Fanfic: Último Dia na Terra | Tema: Eu Sou a Lenda
Ele se levantou de sua cama, olhou pela janela. Uma luz amarela e nebulosa atravessava os painéis de vidro sujos. Saiu do quarto, passou pela cozinha, deixando os pratos e as louças sujas e fedorentas para trás. Pegou as chaves, destrancou a porta e saiu do prédio.
Ao caminhar pelas ruas desertas, observou um cachorro deitado ao lado de um pássaro na esquina. Pensou que os animais se davam muito bem sem os seres humanos.
Caminhou pela cidade vazia, saiu pela última estrada de terra que havia à zona leste e entrou em um bosque. Observou as árvores correndo para as nuvens, sentindo o vento em cada uma de suas folhas. O farfalhar era sua gargalhada. A natureza estava contente.
Invisivelmente, o fim da raça humana passeava pelo ar e pelos pulmões daquele homem. Em breve, faria sua temperatura corporal aumentar em dois graus Celsius, sua garganta secar em uma tosse incontrolável, seus brônquios ansiarem pelo oxigênio que não chegaria às hemácias, suas mãos apertarem-se contra seu tórax e seus joelhos se dobrarem na terra, até o último suspiro.
Aquele homem sempre viveu com medo daquele momento de despedida, mas agora já não tinha mais temor. Sabia que era necessário e estava conformado. A terra estava apenas retomando o controle do que foi dela, mas o homem espoliou temporariamente. Não tinha o direito.
De repente, desceu um pássaro preto e se sentou no ombro esquerdo do homem, enquanto ele ainda olhava para as árvores. O pássaro direcionou seus olhos lateralmente para encontrar os do senhor. Ele respondeu com um sorriso. Sem saber, aquele seria seu último. O pássaro gralhou e voltou para as correntes de ar.
O homem atravessou o bosque em silêncio. Se o vírus não interrompesse logo sua vida, ele mesmo o faria. Começava a questionar de que modo. Olhou para uma montanha ao longe e se dirigiu para ela. Viu no precipício rochoso a possibilidade de esperar que a terra o resolvesse, ou que ele mesmo o fizesse com um pequeno longo salto no escuro.
Ao chegar a quinhentos metros da estrada que subia o morro, seus joelhos fraquejaram e ele caiu no chão. Em duas tossidas, seu DNA contaminado manchou pela última vez aquele espaço, que em breve seria ocupado por bactérias e outros seres em simbiose. Ele se levantou depressa, não aceitando que aquele pedaço de terra fosse sua última visão. A neblina amarelada ainda o incomodava.
Chegando ao topo da montanha, andou por duas horas, de topo a topo, até chegar ao precipício. A visão do horizonte, em todas as direções, era incrível. Seu peito sentiu uma pontada de indecisão; deixaria ele ser vítima do vírus como o foram todos seus amigos, seus colegas de trabalho, sua esposa? Ou adiantaria o inevitável por suas próprias forças, se não o falhassem? Não sabia se conseguiria fazer seu corpo ir de encontro com as pontas basálticas que lhe olhavam de volta do abismo, então se sentou e ficou a encarar o pôr-do-sol pela última vez.
As lembranças do último ano vieram à mente de forma inevitável. Há poucos meses estava sorrindo e posando com seu recém-nascido no colo. Abraham era tão lindo, tão angelical, como deus pôde se apoderar da criança e deixá-lo para sofrer e vagar sozinho? Érica, com um vestido preto, portava a câmera que registrou a breve demonstração do sentimento paterno. A fotografia ainda estava na porta da geladeira, ao lado da louça entulhada, e ali estaria até o final dos tempos, mesmo após a luz rancorosa e a umidade do ar terem desbotado a cor do papel.
O último humano vivo não sabia como reagir a essa situação. O que seria esperado dele? Algo era esperado? Quem o esperava? Não, não havia ninguém para esperar algo de qualquer outra pessoa. O fim da humanidade também era o fim das cobranças, o fim das expectativas pesarosas, o fim da moralidade hipócrita.
Esses mesmos fardos não ocorrem em outros ambientes. O pássaro não espera complacência do jacaré, como a gazela não a espera do guepardo. A natureza simplesmente existe e marcha sem sentido nem propósito. Não há filosofia, apenas vida e morte, que são o mesmo.
A vida do jacaré é a morte do pássaro, a vida do guepardo, a morte da gazela. A vida incubada do vírus tornara-se o esgotamento da humanidade. Esta finalmente encontrara um predador capaz de fazê-la implorar inutilmente por misericórdia. Mas o vírus não respondeu, apenas agiu conforme se desenhou para agir, infiltrando-se onde não era querido e fundindo sua existência com a da vítima.
A vida continuaria. Os humanos deixariam parte de sua genética com as cargas virais, como deixaram outras marcas por toda a terra e mar.
Àquele momento, o planeta já havia aumentado sua temperatura média em dois graus Celsius, como agora ocorria também a este homem. Em algum incêndio do outro lado do mundo, animais corriam em busca do ar que faltava, em sensação parecida com a desse senhor, que agora caía de joelhos contraindo sua traqueia. Os recifes de corais esbranquiçaram-se pela falta de oxigênio, tal qual esse homem ora se empalidecia diante da neblina amarela.
O último respiro de um homem nesta terra foi exalado para o alto. Um pouco de seu assassino também saiu ao vento. Sua última visão foi aquela paisagem: alguns animais galopando na pradaria, as árvores gargalhando, os peixes saltitando no riacho, uma névoa cobrindo a cidade e a estrada de onde ele veio. Ele ainda estava vivo quando seu corpo escorregou para o abismo. Pôde ouvir o barulho do seu corpo cortando o ar em direção à inexistência, embora estivesse cego e sem fôlego. A última pulsação de seus ventrículos ocorreu enquanto a rocha de dois bilhões de anos alcançava o interior de sua têmpora, como há muito ela o desejava fazer. A terra estava livre.
Autor(a): blacksparta
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Comentários do Capítulo:
Comentários da Fanfic 1
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blacksparta Postado em 27/03/2020 - 21:10:10
Estou começando e este foi um exercício de "free writing" com poucas correções posteriores. Sinta-se à vontade para dar dicas sobre a estética, o conteúdo e o que poderia ser alterado para melhor. Obrigado.