Fanfic: slowly | Tema: good omens
Aziraphale tinha a tendência de ser devagar. Gostava de apreciar tudo o que fazia: sempre bebia seu chá com goles preguiçosos e contemplativos, aproveitando ao máximo a sensação morna e confortante que a bebida trazia nos dias frio e nublados em Soho. Lia seus livros sempre com o máximo de atenção e paciência, deleitando-se nos trechos e imaginando mil interpretações, emocionando-se e aprendendo — tomava todo o tempo do mundo para ler, e admirava livros com todo o coração. Poderia passar dias e noites inteiras fissurado em uma única leitura, e passaria pelo menos um pouco desse tempo cultuando o material, passando os dedos delicados e cuidadosos no couro velho, nas páginas amareladas e ásperas, vendo como cada livro era feito diferente. Alguns eram tão delicados, tão velhos, e de folhas tão finas que o anjo tinha que tomar o cuidado extra e alguns milagres para que não se desfizesse em suas mãos. Outros livros eram feitos de couro grosso, com folhas que o lembravam de papiro, de tão brutas que eram. Às vezes, os livros lembravam à Aziraphale de pessoas que ele conhecia. O anjo também comia lentamente, fazendo questão de honrar cada sabor que o cozinheiro havia ousado colocar no prato. Comida também era algo mundano que acabou amando no seu longo tempo na Terra, se pudesse (e ele podia) Aziraphale passaria um longo tempo apenas sentado em uma poltrona confortável, lendo um livro, bebericando chá, e mordiscando biscoitos (apesar de sua comida favorita ser certamente crepes franceses).
Já com Crowley, as coisas eram um pouco diferentes. O demônio parecia estar sempre com pressa, dirigindo seu Bentley imprudentemente e como se estivesse apostando corrida com tudo e todos. Sempre agia como se não tivesse tempo (mas, ah, tempo era o mais tinha, um ser que era abençoado — amaldiçoado, nesse caso —, a viver pela eternidade). A parte humana do anjo (seu corpo), parecia também sempre estar sem tempo quando o demônio estava por perto, seu pobre coração acelerava, como se disputasse com o carro qual seria a causa de seu descorporamento. Conseguia sentir o sangue fluindo nas veias, e, muitas vezes, parecia perder o fôlego, mesmo que não precisasse respirar. Primeiro, pensou que talvez isso se devesse ao fato do outro ser um demônio, seu inimigo natural. Mas com o passar dos anos, Aziraphale notou que não se sentia assim na presença de outros seres malignos (embora certamente os instintos do corpo humano sempre estivessem presentes quando na companhia de alguém que o anjo não admirava muito), e que, sem uma sombra de dúvida, Crowley estava longe de ser um inimigo.
Embora pensasse desta maneira, sabia muito bem que o anjo caído era de extremo perigo. E da maneira menos proposital que conseguia. Eram os olhos de cobra, adoráveis para o anjo. Era a compaixão que ainda tinha em si, mas que tentava esconder. Para Aziraphale, Crowley não era uma maldição, ou uma desgraça. Não poderia ser. Ele era cheio de defeitos, e certamente sucumbiu do inferno, mas ele era gelado. Você espera que criaturas desse tipo sejam quentes, efervescentes, prontas para queimar. Mas a cobra era fria ao toque, faltava-lhe o calor. Tão estranho, para o divino, algo tão frio ser tão gentil. Sabia que, no fundo, aquilo era tudo o que o de sangue-quente procurava: alguém para o aquecer. Pois é tão triste congelar no inferno, a certeza de que estás só.
Amava Crowley. Cada pedacinho dele, até as partes que supostamente não deveria amar; aquelas eram os pedaços que mais precisavam de amor.
Aziraphale era lento. Ficou seis mil anos dançando lentamente, absorvendo seus sentimentos, observando seus efeitos em si, tentando entender-se. Tentou ler-se, curioso para conseguir decifrar os próprios segredos, mas não era um livro. Questionou-se incontáveis vezes, sabendo que seus irmãos e irmãs no céu o julgariam. Talvez ririam da sua cara, talvez o olhassem com pena, ou com desprezo, ou com raiva. Rezava para Deus, mas este não respondia. Mas quando foi que tu disseste, que amar era pecado?
Sabia que o demônio estava esperando, e o que mais afligia seu coração, era que talvez ele esperasse para sempre. Não podia pedir tamanho sacrifício. E não pediu. Tentou não pedir, mas sabia que seus olhos — seus olhos humanos, cobertos de instintos humanos e sentimentos que talvez um anjo não deveria sentir —, o traíram. Imaginava que o tinham, pois Crowley sempre o olhava nos olhos, mesmo através daquelas lentes e escuras, e ele esperou. Esperou por tanto tempo, teve tanta paciência. Fora tão cuidadoso. Mas como seria capaz de dizer não, quando um anjo gentil e bobo lhe olha nos olhos, vê a tua alma, esbanja um sorriso triste e diz: Você vai rápido demais para mim, Crowley. Como seria capaz de não diminuir a velocidade?
Depois de tudo, depois do apocalipse, imaginavam que teriam paz.
Estava tudo bem.
Como Deus não respondia suas preces, o anjo decidiu que já era hora. A eternidade quase acabou, e já não tinha tanta certeza por quanto tempo teria o infinito. Mas sabia que queria aproveitar o resto de suas vidas.
Aceitou de bem todos os instintos desconhecidos que seu corpo mundano lhe fornecia, cobriu-se com os sentimentos que abafavam seus ouvidos e deixou para trás suas dúvidas e pavores: tomou duas taças de vinho e provou o sabor do pecado nos lábios do anjo caído. Mas o fez de sua própria maneira, lentamente, apreciando e aprendendo. Nunca imaginara que algo tão humano poderia significar tantas coisas, já que o ato em si era algo peculiar. Gostava de ficar perto assim de seu querido, e descobriu que os cabelos avermelhados eram tão macios quanto pareciam. Era simples, beijar. Mas Crowley parecia gostar demasiadamente, abraçando Aziraphale fortemente e sorrindo graciosamente enquanto explorava os cachos loiros do anjo com os dedos. Aprendeu que beijar era uma coisa que o outro parecia realmente gostar de fazer devagar e suavemente, ao contrário do restante.
Não fizeram mais que isso. Para eles, aquela intimidade era o suficiente. E Crowley se aquecia o bastante, enrolado nos braços angelicais. Aziraphale era morno e confortável: não havia ninguém mais seguro para uma cobra.
Deus poderia ter misericórdia.
Aconteceu tão lentamente, que Aziraphale quase não notou.
O primeiro sinal alarmante, fora a comida. Os sabores estavam perdendo o gosto. O chá tinha gosto de água, todos os vinhos eram amargos, e, quando se deu conta, não conseguia diferenciar o salgado do doce. Sabia que estava sendo punido. Sabia também que não poderia contar à Crowley, pois ele se culparia. Mas não era sua culpa. Não era culpa de ninguém, na verdade. Aziraphale havia feito sua escolha. Não voltaria atrás agora nem se pudesse. Por uma semana, o anjo comeu comida que não tinha gosto de nada, fingiu que tudo estava uma delícia, e, ao chegar em casa, sem conseguir se segurar, vomitava tudo. De pânico, talvez. Não tinha certeza. Apenas não conseguia permanecer com aquilo no estômago. Na primeira vez que vomitou, chorou. Na segunda e na terceira, também. Estava totalmente despreparado para a situação, e desconhecia o tamanho desconforto do ácido estomacal na garganta. Sentia a dor, mas o amargo de que os humanos tanto reclamavam não estava ali.
A dor também veio lentamente. Queimava. Falhou em esconder o que estava acontecendo de seu querido, já que as lágrimas teimavam em escapar de seus olhos. Mas suas costas ardiam, e sua pele parecia derreter. Era como se Deus estivesse arrancando fora seu coração. Brutalmente. Com as próprias mãos. E colocando um outro ser em seu lugar. E esse ser era mau. Ele arranhava violentamente, fazendo com que o anjo em processo de caimento se torcesse e dobrasse. Chorou e gritou um pouco também. Caiu. Caiu. Caiu.
Mas Crowley estava lá. Ele afagou seus cabelos e disse algumas coisas bonitas. E isso já foi suficiente para que Aziraphale sentisse como se o coração tivesse voltado ao peito. Pois ele não estava sozinho. Ele ficaria bem. Tentou amenizar suas dores, fez cafuné em seu cabelo, beijou seu rosto e o abraçou. O fez se sentir bom, por um tempo. E durante aquele tempo, foi suficiente.
Acontece que Aziraphale nunca terminou de cair. Ele teria que ficar a eternidade no limbo. Não sabia exatamente o porquê. Talvez o inferno o tivesse rejeitado. Ele seria um péssimo demônio, afinal. As dores diminuíram, e, quando na presença de seu amado, eram praticamente inexistentes. Suas asas agora eram de um prateado levemente azulado, mas continuavam macias como nunca. Ainda parecia ter o serzinho dentro de si, e ele muitas vezes ainda o arranhava, ou botava pensamentos ruins em sua mente. Mas Crowley sempre o assustava para longe. Ao que parecia, o pequeno ser tinha pavor de cobras.
Era um processo lento. Mas tinha Crowley ao seu lado.
Sempre teve.
Sempre terá.
Autor(a): milefolio
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