Fanfic: O que é necessário para ser feliz? | Tema: Felicidade; docura; ingenuidade.
O QUE É NECESSÁRIO PARA SER FELIZ?
Por Lidiane do Rocio Bernardo Chaves
Mariana era gorda, baixa, sardenta e de cabelos longos e crespos, tendendo para o ruivo. Apesar da idade, 13 anos, tinha os seios bem formados e já usava sutiã. Nessa época, com a mesma idade, todas nós não possuíamos nem sinal de um dia vir a ter seios.
Suas blusas estavam com os bolsos sempre cheios de balas, que vez ou outra dividia conosco. Sua melhor qualidade era ser filha de dono de livraria.
Era um sonho para qualquer uma das alunas do 7º ano, passar uma noite na livraria para poder folhear os milhares de romances e livros de histórias que se encontravam lá.
Mariana, assim como as crianças que têm tudo, não aproveitava a condição de também proprietária dos livros para ler, ler, ler o dia todo... Nem ao menos ia no comércio mantido pelo pai.
Nós, suas colegas, aproveitávamos muito menos ainda. Para se ter uma ideia, em nossos aniversários esperávamos sermos presenteadas com livros, mesmo aqueles “fininhos” de poucas páginas. Mas o que sempre recebíamos era um cartão postal do Rio de Janeiro, mostrando o Cristo Redentor. Acredito que Mariana tenha comprado centenas desses cartões na visita que fez àquela cidade alguns anos antes, pois em todos os aniversários de qualquer uma de nós, o cartão era idêntico.
A mensagem no verso era fácil de adivinhar: “Felicidades! Que esta data se repita por muitos anos!”. Acredito que a única coisa que prestava no cartão, era a caligrafia de Mariana, que parecia ser desenhada. Duvidava-se que era ela quem escrevia ou que o fazia de mão livre.
Embora fosse exageradamente afável ao conversar com as pessoas, vez ou outra deixava transparecer sua verdadeira personalidade. Era dissimulada e algumas vezes deixou escapar sua inveja por sermos bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres.
Tinha um talento nato para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho, fazia nos lembrar nossa condição financeira quando podíamos comprar doces somente quando nossas mães iam ao armazém realizar as compras de mês.
Eu desde pequena, desde que aprendi a ler, devorava artigos em jornais, revistas e livros que as titias me emprestavam.
Mariana, na qualidade de proprietária da livraria, tinha a oportunidade de ler todos os livros que quisesse. Mas não o fazia. Eu, na minha ânsia de ler, nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar lhe emprestados os livros que ela não lia.
Certo dia, Mariana descobriu uma forma de me torturar de verdade: como eu adorava ler, me disse que possuía um exemplar do caríssimo livro As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro com mais de 300 páginas e dezenas de histórias. Era um sonho de consumo para qualquer menina leitora. Soube de pouquíssimas meninas do colégio tinham o livro, mas infelizmente nenhuma era minha amiga. Mas Mariana, não. Além de sermos colegas de sala, sempre brincávamos juntas de amarelinha ou pular corda.
Sabendo de meu interesse pelo livro, disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até a tarde do dia seguinte, as horas pareceram eternas. Olhava para o relógio da cozinha era uma certa hora, muito tempo depois eu retornava e parecia que os ponteiros do relógio estavam no mesmo lugar. Mas ao mesmo tempo, eu era tomada por um sentimento de alegria e esperança tão grande, que parecia não andar, mas flutuar.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Curitiba. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido. Seu desejo de maldade, ainda não havia sido satisfeito. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer.
Minhas visitas diárias e ininterruptas à casa de Mariana, perduraram por muito tempo.
Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: “mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!”
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao frio das ruas de Curitiba. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: “você vai emprestar o livro agora mesmo.” E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, iniciei sua leitura imediatamente. Era como um amor há muito tempo aguardado ou a conquista de um prêmio.
Eu saía de casa para as compras com minha mãe, e logo retornava para meu “amante”. O livro era quem me entendia e me dava os conselhos mais acertados.
Tornei-me professora em uma escola pública; mãe e dona de casa. Apesar da vida ter sido maldosa comigo, sempre tratei as pessoas com a doçura com que Narizinho, se relacionava com todos. Minhas filhas, acabaram por absorver este meu modo de ser e agir.
Quanto a Mariana, tornou-se uma tia gorda e solitária, que vive em uma casa enorme e vazia com uma biblioteca abarrotada de livros, mas que não leu nem lerá nenhum.
(Baseado em LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1998)
Autor(a): luka
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