Fanfic: Bruto e Indecente | Tema: vondy
Duas semanas depois.
No momento em que avistei meu pai, foi como se toda aquela saliva
que havia cuspido para cima há dez anos tivesse caído bem no meio da minha
testa. Era capaz de senti-la escorrendo pelo meu rosto enquanto me
aproximava dele com um sorriso desajeitado nos lábios, tentando maquiar o
quão desconfortável eu estava com o nosso tardio reencontro.
Estranhamente ele não me disse nada — nem mesmo insinuou alguma
coisa —, apenas puxou-me para um abraço apertado antes de sussurrar o
quanto havia sentido minha falta.
Seu Fernando pegou a mala da minha mão e caminhamos para fora da
pequena rodoviária da cidade de Girassol. E, só então, me dei conta de que
realmente estava ali — de volta ao lugar que sempre havia evitado —, como
uma espécie de inferno astral.
“Bem-vinda de volta ao inferno, Dulce !” cantarolou o meu
subconsciente debochando de mim.
— Como foi de viagem, querida? — questionou-me ele, provavelmente
se perguntando o real motivo para ter escolhido vir de ônibus e não de avião,
como qualquer pessoa inteligente o suficiente para não querer passar quase
dois dias sofrendo na estrada.
“Terrível!” pensei em lhe dizer, lembrando-me de quantas vezes eu me
arrependi de ter entrado naquela porcaria de ônibus.
— Foi bem tranquila, pai — menti, forçando um sorriso. — Eu tive
bastante tempo pra apreciar a paisagem.
“Apreciar a paisagem… Sério mesmo, mulher?” questionei-me
mentalmente, odiando-me por ter dito uma coisa tão estúpida quanto aquela.
Meu pai nunca foi um homem de muitas palavras, mas ele sempre se
esforçou comigo. Atualmente — como já era de se esperar, vindo de um cara
tão bacana quanto ele —, seu Fernando me tratava muito melhor do que eu
merecia.
Entramos em sua velha caminhonete azul, uma que ele possuía desde o
tempo em que eu ainda morava com eles, e seguimos em direção ao sítio da
minha família, o “Paraíso”.
Durante toda a minha adolescência, sempre levei esse nome como uma
espécie de deboche universal — uma maldita piada interna —, pois, para
mim, aquele pedaço de terra estava longe de ser algo divino. Enxergava-o
mais como um inferno, como se ele fosse uma prisão que me impedia de
conhecer todas as coisas boas que o mundo tinha a me oferecer.
Ao menos, era isso o que a minha mente adolescente e imatura
costumava pensar.
Sempre fui uma mulher de cidade grande e já me sentia como uma
antes mesmo de chegar a me mudar. Odiava tudo o que era relacionado ao
sítio, as tarefas domésticas — sempre implicavam em sujar as minhas mãos
—, a falta de uma distração que me interessasse no meio de todo aquele mato
e terra e, principalmente, a enorme diferença entre mim e minha mãe.
Diferentemente daquilo que pensei, o meu pai não ficou calado atrás do
volante, perdido em seus próprios pensamentos. Ele tocou em todos os meus
calos, em apenas vinte minutos de estrada rodada. Questionou sobre a minha
vida na cidade grande, sobre o meu trabalho e, como era de se esperar, sobre
a minha tão repentina decisão de tirar férias.
— Está tudo bem mesmo, Dul? — meu pai prosseguiu, sentindo
cheiro do problema.
Poderia ter dito a verdade. Poderia ter falado sobre todos os problemas
que havia enfrentado na última semana. Poderia ter contado sobre Pablo e o
quanto eu estava me sentindo arrasada com o término de nosso
relacionamento. Poderia ter confessado o verdadeiro motivo de ter voltado
para o lugar que tanto amaldiçoara no passado. Poderia ter feito tudo isso,
mas não o fiz.
— Está sim... Eu só estava com saudades e precisava de umas férias;
meu trabalho estava me sufocando demais... — comentei, ainda com aquele
sorriso forçado no centro dos meus lábios. — Então resolvi unir essas duas
coisas.
Conhecia-o bem o suficiente para saber quando ele não engolia uma
das minhas mentiras. Minha percepção quanto às suas reações havia se
aperfeiçoado bastante durante a minha adolescência, quando eu me obrigava
a inventar desculpas esfarrapadas para que ele me deixasse sair de casa.
Seu Fernando não era desses que cortam a mentira no segundo em que
a identificam, ele gostava de deixar a pessoa alimentá-la e ir se enforcando
sozinha, limitando-se a observar até onde ela conseguiria levar aquilo. E,
infelizmente, alguma coisa me dizia que eu não iria muito longe com aquela
história de saudade e trabalho sufocante.
— O engomadinho não quis vir com você?
Com “engomadinho”, referia-se ao Pablo, o desgraçado que
costumava ser o meu noivo.
— Não... — respondi desconcertada com todo aquele assunto. E como
isso não o impediria de continuar cavando até descobrir toda a verdade,
decidi ser um pouco mais direta, não deixando margem para perguntas
semelhantes, algo que ele certamente faria. — Ele não… Ele não vem, pai.
Meu olhar tentando fugir do seu foi o suficiente para que Fernando
ligasse uma coisa à outra e resolvesse aquelas palavras cruzadas. Depois
disso, finalmente chegou o silêncio pelo qual eu tanto ansiava. Contudo, isso
tornou o clima ainda mais tenso do que durante a aplicação de seu
interrogatório.
Continuamos dessa forma, evitando olhares e palavras, até chegarmos
ao nosso destino: o Paraíso que eu — de acordo com a mentira que acabara
de contar — buscava para descansar a minha mente do trabalho.
Quase não reconheci a minha mãe quando ela saiu da casa e se colocou
ao lado da porta, esperando-nos com aquele seu olhar enigmático e crítico.
Ela estava muito enrugada e parecia ainda mais magra do que já era, bem
acabada mesmo. Os anos a encontraram de uma maneira que realmente me
assustou, mas não que dona Blanca Savinnon se importasse com uma coisa
tão fútil quanto a sua aparência.
A primeira coisa que a minha mãe disse ao me encarar, não foi um
acolhedor “bem-vinda de volta, minha querida” ou um gentil “eu senti tanto
a sua falta”.
Não, é claro que não.
Esse tipo de coisa não combinava com ela.
Em vez de algo acolhedor ou gentil, ela optou por uma frase carregada
de deboche:
— Então, você finalmente lembrou que tem uma família aqui no
Inferno, Dulce ?
Esse era bem o tipo da minha mãe: atirar palavras que eu havia
pronunciado no passado — coisas como “Inferno” — de volta na minha cara.
Diferente do meu pai, dona Blanca não conseguia manter certas coisas para
ela mesma.
— Eu também adorei te ver, mãe — respondi, tentando não abalar o
sorriso animado que carregava em meus lábios. Interrompi o nosso abraço e
completei: — Estava morrendo de saudades.
Antes que ela pudesse responder com um “estava? Nossa, eu nem
percebi em todos esses anos que você não me visitou”, meu pai apareceu,
comentando algo que desviou o seu foco para outro assunto e,
consequentemente, impediu a nossa primeira briga.
Passei pela sala, que era decorada com uma espingarda pendurada na
parede, e segui o homem com a mala até o meu antigo quarto.
Quando o adentrei, ao observar os detalhes daquele lugar, que
continuava exatamente da forma que o havia deixado quando, aos vinte e
quatro anos de idade, decidi ir embora, a nostalgia atingiu-me em cheio.
Caminhei até a cama e toquei a colcha lilás que a cobria, sentindo a sua
textura e a maciez. Foi impossível não sorrir, lembrando-me de todas as
vezes em que havia chorado embaixo dela, amaldiçoando o nosso sítio e
sonhando com o dia que eu finalmente o deixaria para trás.
Voltei meu olhar para a velha escrivaninha e vi o porta-retratos com
uma foto minha e de Maite — minha melhor amiga do tempo de escola.
Estávamos em nossa formatura, tão felizes e cheias de sonhos, encerrando
uma fase de nossas vidas.
Ainda que metade de todos aqueles planos — incluindo a parte de
encontrar o cara perfeito —, não tivesse dado muito certo, eu consegui ir
embora do “Inferno” e construí uma nova vida, uma da qual eu realmente me
orgulhava. De certa forma, podia me considerar uma vencedora.
“Vencedora” tornei a mentalizar essa palavra, esforçando-me ao
máximo para não a achar irônica demais.
Definitivamente, não era assim que eu me sentia.
Voltei para a sala e, ao olhar de novo para a espingarda na parede,
questionei: — Por que vocês têm uma arma dentro de casa?
— Isso aí? Ah, você sabe, é só por segurança — meu pai prontificou-se
em responder. — Nós nunca sabemos quando vamos precisar de uma.
Detestava armas, quase tanto quanto detestava o interior, e não via
sentido em possuir algo tão mortal ao alcance da mão. Em minha opinião,
que claramente não era partilhada pelos meus pais, aquele objeto só servia
para criar ainda mais problemas.
— Atualmente já existe algo bem mais prático, chamado de 190 —
respondi, aproximando-me da mesa em que eles estavam sentados. — Você
liga, eles vêm e os caras maus são presos. Simples assim.
A minha mãe riu daquela sua forma nada sutil de ser, como se eu
estivesse lhe contando uma piada.
— Até a polícia chegar aqui no sítio, todo mundo já vai estar morto —
ela argumentou. Depois de passar a mão por seus cabelos dourados, que eram
mesclados com mechas grisalhas, prosseguiu: — Não sei se percebeu, mas
não moramos num apartamento de luxo no centro da cidade, Dulce .
Aquele soco na minha cara foi tão forte que o meu pai precisou mudar
de assunto para diminuir a tensão que se criou.
— Falando em negligência, amanhã faz três anos desde o acidente... —
seu Fernando comentou, deixando-me curiosa sobre o assunto de que
estavam tratando. — Dá pra acreditar?
Como detestava estar em uma conversa da qual eu não compreendia
nada, não demorei a questionar:
— Que acidente?
— O acidente que envolveu aqueles amigos nossos... Nós te contamos
em uma das nossas ligações... — meu pai respondeu, fazendo com que me
lembrasse parcialmente do que eles estavam dizendo.
Tinha sido uma tragédia.
Numa das pequenas ruas de Girassol, um veículo dirigido por um
bêbado chocou-se violentamente contra um outro ocupado por uma família.
A noite foi marcada por sangue e destruição. Os meus pais foram uns dos
primeiros a aparecer no local, fizeram o atendimento inicial, mas a demora de
socorristas preparados agravou toda a situação.
Todo mundo morreu — exceto, é claro, o homem alcoolizado ao
volante.
— Lembrou, Dulce ? Sendo sincera, nem houve tantas ligações assim
nesses últimos três anos pra você se esquecer de uma delas — dona Blanca
tornou a me atacar, deixando claro que realmente queria uma briga.
Os olhos escuros do meu pai se voltaram na direção dela. Ele
provavelmente se deu conta de que, dessa vez, mudar de assunto não
adiantaria, não impediria aquela briga que a sua mulher estava tentando
causar desde o instante em que coloquei o meu pé no sítio.
Antes que alguém dissesse mais alguma coisa naquela mesa,
finalmente respondi às provocações dela: — você quer que eu vá embora,
mãe? — Ela abriu a boca para responder, mas eu não lhe dei a chance e
completei: — se você quiser, eu vou.
— Ela não...
— Eu só disse que você não ligou tanto assim nos últimos anos — ela
se defendeu, cortando o meu pai e me colocando como a errada da história, o
que infelizmente não estava muito longe da verdade, se eu fosse sincera
comigo mesma. — E eu não menti.
— Por Deus, Blanca. Ela acabou de chegar aqui.
— Tudo bem, pai — eu o interrompi, levantando-me da mesa. — Eu
não sei por que estou surpresa com essa recepção da mamãe... Surpresa
mesmo foi ela não ter feito isso lá na porta.
— Foram dez anos, Dulce . — A minha mãe me relembrou, como se
eu não soubesse. — Dez anos.
Tive que me segurar para não lhe responder com “vocês também não
foram me visitar”, como se isso fosse uma justificativa boa para o tempo em
que passei longe do sítio da minha família.
— Nós podemos continuar com essa briga outra hora? Estou cansada
demais pra...
— Podemos sim, só espero que não demore mais dez anos — ela me
interrompeu, claramente vencendo aquele primeiro round.
Era mesmo oficial.
Eu estava de volta.
E como já dizia Dorothy — e os estagiários incompetentes da minha
empresa —, não há lugar como a droga do nosso lar.
Autor(a): babyuckermann
Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).
Prévia do próximo capítulo
Dentro do meu antigo quarto, deitada na cama, foi como se a minhaficha finalmente caísse.Estava em casa.Em Girassol, no sítio em que chorei, esperneando e amaldiçoando osmeus pais e o universo por me manterem prisioneira. No pedaço de terra emque dei o meu primeiro beijo — e, um ano mais tarde, perdi a minhavirgindade no banco de trás ...
Capítulo Anterior | Próximo Capítulo