas pelos sinais da puberdade, inclusive eu, que era muito magra e com poucos atributos que realçassem a minha beleza, que até aquela época vamos concordar, era singela. Minha amiga de classe, da qual o nome posso me lembrar com clareza, devido às experiências pessoais a mim proporcionadas, se chamava Beatriz. Beatriz muito ao contrário de mim, já tinha sido contemplada com certos atributos do corpo de uma mulher, com bustos grandes e largos, que eram incontestavelmente reparáveis, era popular e objeto de desejo e inveja, nada que saísse muito do comum.


Apesar de proporcionar ao símbolo da escola em sua camisa certo destaque, principalmente pelo lado da testosterona ascendente dos colegas de classe, Beatriz, ou simplesmente Bela, possuía certa frustração com seus cabelos crespos e sempre muito bem amarrados, buscando conter toda a rebeldia. Bela era uma moça inflada pela autoestima, entretanto com pouca aptidão ao estudo, muito participativa em intrigas e casos de afeto ao sexo oposto, mas contida na participação em sala de aula e nos debates sobre literatura e história, dos quais eu me pronunciava com louvor.


Sempre entendi bem o que poderia levar Bela a ter seu estilo comportamental, e simultaneamente me contrastava com ela, tendo em vista que de certa maneira, cada um busca se posicionar na batalha com as armas que tem. Sempre fui apaixonada por livros, apesar de ter pouco contato com os mesmos, minha família não era estruturada por bons leitores, e muitas vezes tinha que me conformar com as revistas de moda de minha mãe, ou os jornais matinais de meu pai, que sempre os lia no café, anteriormente ao trabalho. Bela por sua vez, vejamos como é curiosa a nossa vida e nossas relações sociais, tinha um pai dono de uma bela livraria no centro da cidade.


Apesar do nosso relacionamento de amizade, e dos meus serviços prestados a Bela como suportes em trabalhos escolares e sorrateiros nomes em listas de revisão e presença, nunca me presenteou com um único livro sequer, mesmo observando todas as minhas dispendiosas horas passadas na biblioteca, me deleitando até repetidamente nos poucos livros de romance e de literatura nacional presentes no acervo de nossa escola. Entretanto Bela tinha uma curiosa mania de emprestar livros para outras amigas, e pessoas que muitas vezes não estavam nem tão presentes em nossa rotina de lanches e conversas informais desenvolvidas inapropriadamente nas aulas de educação física.


Em certa oportunidade, Bela comentou conosco sobre a chegada do novo livro na loja de seu pai, um exemplar paralelo à grande história de Harry Potter, desenvolvida pela brilhantíssima J. K. Rowling. Este livro, denominado Histórias da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, discorria sobre o fundador da escola, e do estabelecimento das quatro casas, assim como de suas mascotes representantes. Esta notícia simplesmente me fez tremer internamente, eu sempre fui fã incondicional da série de livros, e me perdi no número de vezes que passei noites e finais de semana relendo obras e comparando-as com os filmes lançados.


Bela, ainda deixou claro que seu pai havia retirando um volume do primeiro lote e a fornecido, em forma de incentivo à leitura e ao desenvolvimento do seu processo educacional. Eu internamente comecei a me confrontar com sentimentos impuros e inquietantes pois meus pais, apesar de bem instruídos e graduados, jamais cogitaram a ideia de me presentear com livros deste segmento, sempre me falaram que livros não agregavam em nada profissionalmente e no sucesso de minha carreira, que eu deveria estudar e me concentrar somente em coisas que valeriam a pena.


Eu simplesmente precisava me pronunciar, eu precisava pegar com Bela o livro emprestado, afinal eu saberia que ela mesma não teria interesse em ler, e que toda aquela história ficaria ali parada, na sua escrivaninha em madeira com pintura em rosa claro, sendo encoberta com a poeira do centro de São Paulo, esquecida, clamando para que alguém tocasse suas folhas e se deliciasse com capítulos de pura excelência e emoção. Então a procurei, sem imaginar a tortura quase física em que eu mesma estava me colocando, mas em determinação quase irrefutável permaneci forte.


Bela, hora alguma me negou o livro, pelo contrário, se colocou disposta a me emprestar, o que para mim, cega de esperança, nada mais era do que um pagamento com retroativos e correções em cima de todo um ano letivo da mais pura amizade e compreensão. Entretanto minha amiga informou que o livro já estava emprestado, e que eu poderia ir em sua casa no sábado de manhã pegá-lo, pois estaria certa a sua devolução. Prontamente fechamos acordo e me lembro de ter ansiado como uma gestante aos sete meses de gestação, para conhecer o rostinho do produto de seu amor.


Para minha tristeza, várias visitas aconteceram na busca de conseguir ter acesso ao tão sonhado volume que, entretanto foram fatalmente frustradas. Semana após semana, eu me dirigia à casa de Bela, e ela sempre arrumava uma desculpa diferente, para fazer com que a minha longa caminhada fosse em vão. Entretanto, a vida em certas ocasiões reage às energias desprendidas, e como resposta do cosmos à má intenção de Bela, coincidentemente na última vez que fui a sua casa, sua mãe, uma empresária demasiadamente ocupada, estava presente. Por coincidência do destino ou por ação divina, a mulher alta, de traços finos e de vestido intensamente sutil em seda, ouviu nossa conversa, e ficou incomunicável perante a perversidade de sua filha.


Marta, mãe de Bela, afirmou em alto e bom tom que a filha jamais emprestara o livro, e que o mesmo estava, assim como mencionou minha visão, em sua escrivaninha em madeira rosa. De prontidão a ordem foi dada, Bela saiu como avião para decolar, e buscou o tão preciso livro, objeto do meu desejo, aditivo dos meus batimentos cardíacos. Em forma de demonstrar apreço, sua mãe incrivelmente sóbria e decidida, ordenou que o livro fosse emprestado e que eu poderia tê-lo em meu poder o tempo que precisasse. Com um sorriso estonteante, agradeci.


Saí da casa de bela como se carregasse um bilhete premiado da loteria, em busca do resgate. Eu me sentia ansiosa, feliz. Um nível de felicidade que me fez entender perfeitamente o que é se sentir plena, inabalável. Todas as minhas angústias e aflições se encontravam ali, quites e indiferentes. Entretanto ao chegar em casa, eu de imediato não comecei a leitura, com uma voz quase que tocável eu pensei: depois de toda esta demora, eu não posso simplesmente devorar este livro, eu preciso apreciá-lo, preciso anular toda a humilhação concedida gratuitamente e sem fundamento. Fiquei dias e dias a apreciá-lo, a imaginar explicações e personagens, a balbuciar desfechos, sem me preocupar com o tempo perdido, me deparei curiosamente como Bela, massageando meu ego perante a oportunidade, eu me sentia viva e com o poder do controle desta vez. Não por meus seios, não por popularidade, ou por uma livraria inteira, eu tinha o único livro que me interessava. O propósito de minha alegria era ter meu objeto de desejo, e simultaneamente gozar de minha gestão perante o uso dessa ferramenta de prazer.


 


Texto original: (LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1998).


 



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Autor(a): caroolcost

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