Fanfic: A Felicidade nem sempre é Clandestina | Tema: Clarice Linspector
Eu morava no Recife. Frequentava a escola, mas não tinha amigos.
Era difícil arrumar amizade sendo tão, mas tão diferente das outras crianças. Tínhamos a mesma idade, mas semelhança física, nenhuma... Enquanto as demais tinham corpo de criança sem contornos acentuados, eu, além de ter baixa estatura, era gorda e já tinha seios desenvolvidos. Grandes, bem grandes... mas eu desenvolvi um truque para que não percebessem que todo o volume pertencia a mim: tinha preferência pelas blusas com bolsos, um de cada lado, os quais eu enchia de balas. Meu cabelo era um espanto: pixaim e vermelho queimado de sol.
Não era fácil. Não era fácil ser diferente. Era difícil aceitar que alguma criança pudesse gostar de mim pelo que eu era, pelo meu jeito de ser e não por aquilo que eu tinha.
Minha mãe era dona de casa, muito exigente e correta, mas meu pai era muito querido pela vizinhança. Meu pai era o dono da livraria da cidade - grande coisa! Eu já estava cansada daquela ladainha que eu não aproveitava essa oportunidade que a vida me deu, minha mãe sempre me cobrando para que eu fosse uma leitora assídua, daqueles livros grossos e cansativos. Nada neles me atraía.
Mas eles atraíam os meus colegas eu um dia, vi a oportunidade de me vingar desse falso interesse e o título mais poderoso para executar essa tortura era o famigerado "As reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato. Como de costume, possuía um número infinito de páginas; pesado, volumoso, só a aparência já me causava uma fadiga interminável.
Me aproximei daquela menininha que insistia diariamente em me pedir livros emprestados. Tão delicada e bonitinha e aqueles cabelos... os cabelos esvoaçavam no vento desenhando ondas calmas do mar, leves, livres. Sua pele não tinha sardas como a minha, seu caminhar era suave e não pesado como o meu, minha mãe dizia que eu parecia uma hipopótama!
- Ganhei o livro As reinações de Narizinho, do Monteiro Lobato, quer ler? Tá com cheirinho de novo, uma delícia!
Ela virou-se para mim, com os olhos em brilho, quase que numa cena romântica - sabe aquelas cenas que o mocinho fala com a mocinha e ela se vira lentamente com aquele olhar poético? Quase que ri.
- Quer? Quer emprestado? Passa lá em casa amanhã.
A bobona nem conseguiu falar, de tanta emoção, acenou positivamente com a cabeça naquele mesmo ar poético. Que graça! Mas a maior graça estaria no dia seguinte. Me deleitaria com a cena, imaginei várias e várias vezes, dormi desejando aquele momento.
Na tarde seguinte, lá vinha ela (eu espiava pela janela da sala, por detrás das cortinas), saltitando como uma gazelinha. Saí rapidamente para encontrá-la à porta.
- Oi.
- Oi.
- Não pode levar o livro hoje, emprestei pra outra menina, volte amanhã.
Eu nunca havia jogado um balde de água fria em alguém, mas nesse momento foi o que pareceu. A princesinha esmoreceu sua feição, num misto de lamento e decepção, acenou com a cabeça e deu-me as costas, arrastando os pés estrada afora. Fechei rapidamente a porta para que pudesse enfim, rir um pouco.
Toc-toc. Era o mesmo horário do dia anterior. Claro que era a frangotinha, eu já a esperava.
"Ah... a menina não me devolveu o livro ainda, vai ter que vir novamente outro dia..."
Eu encenava muito bem, minha mãe poderia investir em algo mais divertido para eu fazer, em vez de me atordoar com a cobrança da leitura.
Não sei por quantos dias ela retornou. Dia após dia, abria aquela porta e, com uma nova expressão e uma nova desculpa esfarrapada, dispensava aquela criaturinha. Mas a danada não desistia, já me dava uma gastura. Teve um momento que me senti cansada, mas quando deitava à noite eu já ansiava pelo dia seguinte, para convencê-la com uma nova história. A vez mais divertida se deu quando falei que alguém me devolvera o livro, mas ela atrasou e eu imaginando que ela havia desistido, passei o livro adiante. Neste dia ela quase chorou, mas eu não consegui ter pena dela, por mim que ela definhasse!
Eu me deleitei naqueles dias, mas infelizmente se acabaram.
Minha mãe havia desconfiado daquela aparição diária da pirralhinha. Enquanto eu me inebriava nos pensamentos, vendo-a chegar, minha mãe se aproximou por trás de mim e no momento que neguei novamente o livro pra ela, ela exclamou em alto e bom tom: “Mas o que se passa aqui?”
Não sei o que senti. Era um misto de confusão e ódio, de medo e repulsa. Em meio aos nossos murmúrios ela entendeu o que ocorria, me aplicando mais uma repreensão verbal, esclarecendo à outra que eu havia maquiavelizado uma grande farsa, pois o livro nunca havia deixado aquela casa.
Vi aquele fardo repousar nos braços da menina, sob as palavras da minha mãe: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser".
Entendeu? Minha mãe DEU o MEU livro pra ela! O meu livro! Não interessa se eu pouco me importava com aquela porcaria, era minha!
Tranquei-me no meu quarto revoltada com aquela situação, sentindo no meu peito cada farpa daquele revés.
Autor(a): damischieck
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