Fanfics Brasil - Coisas que Acontecem Só uma Vez Diário da Menina que Só Escreve à Noite

Fanfic: Diário da Menina que Só Escreve à Noite | Tema: Sexo, Sonhos, Adolescência


Capítulo: Coisas que Acontecem Só uma Vez

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Poucos meses depois de perder a virgindade, eu aprendi a falar inglês.


Naquela época, minha mãe mantinha uma guerra velada com minha tia, que, assim como ela, também era dentista e tinha uma filha única. Não se sabe quando aquilo começara, mas provavelmente muitos anos atrás, quando as duas eram meninas. Depois de adultas, as mulheres passaram a viver de acordo com aquela filosofia que prega manter os amigos próximos e os inimigos, mais próximos ainda. Nossas famílias moravam no mesmo prédio, a dois andares de distância, dividindo o elevador de acesso. Minha prima e eu tínhamos a mesma idade, diferindo apenas em meses, mas nunca fomos amigas, sequer nos falávamos, nem mesmo pela internet. Ela tinha memória ruim para idiomas e teria perdido o ano por causa disso, não fosse o professor particular, arranjado às pressas, a preço de ouro.


Valentim era o nome dele e falava inglês como nativo, porque vivera quinze anos em uma cidadezinha próxima de Bristol, da qual ninguém parecia saber o nome. Como uma providência divina, milagre em tempos estranhos, ele voltara ao Brasil e fora cair justamente no prédio onde vivíamos todos juntos. Ao chegar, Valentim deixara cartinhas em cada caixa de correio, oferecendo seus serviços com professor de inglês para quem estivesse precisando, principalmente meninos e meninas em idade escolar. Minha tia respondeu a carta no dia seguinte e, meses depois, Valentim salvou minha prima de mais um ano na oitava série.


Ele ensinava inglês na própria casa. Da janela do meu quarto, eu podia ver um pedaço do  seu apartamento - a mesa da sala, onde ele fazia as refeições sempre sozinho e onde os alunos sentavam, um após o outro, quase todos os dias da semana. Valentim era um homem magro, não cortava o cabelo nunca, usava os óculos de vez em quando, só quando interessava. Eu costumava encontrá-lo no elevador, subindo ou descendo, com o jornal aberto diante dos olhos, como se fosse um adulto, embora dentro de mim eu suspeitasse que ele tinha apenas vinte e cinco anos, nem um dia além disso.


Quando minha mãe perguntou se eu não queria aprimorar meu inglês, assim como minha prima, eu pensei em todas as coisas que eu poderia de aprender com um homem de vinte e cinco anos e disse sim, sabendo que inglês ocupava certamente o final da lista. Vencida pelo cansaço da batalha sem trégua contra minha tia, que lhe turvava a vista dos problemas domésticos, minha mãe respirou aliviada e considerou minha repentina disposição para o estudo uma benção concedida.


Comprei um caderno em branco e escrevi meu nome na primeira folha, embaixo do nome dele, como se já fôssemos alguma coisa um do outro. Valentim me recebeu na sexta-feira e disse que não usaríamos papel ou lápis, por enquanto. Ele tinha um método pessoal de ensinar inglês. Não trabalhava com apostilas e jamais mencionou o vestibular. Ele gostava de assistir a filmes americanos antigos, no idioma original - geralmente filmes de tribunal, nos quais os personagens falavam bastante e falavam palavras difíceis - como 12 Homens e uma Sentença, que foi um dos primeiros que nós vimos juntos. Depois ele servia chá gelado e nós conversávamos em inglês sobre o filme que tínhamos acabado de ver.


Valentim também gostava de falar longamente sobre o passado no interior da Inglaterra, na cidadezinha próxima de Bristol, conhecida sobretudo pela produção de vidro. Fora para lá fazer um intercâmbio de seis meses, ainda no colegial. Ficara quinze anos. Para acalmar a família no Brasil, enviava taças e garrafas pelo correio, produção local. Geralmente o vidro chegava trincado. Quando os pais pararam de mandar dinheiro, na esperança de que a miséria o faria voltar antes, Valentim começou a trabalhar meio período num bar, primeiro lavando os pratos, depois como garçom. De tanto limpar cerveja derramada pelos bêbados nas mesas e no chão do estabelecimento, sem contar o cheiro de bebida impregnado diuturnamente nas suas roupas, ele parou de beber, de súbito, como quem encontra uma nova religião. Desde então, Valentim só bebia chá gelado ou guaraná, que, coincidentemente, eram bebidas que o bar não vendia.


Perguntei se ele tivera uma namorada na Inglaterra. Valentim me contou então sobre a menina de Bristol. O nome dela era Lisa. Ele a descreveu como loira, de baixa estatura, dentuça como muitas inglesas, com uma marca de nascença nas costas, no formato de um trevo de quatro folhas, o que devia ter lhe trazido sorte. Lisa migrara, como fazem os pássaros, de Bristol para aquela cidadezinha ainda menor para fugir dos pais, que, fanáticos da Igreja Batista, tinham problemas com seu tabagismo e suas tatuagens de dragão. Assim como Valentim, ela arrumara um trabalho mal pago num restaurante que vendia sushi - peixe cru, como ela gostava de dizer - e gastava meio salário só em saquê, que, para ela, era outra espécie de água. Valentim me ensinou a falar o nome dela do jeito que a namorada falava. Eu nunca me esqueci.


Embora fosse uma pessoa comum, filha de comerciantes, neta de agricultores, Lisa tinha ideias estranhas, excêntricas no mínimo, como dar nome aos peixes que levava inteiros para a cozinha do restaurante e depois trazia em fatias finíssimas, da cozinha para a mesa dos clientes. Ela achava uma violência os peixes sem nome e a morte sem cerimônia. Servia o sashimi com um nó no estômago e dizia para si mesma: este se chamará Colin, o próximo Leonard. Ninguém mais sabia os nomes dos peixes, apenas ela e depois Valentim.


A todo momento, Lisa sentia o cheiro dos peixes na sua pele. Por conta disso, toda a sexta-feira, ela cumpria o mesmo ritual, que só podia acontecer no apartamento de Valentim, porque o dela não tinha banheira. Lisa espremia os limões cortados em metades na água parada do banho e enchia a banheira de gelo, que o namorado trazia diretamente do bar, onde nunca faltava. Ela deixava a roupa embolada no chão do banheiro, como um corpo sem vida, e deitava na tina, com os dentes batendo e os bicos do peito duros feito balas de revólver. Valentim tentara dizer a ela, inúmeras vezes, que sua pele cheirava apenas a sabão e shampoo, às vezes a iogurte, mas Lisa nunca se deixou convencer. Então ele só podia sentar sobre o tampo do vaso sanitário e ler o jornal do dia em voz alta, para que ela também aproveitasse. O professor não disse isso, mas eu imaginei que, além de ler o jornal, ele devia bater punheta para ela, nua na banheira, estátua de si mesma.



  • Vocês ainda se falam?

  • Não.

  • Nem pela internet?

  • Nem assim.


Antes da aula de inglês terminar, Valentim confessou que Lisa parecia um pouco comigo. Eu não era loira, nem baixa, nem dentuça, muito menos nascida em Bristol. O que ele sentia por mim talvez se parecesse com o que ele sentira por ela - provavelmente era só isso. Ao assinar o recebido, em vez de escrever o meu nome completo, como sempre fazia, Valentim registrou apenas L., que é a minha inicial e a dela.


Naquela noite, nem bem fechei os olhos, sonhei estar nua no gelo. Era como se o meu corpo tivesse passado o dia todo ansiando pela chegada da noite para poder estar ali, fora do tempo e do espaço, naquele vácuo da minha imaginação. Valentim também estava lá, no sonho assim como na vida, sentado no banheiro, lendo o jornal. Mesmo dormindo, eu sabia que não se tratava da realidade, porque meu corpo estava seco e quente, na cama, e o sonho era apenas o sonho. Eu perguntei se Valentim sonhava comigo também. Ele levantou os olhos do jornal e não respondeu coisa nenhuma. Eu falei para ele tirar a roupa, porque era muito deprimente ser a única pessoa nua. Valentim me mandou dizer aquilo em inglês. Como eu não sabia, ficamos os dois em silêncio. No sonho, nós dois só falávamos em inglês.


Muitas vezes eu sonhei coisa parecida. Variavam apenas as roupas no chão do banheiro, de acordo com a estação, e o jornal geralmente era a Folha de São Paulo, mas às vezes era o New York Times, sem motivo. Valentim jamais tirou as roupas e nem em sonho cheguei a ver o pau dele. Como um animal selvagem, foi crescendo em mim uma fome, a qual não sabia dar nome. Era algo que já sentira antes, sem direção específica. Antes das aulas de inglês, eu tirava a calcinha e borrifava um pouco de perfume entre as pernas.


De todos os filmes que Valentim me fez ver, Julgamento em Nuremberg foi sem dúvida o maior. Tenho a impressão de que não terminou até hoje e não terminará jamais, na verdade, por ser infinito enquanto dura. Na primeira hora, tirei meu sapato e minhas meias coloridas, descasadas, para ficar com os pés livres no sofá. Cruzei as pernas e, a cada movimento, subia o odor doce do perfume, como se viesse de lugar nenhum ou mesmo de dentro de mim. Valentim respirava fundo e faltava ar na sala. Na segunda hora, com o filme se desenrolando, sem pensar nos judeus mortos no Holocausto ou no sacrilégio que aquele tipo de conversa poderia parecer naquele momento, eu perguntei de repente se Valentim já transara com alguma aluna. Ele negou veementemente e disse que, se tivesse transado, o que não era o caso, teria cometido um crime sem perdão. Perguntei se ele também se proibira qualquer tipo de sexo, mesmo aquele que se faz sozinho, com a mão, pensando em uma aluna. Valentim foi reticente e disse que não achava que ninguém poderia ser culpado por algo que ocorrera somente em pensamento. A sala estava quente e não era por causa do verão, na verdade, o verão tinha pouco ou nada a ver com aquilo. Perguntei se ele se masturbava com frequência e se já tinha feito isso pensando em mim. Valentim foi vago: uma ou duas vezes.



  • O que você pensou em fazer comigo?

  • Quase nada.


Valentim disse que provavelmente ficaria só me olhando. Porque não havia nenhum crime que pudesse ser cometido só com os olhos. Naquele momento, faltava uma hora e oito minutos para o filme acabar. Parecia quase o mesmo tanto que durara a guerra em si. Eu abri minhas pernas, como as asas de um pássaro, e mostrei para ele o centro de tudo. Valentim puxou a minha calcinha e o cheiro de perfume tornou-se inconfundível, porque vinha misturado ao cheiro de sexo. Com os olhos embotados, Valentim observava a minha vagina como se fosse possível ver, além dela, por uma nesga, o paraíso que existia do outro lado. Ele disse uma frase que só fui entender anos depois: debaixo dos paralelepípedos, a praia. Quando estava na faculdade, estudando o Maio de 68 francês e as revoluções estudantis daquele tempo, deparei-me novamente com a frase e meu coração disparou. Pensei, por um segundo inteiro, que o livro era sobre a mim e finalmente a história do mundo e a minha vida tinham um ponto em comum. Depois, como era impossível que alguém mais soubesse o que Valentim me dissera aos sussurros naquele dia, compreendi que era bem o contrário. Ele colhera a frase dos livros e escolhera plantá-la no meio da minha vida, onde criara raízes, feito uma árvore de cem anos. De todo modo, ele me disse aquilo ao pé do ouvido e eu traduzi de outra forma - talvez eu tenha ouvido, por baixo das palavras, aquilo que elas realmente queriam dizer.



  • Você quer beijar?


Então, sem aviso prévio, Valentim desceu a cabeça e afundou entre as minhas pernas. Sentia a língua dele, como um lagarto vivo, caminhando por dentro do meu corpo. Valentim me chupava como a uma fruta, que, por razões evidentes, tinha gosto e não tinha fim. Nunca senti tempestade tão perfeita nos meus sentidos: não fazia diferença entre prazer, nojo e dor, tudo aquecia sem forma no mesmo turbilhão. Primeiro, eu fitava o teto manchado, com o lustre no meio, depois o teto cedeu e eu já podia ver o céu. De olhos abertos, eu sonhava imagens desconexas, como se em vez de refletir o mundo, minha retina projetasse cenas de dentro para fora. O menino que conheci na praia. O rapaz da novela das sete horas. O homem careca do comercial de Bombril. Finalmente Spencer Tracy, ator do filme que passava na televisão, que Valentim me contara, pouco antes, que tinha seduzido Katharine Hepburn, tirando-a dos braços de um milionário, com apenas meia hora de conversa - o que sinceramente era difícil de acreditar. A cada momento, um deles estava entre as minhas pernas, como se o meu desejo bastasse para produzi-los ali, como fantasmas. De repente, algo no fundo de mim estalou e meus órgãos encontraram a paz por segundos imóveis, memoráveis, que deixaram meu pensamento em branco.


Valentim se levantou com os lábios vermelhos. Discreto, demonstrado ter desenhado ali a linha divisória dos seus atos, ele virou-se para a parede e abaixou as calças até os joelhos. Assim como no sonho, eu não vi o pau duro. Valentim se masturbou, com a mão direita no pinto e a esquerda espalmada na parede, até gozar branco no reboco. Depois foi para a cozinha, como um soldado, com as calças na mão. Eu me levantei do sofá e caminhei até a parede, onde a porra escorria e fazia poça no chão. Da cozinha, ele me viu ajoelhar ali. Eu lambi o sêmen da parede, depois do chão, mostrei a língua pintada e o mundo parou por um minuto inteiro, porque aquilo era o que de mais importante acontecia. Valentim me olhava como se eu fosse não uma mulher, mas a própria imagem do Deus vivo. Os homens se impressionam com pouco.


Depois daquilo, não parecia haver mais nada a se fazer. Voltamos para o sofá. Ainda faltavam vinte minutos de Julgamento em Nuremberg, que assistimos em silêncio, como se estivéssemos na igreja.


Vencida a primeira barreira, que parecera intransponível, nunca quisemos revisitar o território conquistado. As aulas de inglês voltaram a ser somente aulas de inglês, sem sombra de segundas intenções, sem verões repentinos na sala de estar. Nunca mais sonhei estar nua no gelo e ele tampouco me contou mais histórias sobre Lisa, a namorada de Bristol. Foi como se uma pedra tivesse rolado na montanha e mudado o curso de um rio, que antes passava por um lado e, dali em diante, não passaria mais.


Só uma única vez, na nossa última aula, eu perguntei novamente se ele não tinha notícias da namorada - se não sentia saudades dela. Valentim me disse, como quem diz pela primeira vez aquelas palavras, que Lisa se mudara de volta para Bristol e, alguns anos atrás, pulara da janela, morrendo ao vinte e cinco anos de idade. Ele ainda vivia na Inglaterra, naquela época. Foi ao enterro de preto, como manda a tradição, e foi a última pessoa a partir. Deixara sobre a lápide uma limão maduro, que talvez ainda estivesse lá, praticamente um fóssil. Foi como se, ao contar aquilo para mim, Valentim me contasse não apenas a morte de Lisa, mas o fim da nossa própria história, em outras palavras.


Anos depois, minha mãe me telefonou no meio da noite, assustada, para dizer que o professor de inglês tinha morrido de repente e fora do coração.



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Autor(a): larissa_m.

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Comentários do Capítulo:

Comentários da Fanfic 1



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  • larissa_m. Postado em 18/02/2020 - 01:41:26

    A cada dois dias, um novo capítulo. Até breve, L.


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