Fanfic: Felicidade Clandestina | Tema: Reescrita criativa conto Felicidade Clandestina
Eu era jovem, uma adolescente, e morava em uma vila localizada no interior de uma cidade de Minas Gerais. Vinda de família muito humilde, os recursos internos eram escassos, e o nível de orientação de meus pais era infelizmente baixo, perante a necessidade de desde muito cedo terem se casado, e precisarem trabalhar extensivas horas para conseguirem administrar as despesas de casa. Eu, entretanto, uma menina curiosa e apaixonada por livros, via na educação o acesso ao conhecimento, e às oportunidades, dando sempre um valor primordial ao que se relacionava a minha formação e a possibilidade de ajudar meus pais em um futuro próximo.
Neste tempo em que eu ainda cursava o ensino fundamental, existia uma amiga de classe, de nome Elizabeth, a qual diferente de mim, já possuía curvas delineadas em seu corpo jovial e era de uma família tradicional de múltiplos empreendimentos, dentre eles uma loja de tecidos e uma majestosa livraria que, pela falta de concorrência, era a grande detentora regional da clientela que cultivava o hábito da leitura.
Minha relação com Elizabeth era algo que se intercalava entre situações necessárias, advindas do convívio em classe, e outras em que Elizabeth, de alguma maneira, era capaz de retirar proveitos, ou de se destacar em cima de minhas condições que, até então eram consideravelmente limitadas. Entretanto sempre me posicionei de maneira ativa e gentil, reflexo de uma criação modesta mas pautada na ética e nos bons costumes.
Eu sempre gostei de frequentar a biblioteca da escola para me divertir com livros e para buscar conhecimentos complementares à sala de aula. Na ausência de dispositivos móveis com acesso à internet, e na condição onde o valor agregado de computadores era consideravelmente alto, as bibliotecas e livrarias eram os centros de comércio do saber e do conhecimento. Meus pais como não tinham condições de me comprar livros para ler ou estudar, concentrando-se na manutenção do alimento e na honra do compromisso com nossa casa, que era de aluguel, eu tinha que me contentar em ler por pequenos intervalos durante o dia, ou me acostumar com os livros velhos recolhidos das épocas de doação da biblioteca municipal.
Apesar da sua aparente indiferença com leitura, Elizabeth possuía uma livraria inteira para explorar, como passava grandes jornadas do dia na presença de sua mãe, que era a responsável por conduzir o negócio, desperdiçava inconscientemente uma oportunidade que eu sempre almejei.
Elizabeth possuía descendência britânica, com uma estatura média para a idade, cabelos loiros, e olhos em um tom castanho suavemente claros. Logo a sua primeira impressão sempre era simpática, e sua beleza física facilitava sua forma de lidar com problemas, e de alguma maneira parecia deixar com que estes fatores facilitadores a levassem a uma zona de conforto e contentamento. Já pela minha perspectiva, era necessário constantemente que eu me esforçasse para me destacar com notas, apresentações, com um vocabulário acima da média, e com demais práticas que só poderiam me aproximar do meu objetivo de vida.
Em uma situação informal e julgo, até por coincidência, certa vez Elisabeth comentou comigo ter ganhado de seu pai uma edição ampliada da obra de William Shakespeare, simplesmente um dos livros que eu mais ansiava para ler, Hamlet.
Desta forma, sabendo do seu baixo apreço pela literatura, me disponibilizei para pegar seu livro emprestado, somente por alguns dias, pois eu seria capaz de devorá-lo em menos de uma semana. Elizabeth concordou sem hesitar, o que de imediato despertou minha curiosidade, pois ela até então nunca teria sido proativa e colaborativa em nenhum aspecto que não fosse para ela mesma e seus interesses. Eu, entretanto, anestesiada pela notícia concordei imediatamente, e marcamos para que eu fosse buscar o livro no outro dia, no período vespertino.
Mal sabia eu o plano perverso de Elizabeth que, por alguma razão ainda obscura a meu ver, realizou comigo um jogo de gato e rato. Marcou comigo repetidas vezes para consumarmos um empréstimo literário que durou duas semanas. Eu era covardemente convidada a sua residência para pegar o livro, e recorrentemente voltava para casa, tendo ganhado somente a perda de tempo e o sentimento de revolta. Era como se seus traços angelicais e a sua estrutura familiar não fossem bons o suficiente, e Elizabeth se via em um mundo entediante e monótono, tendo então como alternativa descontar seu descontentamento pessoal, ou simplesmente se alegrar na desgraça alheia.
Enfim, em determinado dia, me direcionei novamente à sua casa, já imaginando o desfecho da conversa, mas ainda esperançosa de ter o contato com a obra tão brilhante e inspiradora do mais famoso poeta e dramaturgo inglês. Entretanto neste dia, para a minha surpresa, me encontrei com sua mãe logo no portão de entrada, a senhora com um ar gentil e acolhedor estava sendo deixada pelo motorista, e quando me viu solicitou que eu entrasse para uma xícara de chá, fato inédito em toda a minha existência regada apenas a café moído.
Quando entramos Elisabeth, ela externou-se completamente deslocada, e incomodada com a minha presença em seu habitat natural, mas indefesa perante o convite realizado por sua progenitora. Como o desenrolar da conversa, ocorreu o inevitável, a mãe de Elisabeth após escutar o assunto referente ao livro, não sabia o que mais a surpreendera, se era o comportamento mesquinho de sua filha, ou se era a resiliência de uma adolescente pobre, em acessar uma literatura tão sofisticada como a de Hamlet.
Mas enfim, a partir desta situação, não tinha como ser diferente, após deixar claro o seu sentimento de desaprovação perante a postura da filha, a mãe solicitou a Elisabeth que pegasse o livro que, na verdade nunca saíra de sua casa. A mãe de Elizabeth deu o livro em minhas mãos, e me disse com ternura que eu poderia ficar com o livro o tempo que julgasse necessário. Me senti respeitada e estupendamente feliz.
Deixei a casa de Elisabeth com uma sensação de justiça feita, e com a convicção de que com determinação e paciência, pode-se alcançar consideráveis coisas na vida. Senti uma vontade intensa de sair correndo e gritando pela rua, mas me contive e soube administrar a euforia. Confesso que quando adentrei a minha casa, passei horas observando o livro, inspecionando seus pequenos detalhes e imperfeições de transporte, o cheiro de suas páginas.
O livro virou um companheiro indispensável, as leituras eram realizadas analisando os anseios das personagens e os seus pontos de vista perante uma trama muito bem elaborada. Fiz de tudo para que pudesse tirar o máximo do livro, em consonância, eu tinha todo este tempo disponível, então eu brincava com o livro entre gavetas e armários, eu o colocava em um ponto de fácil visualização. Admirava, recolhia e lembrava do empréstimo feito pela mãe de Elisabeth, pela tentativa de trazer à tona o correto, de orientar a filha que de alguma maneira tinha perdido sua moralidade.
Eu me deliciava com um empréstimo de uma obra tão valiosa, e sem tempo de devolução. Naquela vez eu estava no controle, pela primeira vez na relação entre mim e Elizabeth eu estava correta, ela teria sido confiscada, zurzida, e eu estimava um sentimento misturado entre a felicidade do que ocorrera com Elisabeth, e a felicidade de possuir o livro, ambas eram somadas vetorialmente em uma felicidade quase que clandestina.
Tal felicidade me guiou ao pensamento de que talvez pudesse manter a tão valiosa obra de Shakespeare em minhas mãos, o que de certa forma me agradava em niveis inimaginaveis. Pensar em ter comigo aquele livro, podendo ler e follheá-lo sempre que quisesse, me proporcionava uma enorme satisfação. No entanto, tal pensamento se fazia totalmente contrário a forma como fui criada e a tudo que me foi ensinado por meus pais.
Toda aquela clandestina felicidade me passava a falsa sensação de que talvez não fosse errado mantê-lo comigo. A felicidade que sentira ao possuir aquela obra, e ao perceber que de certa forma a atitude tomada pela mãe de Elizabeth possivelmente havia mudado pra sempre a relação que entre nós existia. Relacionamento esse onde eu interpretava um papel de inferioridade perante todo o ar superior daquela garota. Notei que talvez pela primeira vez ocupava uma posição de superioridade, mas isso não me parecia correto.
Resolvi que ao terminar de ler a obra iria sim devolve-lo, cheguei a conclusão, em meio ao meu emaranhado de pensamentos que não devia me sentir superior a ninguém e nem muito menos inferior. Entendi que nenhum ser humano é melhor que o outro, independente de sua situação financeira, seu nivel de intelectualidade, sua aparência ou o que veste, somos todos iguais. Não devemos nos sentir melhores ou piores que os outros. Cada ser possui a sua maneira de se fazer especial nesse mundo.
E foi com esse pensamento que minha felicidade antes clandestina passou a ser uma felicidade lícita.
Autor(a): lauaramirnda
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