Fanfics Brasil - Felicidade Clandestina Felicidade Clandestina

Fanfic: Felicidade Clandestina | Tema: Clarice Lispector


Capítulo: Felicidade Clandestina

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            O sol ainda estava nascendo, seus raios pareciam ter medo de cobrir todo o chão - como um bebê que abre os olhos pela primeira vez no mundo -, tudo parecia novo, incrível.


     Olhei para trás vendo minha mãe na janela e acenei para ela dando adeus, apesar de fazer o caminho para a escola todos os dias sozinha, minha mãe ainda tinha medo, mas a escola ficava a poucos quarteirões de casa e me sentia segura e bem mais velha que meus nove anos sempre que chegava sozinha.


            Quase todas as crianças da sala me olhavam maravilhadas quando viam que eu chegava sozinha. Eu adorava a atenção que eu recebia por algo que não tinha escolha, mamãe tinha dores muito severas nas pernas e não conseguia andar direito.


            As aulas eram quase todas iguais, chatas e sem graça, menos a de português, essa sim eu adorava. Mas só quando a professora falava de literatura e não de ficar conjugando verbos.


            Eu adorava livros, devorava eles como se fossem minha comida predileta e nunca estava satisfeita, sempre queria outro. Os livros me faziam ir para todos os lugares que eu quisesse. Através dos livros eu já tinha sido leão, espantalho, homem de lata, um urso, um leitão, um tigre, tantos personagens que mais pareciam meus amigos, vizinhos. Pareciam que iam aparecer se eu deixasse a porta de casa aberta.


            Minha professora preferida entrou na sala de aula, sorrindo docemente para todos nós, dava para perceber a mudança no ar. Todos estavam ansiosos para saber qual seria a matéria de hoje: gramática ou literatura?


            A professora Eliana era incrível! Eu sonhava em me tornar igual a ela um dia, viver no meio dos livros devia ser a melhor coisa do mundo! Além de ela ser uma pessoa incrível ela tinha uma livraria pequena na garagem da casa dela, pequena mais recheada de livros fantásticos, quase sempre que dava ela me emprestava os que eu quisesse ler.


            Ela parou no meio da sala e sorriu mostrando seus dentes brancos e prefeitos, em um contraste incrível com sua tonalidade de pele bem mais escura que a maioria dos alunos ali presentes, mas isso nunca pareceu ser um problema para nenhum de nós alunos que adorávamos a pessoa que ela era, ela era perfeita da forma que era.


            - Muito bem pequeninos! Esses rostinhos todos ansiosos – ela piscou um olho a nós a continuou a falar – Hoje vou apresentar a vocês Monteiro Lobato. - um suspiro de alivio pode ser escutado por toda a sala, enquanto ela andava ate sua mesa no canto da sala. – Alguém sabe quem ele é?


            Levantei minha mão assim como mais alguns colegas empolgados em poder responder a essa questão. Quem podia não conhecer ele? Gostaria muito que ele ainda estivesse vivo para conhecê-lo pessoalmente.


            A professora olhou para todos nós e colocou sua mão no queixo como se pensasse quem deveria escolher. Eu quase pulava na cadeira ansiosa por poder responder.


            - Parece que alguns de vocês sabem quem ele foi. O que sabe sobre ele Maria Lúcia? – que maravilhosa era a sensação e poder ser eu a falar. Arrumei-me na cadeira e então disse o que sabia sobre ele.


            -Sei que foi um escritor brasileiro muito famoso, uma das primeiras pessoas a escrever para crianças e sua obra mais famosa é o Sitio do Picapau Amarelo, que ficou muito conhecida porque se tornou uma serie que podemos ver de sábado de manha na TV. – respondi orgulhosa de saber essas coisas.


            Eu não perdia um episodio que fosse, eu adorava ver as confusões que os personagens se envolviam. Gostava de pensar que meu nome tinha vindo de lá, assim como a Narizinho que se chamava Lúcia.


            - Muito bem querida! Imagino que muitos de vocês assistam na TV, certo? - todas as cabeças da sala concordaram felizes. – Vamos saber um pouco mais sobre o autor e depois vamos ver suas principais obras. – Eliana sorriu e virou se para a lousa verde que estava atrás de si.


            Com um giz branco na mão e a voz cadenciada como uma música que encanta a todos, ela alternava entre escrever e nos contar sobre a vida do autor, nos contando curiosidades e fazendo-o parecer gente como a gente.


            A aula foi passando tão rápido que quando o sinal do fim do dia tocou me surpreendeu, eu queria saber mais, saber sobre os livros, sobre o autor sobre os lugares que agora levavam seu nome.


            Estava saindo da sala quando a professora me chamou pedindo que eu passasse em sua casa, ela achava que ainda tinha um ultimo exemplar de As Reinações de Narizinho, disse empolgada que passaria no final da tarde depois de ajudar minha mãe.


            Nunca tinha feito o caminho para casa tão rápido quanto hoje, a ansiedade de poder colocar as mãos nesse livro, ler as palavras ali escritas era tão grande que até mesmo minha mãe se surpreendeu com a rapidez e toda a ajuda que dei a ela.


            Quando sai de casa novamente o sol já começava a se por, colorindo tudo de laranja e nos deixando com aquela sensação de conforto. Sorri para o sol feliz e ao invés de andar devagar, comecei a correr cada vez mais rápido, me sentindo livre, a pessoa mais feliz do mundo. Abri os braços e sorri feliz, os raios de sol me tocavam aquecendo meu pequenino corpo.


            Alguns metros antes de chegar à casa da professora, parei de correr e respirei fundo ate me acalmar um pouco, o coração acelerava cada vez mais, não sabia se era tudo por causa da corrida ou pela ansiedade. Passei a mão no cabelo e no vestido que usava, como se assim pudesse deixar tudo perfeito.


            Caminhei devagar ate a porta da casa azul que havia na rua, era a única casa com uma cor alegre, como se de alguma forma ali dentro tudo fosse mágico.


            Respirei fundo ao parar na frente da porta e toquei a campainha, esperando poder levar dali o livro que tanto queria ler. A porta se abriu e por um momento achei de não havia ninguém ali, ate que olhei para a mesma altura que eu tinha e vi uma menina da minha idade me encarando desconfiada.


            Era a sobrinha da professora, uma menina que ninguém no bairro queria fazer amizade. Era cruel e esnobe com todos nós, se achava melhor que todos só porque estudava na escola particular.


            Tínhamos a mesma altura, ela tinha a pela ainda mais escura que a tia, mas conseguia ser ainda mais bonita, seus cabelos estavam todos trançados e por experiência sabia que tinha sido sua tia quem tinha feito, assim como fazia em mim também.


            - Oi – sorri nervosa – sua tia disse que ia me emprestar um livro. Você sabe se ela achou ele?


            - É ela disse. – ela cruzou os braços e deu de ombros – achou sim o livro.


            - E onde está? Pode me emprestar?


            - Até poderia, mas emprestei para uma amiga. - Senti a decepção tomando conta de mim – Volte amanhã e pode ser que esteja aqui.


            Pude sentir a esperança voltando aos poucos. Um dia a mais e eu teria em meus braços o livro. Concordei com a cabeça e dei tchau, olhando esperançosamente para ela.


            Enquanto voltava para casa sem o livro, mas com a esperança crescente em mim, pensei que assim podia ser melhor, que talvez se eu tivesse pego ele hoje, não aproveitaria como devia.


            Voltei no dia seguinte e recebi a mesma resposta: volte amanhã, e esse amanhã se transformou em uma semana. Não vi mais a professora na escola, ela nos dava aula apenas uma vez na semana.


            Todos os dias, no final da tarde eu ia até a casa azul e sempre recebia a mesma resposta, mas minha esperança era mais forte, queria muito o livro e por isso ela se mantinha firme e forte dentro de mim.


            Mais uma vez eu parava em frente à porta, levantei a mão para tocar a campainha, mas hesitei, esse livro valia tudo isso mesmo? Sem pensar muito apertei a campainha e novamente vi a menina, dessa vez seu olhar era de deboche, como se gostasse do que via.


            - Você demorou muito hoje para vir. Estava aqui até agorinha de pouco, mas emprestei para outra amiga. - ela sorriu enquanto cruzava os braços, parecia feliz em ver que mais uma vez eu não sairia com o livro.


            Uma voz vinda de dentro da casa assustou a nós duas, mas diferente de mim, a menina a minha frente arregalou muito os olhos. A reação dela me lembrou a mim quando eu aprontava alguma coisa e era pega por minha mãe.


            -Mentira! O livro esta na mesinha perto da porta. Onde esteve a semana toda esperando que ela viesse buscá-lo e você e me dizia que ninguém havia vindo. – a professora Eliana abriu ainda mais a porta, estava muito brava olhando para a sobrinha.


            - Não foi bem assim titia... A Senhora não entendeu o que eu disse ...


            - Chega! – ela cortou a menina. – Peço desculpas pelo comportamento de minha sobrinha, Maria Lúcia. Aqui está – ela me estendeu o livro, o qual encarei maravilhada. Peguei – o com as mãos tremulas e o abracei em meu corpo, com medo que ele caísse. – Ele é seu, não precisa me devolver.


            Olhei sem acreditar para o que ela dizia, mas seu sorriso confirmava: o livro era para sempre meu. Meu! Acenei com a cabeça sem conseguir falar nada e fui embora perdida em pensamentos e tomando todo o cuidado ao andar. Meu coração estava tão aquecido, como se o sol penetrasse por meu corpo e pudesse tocá-lo.


            Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.


            Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.


            Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.


 


 


 



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Autor(a): saamiii

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