Fanfics Brasil - Descompasso Pétalas ao Chão

Fanfic: Pétalas ao Chão | Tema: Magi: The Labyrinth of Magic


Capítulo: Descompasso

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Seu corpo parecia flutuar. Estava escuro e podia ouvir a voz de Murmur ao fundo.


— Não... Eu conquistei a dungeon... Não pode...


Um riso distante ecoou fraco antes de sentir os raios de sol batendo no rosto. Estava em um aglomerado de pessoas. As roupas que elas usavam claramente não eram de Kou e o barulho era ensurdecedor. Todos pareciam comemorar algo, estavam felizes. De repente o cenário se distorceu junto com os rostos que agora pareciam em agonia. Pouco a pouco as pessoas foram caindo e formando pilhas de cadáveres e tudo que Kourien fez foi correr a esmo.


— Não! Eu não sou mais uma criança assustada!


Ao vociferar aquilo parou no meio do caminho, percebendo que estava em uma ponte. No meio dela algumas silhuetas lutavam. As pernas se moveram novamente, dessa vez querendo alcançar os vultos dançantes. Ajudá-los.


— O que você tá fazendo aqui?! Precisa fugir! Corre!


— Não! Eu sou forte agora! Eu posso--!!!


Antes que terminasse a frase sentiu o liquido vermelho quente e espesso respingar em seu rosto, mal teve tempo de entender e viu o rapaz com quem discutia cair sem vida no caminho de pedras, havia sido atacado pela centopeia-dragão que encontrou na dungeon.


— Não... Não...! De novo não!


Ao levantar o olhar desesperado viu Murmur lhe observando do outro lado da ponte, parecia analisar a cena com um sorriso indecifrável nos lábios. E então uma luz forte lhe cegou, a trazendo para a realidade.


— Kourien-sama...? Kourien-sama! – A voz doce foi facilmente reconhecida pela garota, mas a visão demorou a focar na mulher.


— Onde...? Baa?


A voz saiu fraca e sua garganta ardeu, fazendo com que tossisse algumas vezes antes de ter um copo de água oferecido pela outra. Com a ajuda de uma das servas se sentou na cama e gemeu de dor. Seu corpo parecia ter sido pisoteado por uma manada. Kourien bebericou a água enquanto tentava se localizar e organizar os pensamentos.


— Você está no Palácio do Céu Estrelado, princesa.


— Quanto tempo faz? Quanto tempo eu fiquei na dungeon?


— Você está dormindo há um dia, se passaram duas semanas desde que saíram daqui.


— Duas semanas... Saiya! Ela...


— Eu sinto muito, Kourien-sama. O corpo... Está sendo mantido pelos selos mágicos. Esperam por você para os ritos fúnebres.


Os olhos da garota imediatamente se encheram de lágrimas e logo ela estava cercada pelas servas que a acompanhavam. Ficaram com ela por longos minutos até que a mesma voltasse a falar.


— Eu... Eu preciso de um banho... E de um tempo sozinha, por favor.


— Como quiser, princesa.


As mulheres se afastaram para que pudessem cumprir a ordem. Enquanto algumas enchiam a banheira, outras arrumavam as vestes que ela usaria depois. Assim que os preparativos terminaram as mulheres deixaram o quarto.


Kourien se levantou com certa dificuldade e então foi para frente do espelho. Seu corpo não tinha mais nenhum ferimento, com certeza Kouen havia usado o poder da djinn Phenex para curar as marcas, mas ainda assim sentia seus ossos doerem. Após o que pareceu horas em frente à própria imagem finalmente foi para a sala de banho. Choramingou baixo ao entrar, mas logo relaxou os músculos sob a água quente. Precisaria encarar as consequências da dungeon logo logo e sabia que antes mesmo que pudesse lidar com a morte de Saiya já seria colocada para treinar seus poderes de djinn.


Ao pensar sobre tudo aquilo sentiu sua garganta trancar novamente e sentiu raiva. Se debateu com força dentro da banheira, fazendo com que a água vazasse pelas bordas e o barulho se misturasse ao choro alto e descontrolado. Chorou como a criança que era enquanto ninguém olhava e deixou que tudo de ruim saísse com aquilo. Em algumas horas voltaria a ser a quinta princesa imperial de Kou e não poderia mais demonstrar tais sentimentos por um único soldado. Muitos morriam pelo Império, era necessário manter a postura por todos eles. Ou ao menos era o que seus irmãos diziam.


- x -


Na sala principal os súditos da princesa a aguardavam em silêncio. Touya estava encostado próximo à porta de entrada enquanto Jiang olhava pela janela. Kourien apareceu no topo das escadas acompanhada de Baa que usava seu braço de apoio para a mesma. Apesar da tentativa de passar um semblante sério era notável a tristeza da jovem. Abaixo dos olhos caídos era possível notar as marcas arroxeadas do cansaço e os lábios que se curvavam sutilmente para baixo. O hanfu azul-escuro fazia aquela sensação mais forte ainda junto dos cabelos presos em um coque elaborado. Assim que ela deu o primeiro passo na escadaria todos se curvaram levando as mãos unidas em frente ao corpo para recebê-la.


— Kourien-sama, bem-vinda de volta! – A voz de todos soou uníssona quando ela chegou ao pé da escada.


— Podem se erguer, obrigada por esperarem por mim. Wu Fen, por favor avise ao Kouen-oniisama que eu estou pronta.


 — Como desejar, princesa.


O homem deu alguns passos de costas curvando-se sutilmente antes de deixar o saguão. Após isso Kourien apoiou a mão direita sobre o corrimão, apertando um pouco os dedos sobre o entalhe como se pensasse no que dizer. Além dos assistentes havia alguns soldados mais próximos, serviçais da cozinha e alguns poucos escravos. A garota suspirou frustrada. Era constantemente treinada para falar por seus irmãos se um dia fosse necessário, mas na prática era muito mais desesperador do que nas aulas de oratória que detestava. Não era comunicativa em grandes grupos, nunca teve tantas pessoas lhe olhando tão atentamente como nos últimos anos. Não sabia quanto tempo havia ficado em silêncio, mas logo um dos soldados se pronunciou um pouco impaciente.


— Kourien-sama, perdoe a minha insolência... Mas por que dispensou as tropas? Nós teríamos sido de grande ajuda e... Talvez a Saiya estivesse viva agora. – O homem não havia dito nada que a própria garota não tivesse pensado sozinha, mas Touya se exasperou com aquela acusação velada enquanto outros olhavam receosos na direção da princesa.


— Como se atreve?! A princesa fez o que achou certo! Não cabe a você questionar as ordens dela! Eu devia...!


— Touya. – Antes que o guerreiro fosse para cima do outro chamou sua atenção, finalmente encarando o homem que havia dito tais palavras. Um sorriso triste se desenhou nos lábios rosados antes que se aproximasse dele enquanto os demais abriam caminho.


— Qual o seu nome? – Perguntou ao parar em frente ao outro. O soldado possuía quase o dobro de sua altura e um porte forte e disciplinado. Ao ver a garota ali se curvou para ela, ficando sobre o joelho de forma que suas alturas se aproximassem.


— Chongan.


— Chongan, você está certo. – Foi possível ouvir alguns sons de surpresa em volta enquanto Touya franzia o cenho claramente incomodado. – Se as tropas tivessem ido talvez Saiya estivesse aqui conosco. É uma culpa que sempre vou carregar, ela morreu sob as minhas ordens.


Touya se moveu desconfortável, mas Kourien apenas levou as mãos até o rosto do soldado a frente fazendo com que ele a encarasse.


— Mas Saiya era minha melhor guerreira e morreu defendendo o que nós acreditamos juntas. Graças ao sacrifício dela e ao esforço de todos que me acompanharam hoje seus filhos podem estar com vocês um pouco mais, não é?


A garota seguiu com o sorriso pequeno que poucos percebiam ser mera formalidade e então soltou o rosto do homem para voltar ao pé da escada.


— Eu sei que é difícil seguir as minhas ordens. Eu não conheço nada sobre a guerra ou sobre o mundo... E minha inexperiência custou a vida da Saiya. Mas eu queria realmente ser digna de liderar vocês um dia, por isso escolhi ir sem as tropas. Foi infantil e burro, eu peço desculpas. Eu conto com a sabedoria e o apoio de todos para aprender com esse erro infeliz, eu prometo que a morte dela não vai ter sido em vão. Saiya era mais que minha serva, era minha companheira. Minha amiga. E eu nunca tive muitas. Com o poder de Murmur eu vou me tornar mais forte e então eu vou poder lutar ao lado de vocês. Proteger suas famílias e a nossa casa. Eu peço que confiem em mim e sejam a minha espada até que esse dia chegue.


Kourien sabia que muitos dos homens que a serviam não concordavam com ela recebendo poder tão cedo, ainda mais sendo uma princesa. Era uma criança que havia crescido isolada de todos, sem aprender nada sobre o Império por um longo tempo. Fazia pouco mais de quatro anos que a garota havia chegado ao Palácio do Céu Estrelado e esse tempo não era suficiente para conquistar a lealdade de todos. Ainda mais sendo filha de uma das consortes quase esquecidas do imperador. Ainda assim não houve mais comentários contra suas escolhas após aquilo. Chongan – assim como os demais – baixou o rosto e jurou sua lealdade mais uma vez e então Kourien os dispensou com um aceno de mãos. Estava tremendo e sentia suas pernas fracas, mas precisava manter as aparências ou ninguém a levaria a sério. Da porta principal uma de suas irmãs a observava sorrindo satisfeita com o pequeno show da menor.


— Você realmente cresceu muito, Kourien-chan. – A voz suave fez com que a garota arregalasse os olhos e procurasse a origem daquelas palavras, sorrindo surpresa ao encontrar os olhos cor-de-rosa tão parecidos com o seus.


— Aneue! Eu não sabia que tinha voltado! – Antes de terminar de falar já estava nos braços da meia-irmã Kourin apertando-a com cuidado.


— Meu marido veio resolver assuntos com o Kouen-oniisama, aproveitei pra ver você. Soube que conquistou a dungeon, parabéns!


— Sim... Mas não foi exatamente uma vitória.


— Você está viva e com o poder do djinn, com certeza é uma vitória. Você já falou com a família da Saiya? – Kourien meneou a cabeça em resposta. – Então vamos, vou acompanhar você até lá.


Kourin puxou a menor pelo braço enquanto desciam pelo caminho longo até a saída do Palácio do Céu Estrelado enquanto Baa as seguia um pouco atrás assim como as suas demais damas de companhia. Uma carruagem aguardava pelas duas a poucos metros de lá para que pudessem ir até onde os pais de Saiya estavam na construção onde se realizavam os atos fúnebres. A meia-irmã tinha um semblante altivo, embora Kourien soubesse bem o quão gentil e suave ela podia ser. Quando chegou no palácio aos dez anos foi Kourin quem lhe ensinou tudo que sabia sobre vestimentas, acessórios e comportamento. Ela lhe transformou – junto de Judal – na princesa que era atualmente, gostava muito da companhia da mulher.


— Você ainda deseja se tornar uma general? 


A voz aveludada se fez presente após alguns instantes de silêncio. Kourien observava o anel que abrigava o djinn antes de ter a atenção roubada.


— Sim... Talvez se eu me esforçar bastante o Kouen-oniisama permita.


— Do que você tem medo, Kourien? – A mulher soava compreensiva enquanto falava, os olhos gentis observando cada gesto da menor.


— Você é feliz, aneue? – A pergunta pareceu quase deslocada do assunto, mas os olhos rosados da quinta princesa permaneciam firmes, ansiosos por uma resposta.


— Sim, eu me considero feliz. Eu tenho uma boa vida e um bom marido, ajudei o império a expandir sem grandes conflitos. E também...


Kourin tocou a barriga e sorriu ao ver isso os olhos da irmã mais nova se arregalarem enquanto iam da barriga para seu rosto e vice-versa. Kourien não era de sorrir genuinamente, mas naquele momento estava realmente feliz. Em um salto se ajoelhou em frente à outra para lhe tocar a barriga com cuidado, recebendo os braços abertos da mulher a convidando a ter aquela conexão.


— Um bebê! Parabéns, Kourin-oneesan! – Os olhos infantis pareciam brilhar enquanto as mãos delicadas tocavam a barriga da outra sendo guiadas pelos dedos da mesma.


— Obrigada, Kouri. Você vai ser titia, é bom estar preparada!


As duas riram baixo enquanto seguiam alheias a qualquer outra coisa. Por um momento a garota pôde esquecer-se da perda de Saiya e das inseguranças que tinha. Pôde esquecer-se de suas obrigações e ser uma criança normal com sua irmã mais velha. Adorava Kourin, desejava que ela estivesse sempre por perto. Após alguns minutos chegaram ao lugar onde aconteceria o rito fúnebre. Avistou os pais de Saiya antes mesmo de descer, sendo incentivada pela mulher que lhe acompanhava. Logo Baa, Jiang e Touya já estavam atrás de si para entrar no grande salão que cheirava a incenso a ponto do ar parecer pesado.


Estava com medo de encarar as faces conhecidas e ser acusada mais uma vez de ser causadora da morte da outra. Saiya fora uma das primeiras que conheceu ao chegar no palácio, realmente tinha muito carinho por ela. A garganta chegou a trancar com esse pensamento, mas conteve a vontade de chorar. Não podia fugir dali, nem tinha esse direito. Era sua responsabilidade e devia isso à amiga.


Assim que o casal avistou a princesa se curvaram baixando a cabeça até que ela desse sinal para que se endireitassem. Os olhos dos dois pareciam fundos, deviam estar chorando há horas e não os julgava. Queria poder chorar livremente também.


— Eu sinto muito pela perda de vocês... Eu sinto muito não ter conseguido salvar ela.


A voz da garota soava baixa e receosa, mesmo que se esforçasse para não transparecer seus sentimentos. Kourin já estava longe da conversa e apenas Baa, Jiang e Touya se prostravam ao seu lado. Houve um minuto de silêncio que pareceu durar a eternidade antes que os pais de Saiya falassem algo.


— Esse... Esse foi o caminho que ela escolheu. Ela escolheu servir a princesa com dedicação... Minha filha...!


A mulher não conseguiu evitar chorar mais uma vez, logo sendo amparada pelo homem ao lado. Cada vez mais sentia sua garganta apertar com aquilo, queria fugir dali.


— Ela... Ela foi uma grande guerreira! Sua lealdade nunca vai ser esquecida, eu nunca vou esquecer...


Antes que percebesse as lágrimas rolaram por suas bochechas rosadas enquanto ela tentava se controlar. O casal olhou para ela com certa surpresa antes de voltar ao seu luto, dessa vez em silêncio. Kourien limpou o rosto com as costas das mãos de forma desajeitada e apressada antes de se afastar dos dois e ir para perto de onde o corpo da guerreira estava. Tocou as mãos frias que tinham os dedos entrelaçados e agradeceu, não ficando muito tempo ali para que pudessem enfim dar início ao rito e parar de prolongar a dor dos familiares.


Ao final das despedidas poucos restavam nos arredores daquele salão. Kourien ainda sentia o cheiro forte impregnado em suas roupas e cabelos fazendo com que se sentisse enjoada. Kouen se aproximou em silêncio e apenas apertou o ombro da irmã enquanto a encarava antes de deixar o lugar. Koumei por sua vez a abraçou brevemente e forçou um sorriso triste em apoio para então deixa-la novamente com Kourin.


As horas pareceram se arrastar nos dias que se seguiram até que a quinta princesa voltasse a ter a energia de antes. Pouco a pouco o clima de luto do Palácio do Céu Estrelado começava a esvair, em boa parte graças à distração que a voz barulhenta do Magi causava todos os dias ou dos treinos que se intensificavam entre a princesa e Seishuu Ri, que havia ficado encarregado de ajuda-la com o equipamento djinn. Mas não havia um dia que a garota não sentisse a perda de Saiya.


 


2


 


— Vamos, Kourien-sama! Já tá cansada? – A voz grave e altiva de Seishuu soava divertida enquanto ele encarava a menor ofegando à sua frente.


— É fácil pra você falar! Olha o seu tamanho...! – Kourien respondeu fazendo um bico enquanto apoiava as mãos nos joelhos tentando recuperar o fôlego.


— Isso não é desculpa pra uma Candidata a Rei não é mesmo?! – Ao dizer aquilo um riso alto ecoou em resposta a expressão desgostosa da outra.


— Tsc...! Você vai ver! – Logo Kourien empertigou o corpo e segurou a espada em frente ao rosto, fechando os olhos para se concentrar mais uma vez. – Murmur! Me empreste seu poder!


Ao dizer aquelas palavras um brilho forte tomou as mãos da mesma partindo do anel dourado que continha o símbolo mágico. Os dedos enegreceram e se alongaram como se fossem garras e a espada se alongou, assumindo uma aparência similar a ossos. Um de seus braços adquiriu um tom acinzentado enquanto um de seus olhos se tornava escuro como a noite. Estava dando tudo de si e ainda assim não conseguia completar aquele maldito equipamento. Seishuu gargalhou mais uma vez arrancando um rosnado baixo da menor, mas antes que ela pudesse retrucar uma voz conhecida ecoou pelo pátio.


— Que merda aconteceu aqui, bruxa?! – Judal flutuava ao lado de Kouen em sua direção, distorcendo a expressão com certo desgosto.


— Fica quieto, Judal-chan! Eu não consigo completar isso! É impossível!


Logo o magi já estava rindo junto do outro guerreiro enquanto Kouen apenas suspirava baixo.


— Precisa se concentrar mais, irmã. Tenho certeza que logo vai conseguir. Além do mais... Você está indo bem pra poucas semanas de treinamento. Cuidado pra não exaurir seu magoi.


— Aniue, você podia me ajudar né? – Kouen soltou um riso fraco com a expressão pidona que a outra lhe dava.


— Descanse por hoje. Na próxima semana treinamos juntos. Seishuu, preciso de você na reunião então não demore.


Kourien assentiu rapidamente enquanto desfazia aqueles pedaços da transformação e guardava a espada na bainha. Kouen permaneceu ali enquanto Seishuu se afastava com um aceno.


— Até a próxima, princesa Kourien!


— Até logo, Seishuu! Obrigada pela ajuda.


Após aquilo Kouen andou em direção a um dos jardins que ficava próximo ao palácio de reuniões diplomáticas. Kourien o acompanhou enquanto olhava confusa para Judal que apenas encolheu os ombros.


— Você sabe que estamos em meio a expansão de território, não é? – Após longos minutos Kouen começou a falar, fazendo com que a garota se sentisse um pouco desconfortável com o assunto. Tinha uma breve ideia dos rumos daquela conversa.


— Sim... Kouyan vai casar com um dos príncipes de Lenor, certo?


— Exato, o casamento será em breve. Mas não é Lenor que me preocupa. O Reino de Noradraan fez um pedido bem específico. É difícil ignorar.


— Aonde quer chegar, aniue?


— O rei Hescon quer que você se case com o filho dele... Parece que é algo que ele discutia com nosso pai antes mesmo dele se tornar imperador.


— Kouen-oniisama...! Eu... Eu posso me tornar uma boa guerreira se me der a chance! – Naquele momento o homem parou em meio ao parque deixando um suspiro longo escapar.


— Eu sei que não gosta disso, Kourien. Mas precisa entender que talvez seja necessário. Eu prometo que vou fazer o possível para adiar o quanto der, mas enquanto isso preciso que colabore. Eles estarão aqui amanhã pela manhã. Preciso que você esteja presente.


— Eu... – Kourien queria discutir e se negar, mas lembrou-se da última vez que aquele assunto havia vindo à tona e das consequências trágicas que a reação da mãe desencadeou. Sentia-se presa. – Eu estarei lá, onii-sama. 


Kouen não disse mais nada e logo deixou a irmã e o Magi para trás. Judal soltou um muxoxo baixo claramente entediado com aquilo tudo e logo voltou sua atenção para a garota.


— Vamos bruxa... Tudo isso me deu fome. E considerando o desastre do seu masou durante o treino você também precisa recuperar energia.


— Não ajuda em nada você ficar debochando, Ju-chan!


— Huh? Não me chama por esses apelidos vergonhosos, bruxa! Anda, vem logo!


Os dois seguiram pelo caminho de pedras coloridas até atravessarem completamente o parque. Havia algumas pessoas sentadas sob as arvores que rapidamente se erguiam para cumprimentar os dois com reverências exageradas. Logo estavam onde Judal costumava ficar na Cidade Proibida. Os servos daquele palácio pareciam acuados, mas não os julgava sabendo como era o sacerdote. As damas de companhia de Kourien – que a seguiam onde quer que fosse – ficaram do lado de fora aguardando a garota enquanto ela sentava no sofá de madeira acolchoado junto com o outro esperando que uma escrava deixasse o chá sobre a pequena mesinha que separava os dois nobres. Estava distraída, alheia aos arredores e mal percebeu quando Judal pediu que levassem comida ali. Apenas foi desperta quando alguns doces já estavam dispostos em uma mesa redonda que estava mais afastada dali. O magi estalou os dedos para que ela acordasse e então a garota o acompanhou até o móvel pegando um dos pequenos doces que ali estavam.


— O que eu faço Judal? – A voz da garota soou chorosa ao perguntar aquilo, fazendo com que o rapaz arqueasse as sobrancelhas.


— O que você quer fazer? – A resposta veio meio abafada enquanto ele já devorava uma torta de pêssego sem sequer esperar para falar.


— Eu quero ser livre... Mas o imperador me mataria se eu desobedecesse de novo.


— Se o Kouen conseguir comprar tempo... Talvez você consiga mudar esse destino estúpido.


— Eu estaria condenando o En-sama.


— Até parece que o Bode não conseguiria destruir Noradraan se quisesse. O Kouen tem três djinns, pode conseguir qualquer coisa.


— O que você sugere? Que eu traia o Império?


— Por que não?


Kourien fez uma expressão condenadora para o outro, mas ele apenas gargalhou. Judal era mimado e egoísta a maior parte do tempo, tinha absolutamente qualquer coisa que desejasse e falava o que bem entendesse. Ninguém o desafiava naquele lugar. Ainda assim confiava em Judal como conseguia com poucos, estavam juntos desde anos antes. Sabia que havia verdade por trás daquele mar de deboche e cinismo. Tinha certeza que se chegasse a trair Kou Judal lhe aplaudiria apenas pelo caos e, com sorte, lhe apoiaria na empreitada. Mas não tinha a intenção de trair os irmãos, Kouen seria o próximo imperador sem sombra de dúvidas e as coisas se ajeitariam. Kou ainda tinha futuro longe das garras daqueles sacerdotes estranhos que dominavam os corredores cada dia mais.


Ambos seguiram devorando os doces oferecidos até se sentirem satisfeitos e então logo o cansaço começou a se abater sobre o corpo pequeno. Sem que notasse uma chuva sutil começou a cair fazendo um barulho agradável nos telhados de pagode, aumentando a sonolência ainda mais. Se levantou minutos depois acompanhando Judal até a espaçosa cama, deixando o corpo cair ao lado dele, as mangas longas dos tecidos brocados dos hanfus espalhando-se sobre as cobertas. Certas coisas não mudavam e mesmo tendo dúvidas sobre a reciprocidade, o magi continuava sendo seu melhor amigo. Estava acostumada a dormir com ele quando era menor e passavam juntos a maior parte do tempo, por isso não costumava se importar com decoros perto dele. E seus servos também não interferiam nisso. Dessa forma acabou adormecendo ao lado do Alto Sacerdote por longas horas.


 


3


 


Kourien não estava preparada para encontrar – mais uma vez – o rei de Noradraan. Hescon Tailieri não lhe trazia as melhores lembranças e por isso costumava guardar tudo relacionado a ele bem fundo em sua memória, onde raramente revisitava. O reino ficava próximo do Planalto Tenzan, sendo vizinho do Clã Kouga e no caminho para o domínio futuro de Magnostadt o que tornava o território inevitavelmente parte dos planos do Império. Um suspiro longo abandonou os lábios finos da princesa enquanto a mesma se olhava no espelho. O hanfu de tecidos rosa com azul era ajeitado pelas damas de companhia com calma enquanto Baa terminava de arrumar o coque direito, prendendo-o com o acessório de metal. Aquele dia seria realmente longo e por isso tentava se demorar o máximo que podia ali, deixando claro que todas deviam lhe ajeitar sem pressa, pois qualquer erro seria notado. É claro que aquilo era apenas uma desculpa, mas nenhuma delas parecia realmente notar. Enquanto colocava seus anéis de forma arrastada as mulheres deixaram o quarto. Apenas Baa observava a garota de forma preocupada.


 


— Kourien-sama, tenho certeza que logo o Príncipe Kouen vai reconhecer sua força e não vai precisar ir adiante com esse casamento... Talvez se o Sacerdote falar com ele...


— Não, Baa... Eu preciso fazer isso, ao menos por hoje. A última vez... Se eu desobedecer o Imperador mais uma vez tenho certeza que ele não vai apenas me ignorar.


— Princesa...


— Eu queria que a hahaue estivesse aqui.


— Tenho certeza que a sua mãe estaria orgulhosa, Kourien-sama.


 


Ao dizer aquilo a mulher se curvou sutilmente arrancando um pequeno sorriso da outra, mas logo as duas foram interrompidas por batidas no marco de madeira. Wu Fen entrou pouco depois, logo se curvando diante das duas.


 


— Princesa, o rei Hescon já se encontra no salão de reuniões. Estão todos lá e Kouen-sama solicita sua presença.


— Avise a ele que já estou indo, por favor.


 


O homem assentiu e então se curvou mais uma vez antes de dar alguns passos para trás e deixar o cômodo. Estava na hora de encarar suas responsabilidades, mesmo que odiasse cada pequena parte disso. Queria ser livre.


Antes que se desse por conta já estava na carruagem que a levaria até o salão onde os encontros diplomáticos aconteciam. Sabendo que o Rei Hescon já estava na Cidade Proibida não podia se dar ao luxo de demorar demais. Baa lhe acompanhava em silêncio enquanto encarava a criança à frente. Havia visto Kourien nascer e crescer, era como uma filha e por isso se preocupava muito com as consequências de encarar Hescon novamente. A última vez também fora a última noite com sua mãe Tao e por mais que a princesa aparentasse estar bem tinha certeza que aquela criança amedrontada de anos atrás se escondia em algum lugar ali dentro daquele corpo pequeno. Suspirou baixo com a lembrança chamando a atenção da garota para si, pigarreando como se quisesse distraí-la.


 


— Não se preocupe, Baa. Prometo não fazer nada errado como na última vez.


— Você não fez nada de errado, princesa. Não foi sua culpa.


 


Kourien sorriu tristonha com aquele comentário, mas antes que pudesse responder a carruagem parou e Wu Fen se aproximou para abrir a porta. Desceu com a ajuda do mesmo e esperou que a dama de companhia estivesse ao seu lado para enfim entrar no salão após respirar fundo. O espaço não era tão grande, mas acolhia facilmente todos os Ren e mais os convidados, o que não era pouco. Havia três mesas longas que formavam um “U” no centro do lugar. A primeira pessoa que viu fora o Imperador Koutoku, seu pai, que lhe encarou friamente antes de se ajeitar na cadeira larga. Ao lado dele estavam Gyokuen e Kouen. Na mesa à esquerda se encontravam sua irmã Kouyan e Hakuei, que a encarava com um sorriso terno. Na mesa da direita estavam seus irmãos Koumei e Kouha junto de Hakuryuu e do rei Hescon.


A garota fez uma breve mesura ao ter a atenção de todos para si, não se permitindo encarar o imperador por nenhum segundo. Ainda assim tinha certeza que a mulher ao lado dele sorria de maneira duvidosa. Em poucos instantes estava entre as duas irmãs enquanto Baa permanecia em pé atrás de si.


 


— É um enorme agrado ver a princesa Kourien novamente, ficou tão bonita quanto o esperado. – O homem de idade avançada se pronunciou rapidamente enquanto erguia uma taça em direção à garota que se forçou a sorrir para o convidado. As sobrancelhas grossas o faziam parecer irritado mesmo quando sorria.


— Com certeza não sou digna de tal elogio, mas agradeço a gentileza Hescon-sama. – Kourien sentia seu estômago embrulhar, as mãos tremiam de medo de desagradar o imperador ou o convidado. Queria chorar ali, mas não podia.


— A princesa é realmente muito educada, não? – Gyokuen logo se fez ser ouvida enquanto respondia ao monarca estrangeiro. – Ela é muito forte, conquistou uma dungeon sem as tropas estarem presentes... Mas ainda assim tem a delicadeza esperada de uma boa esposa. – O homem pigarreou e se ajeitou na cadeira ao ouvir sobre a dungeon.


— É notável, realmente. Meu filho Maulgan com certeza estará à altura, logo conquistará a própria dungeon e estará a serviço do Império. Ficaremos honrados em auxiliar no campo de batalha. Nossos homens são muito fortes, é nosso dever proteger nossas mulheres, não o contrário.


 


Kourien precisou beber um gole da água que havia sido servida para não demonstrar o desgosto que sentiu. Não queria ser protegida por ninguém. Enquanto mantinha a taça colada aos lábios percebeu Kouen lhe observando, sabia que ele devia estar receoso que respondesse aquele absurdo. Ele mais do que ninguém sabia o quanto a garota queria ser uma guerreira, o quanto queria acumular força e estar na linha de frente. Não seria uma boa esposa, ao menos não nos padrões exageradamente idiotas de Noradraan. Ainda assim Kourien apenas ajeitou os punhos do hanfu e ficou em silêncio, não prejudicaria seu irmão daquela forma.


 


— As próximas negociações já se iniciaram também. Balbadd seria uma excelente adição ao Império. Assim como Lenor será. Tenho certeza que Noradraan se beneficiaria com tais alianças. – Koutoku logo desviou o assunto para a chatice política de sempre. Sempre havia uma enorme enrolação antes de enfim discutirem a pior parte.


— As iguarias de Lenor seriam muito bem-vindas, assim como os tecidos. Tem sido turbulenta a estabilização do reino após o assassinato da Rainha ao que me parece.


— Nós já estamos lidando com isso. O rei de Lenor se tornou incapaz de lidar com a situação, está senil. E o príncipe não faz ideia do que está fazendo. Por isso nós encontraremos os culpados e como prova de gratidão aceitarão a princesa Kouyan como esposa do príncipe. Não há com o que se preocupar. – Kouen respondeu firmemente antes de beber um longo gole do vinho.


— E Balbadd?


— Balbadd vem decaindo a cada estação, nossos sacerdotes já estão trabalhando nisso. Com certeza será parte do Império.


— Quanto a Noradraan, devo me preocupar com possíveis... Contratempos? – Hescon pareceu pensar antes de falar, mas ele já tinha decidido desde o início aonde queria chegar. Kourien engoliu em seco quando seus olhos cruzaram com o do homem.


— Nenhum contratempo vai atrapalhar nosso acordo. E se qualquer problema aparecer lidaremos com rigidez. – Koutoku respondeu sem hesitar. – Assim como fizemos no passado.


— Ótimo, ótimo! Devemos discutir então sobre o acordo, não é mesmo? Agora que a princesa está presente.


— Nossas exigências são simples. Se submeter ao Império e permitir que o banqueiro atue nas finanças do reino. Nossos sacerdotes serão de grande ajuda.


— Como um reino amigo de muitos anos... Quero que Noradraan tenha autonomia nas decisões cabíveis ao que se refere ao povo. Aceitamos a implantação dos costumes de Kou, mas queremos manter alguns próprios que são a base da nossa história. Não podemos abrir mão.


— Isso pode ser negociável, se aceitar discutir mais tarde.


— Parece bom. E por último, eu me pergunto, com qual idade a princesa Kourien se tornará esposa de Maulgan? – A garota imediatamente olhou para Kouen como se suplicasse em silêncio para que ele lhe ajudasse. As mãos pequenas se apertaram na borda da mesa enquanto isso, forçando-se a se conter no lugar.


— Se me permite, Imperador, eu acredito que o djinn de Kourien tem muito potencial atualmente. E ainda terá nos próximos anos, preciso dela por perto enquanto as expansões continuarem. Sendo assim e levando em consideração a boa relação que temos com Noradraan, peço que espere até seus 20 anos. Lhe garanto que ela vai estar mais preparada para suas obrigações e também terá mais conhecimento para oferecer ao reino.


 


Kouen falou com calma e sutileza, utilizando-se do poder militar que os djinns representavam para convencer Koutoku. Ele era seu favorito e claramente sua palavra tinha peso. Mas antes que o Imperador se pronunciasse, aparentando desgosto com o pedido, as portas se abriram bruscamente. As borboletas negras pareceram se agitar quando Judal entrou no salão e encarou os demais e um sorriso satisfeito se desenhou ao ver o desagrado de alguns.


 


— Desculpem o atraso... Eu realmente não queria vir. Ah! Pelas caras parece que cheguei no momento certo! Sobre o que estão discutindo, com certeza a opinião do Alto Sacerdote deve ser acatada, não? – Kourien olhou chorosa para ele quando o mesmo sentou na cadeira vazia que havia ao lado de Hakuryuu.


— Estávamos decidindo quando o casamento deve acontecer. – Kouen foi rápido, não tinha certeza de como Judal se comportaria. Nunca tinha. Era sempre uma surpresa.


— A minha Candidata à Rei... – Judal frisou enquanto sorria na direção de Hescon por cima da mesa. – Ainda tem muito o que treinar. Além do mais eu dei o djinn pra que ela possa auxiliar o Império na expansão, o djinn seria inútil parado em Noradraan tão cedo.


— O En-sama sugeriu que o casamento aconteça quando eu completar 20 anos... O que você acha Judal-sama?


— 20? Eu concordo com 20. Não abro mão dela antes disso.


 


A garota franziu o cenho para o Magi ao ouvir aquilo, mas sabia que ele falava de forma provocativa de propósito. Hescon por sua vez pareceu se incomodar, mas Gyokuen interveio antes que ele tivesse a chance.


 


— Se o Alto Sacerdote acha que essa é a melhor escolha então devemos ouvi-lo, não é? Meu amado Imperador?


— Está decidido. Em 6 anos a 5ª Princesa Imperial Kourien Ren se casará com o Príncipe Maulgan Tailieri e se mudará para o Reino de Noradraan como símbolo do nosso acordo.


 


Hescon definitivamente não pareceu feliz, mas assim como os demais se levantou e se curvou diante da decisão do Imperador. Kourien queria morrer, não havia sentido em viver sabendo que seria aprisionada mais uma vez. Sentia-se aprisionada desde sempre, como um pássaro cujas asas haviam sido cortadas e já não via sentido em cantar. Ainda assim seu medo lhe corroía as entranhas e a impedia de se opor. Não tinha medo de ser punida, mas sabia que seus assistentes e damas também seriam. Não queria carregar mais sangue por simples egoísmo.


Aquela reunião pareceu demorar muito mais do que realmente tinha durado. Mesmo após receber permissão para se retirar os demais seguiram lá falando sobre assuntos pertinentes aos dois aliados.


Quando chegou ao lado de fora sua visão já estava embaçada e seus olhos ardiam. Baa chegou a se aproximar da garota, mas antes que a pudesse tocar ouviu ela falar entre dentes afastando-a.


 


— Eu quero ficar sozinha! Não me siga! Não quero que ninguém me siga!


 


A voz se mantinha forçadamente baixa para que os demais não escutassem de dentro da sala e ignorando a chuva forte que havia começado a cair a princesa correu para um dos jardins da Cidade Proibida. Seu peito ardia pelo esforço de se mover com aqueles tecidos pesados encharcados e pelo choro que agora saía livre. Como poderia se casar com alguém quando seu reino lembrava-lhe de uma das piores noites de sua vida? Não via sentido naquilo. Kourien respirava tão rápido e com tanta força que o ar parecia não ser suficiente, a desesperando ainda mais. Em meio ao jardim caiu de joelhos na grama, apoiando as mãos no chão enquanto tentava inutilmente respirar, seu pulso doeu no mesmo instante. Estava hiperventilando e estava sozinha. Sentia-se uma falha. Quando tentou chamar por ajuda sua voz não saiu, mas em poucos instantes sentiu os ombros serem puxados por alguém. Judal estava ali tão encharcado quanto a própria garota, as sobrancelhas unidas enquanto a forçava a encará-lo.


 


— Respira comigo! Você vai mesmo deixar aquele velho acabar com você desse jeito?! Respira. Comigo. Kourien. – A voz do magi parecia abafada pela tempestade e ele precisou forçar a garganta para que ela lhe entendesse em meio ao choro. Pouco a pouco, imitando o sacerdote, ela conseguiu voltar a respirar razoavelmente bem.


— Eu... Não consigo fazer isso! Judal-chan! – A voz chorosa era carregada de desespero enquanto as mãos pequenas se agarravam no hanfu negro com detalhes em dourado do magi. – Não consigo! Eu não quero!


— Seis anos, bruxa. Você tem seis anos pra evitar essa merda então.


 


Kourien mantinha os punhos fechados com firmeza nele, soltando-o apenas para que ela se abraçasse no mesmo. Sabia que Judal detestava qualquer tipo de demonstração de afeto e tinha certeza que ele fugiria daquele abraço, mas contrariando suas expectativas o garoto a pegou no colo e passou a andar em direção ao Palácio do Céu Estrelado.


 


— Bruxa idiota. Você só me dá trabalho.


 


「  ۞  」


 


Após ser recebida com preocupação pelos servos do Palácio do Céu Estrelado a garota foi colada sobre um banco de madeira. Seus cabelos tão ensopados quanto o próprio hanfu pingavam criando rapidamente uma poça no chão do cômodo. O corpo tremia enquanto a garota abraçava a si mesma sendo observada pelo magi logo atrás. Judal se encostava em uma das paredes enquanto as mulheres apertavam toalhas macias contra a princesa tentando tirar o excesso de água antes de soltar os cabelos longos daqueles enfeites de metal. Em pouco tempo as cortinas próximas da cama foram descidas para que a garota pudesse se trocar enquanto Judal apenas bufou baixo e andou pelo espaço até que as cortinas se abrissem de novo e pudesse ver Kourien sentada na cama parecendo abatida.


O Alto Sacerdote conhecia a garota desde que havia chegado a Kou. Muito antes dela se tornar uma princesa. Antes mesmo do antigo Imperador Hakutoku ser morto. Sabia de cada detalhe dela, suas manias e principalmente seus medos. E mesmo que ela raramente falasse sobre a mãe sabia que ela fazia parte dessas crises de pânico que rondavam o casamento arranjado. Queria dizer que não se importava, mas “a bruxa insuportável” havia se tornado sua melhor companhia, mesmo que sem querer. De certa forma ela era um pouco como ele próprio. Se isso era bom ou ruim, não sabia dizer. Nove anos era o tempo que conhecia ela, oito anos era o tempo desde que havia prometido torna-la sua Candidata a Rei. Também não sabia o porquê, mas havia cumprido.


O garoto se aproximou arrastando o hanfu pesado pela chuva e então sentou em uma cadeira ao lado da cama. Kourien tinha uma aparência cansada, os olhos avermelhados pelo choro assim como as bochechas e o nariz. Os dois ficaram em silêncio por longos minutos antes que ela olhasse de esguelha para ele, suspirando baixo sem saber o que dizer. Mas Judal não era tão paciente assim, por isso bufou baixo antes de enfim quebrar o silêncio.


 


— O que foi isso, bruxa?


 


Kourien seguiu em silêncio por mais longos minutos enquanto olhava a chuva cair pela janela. Os trovões pareciam ensurdecedores e violentos, mas ela sequer piscava. Quando finalmente resolveu responder sua voz parecia fraca e distante.


 


— Ele me lembra a hahaue, Judal... Na primeira vez em que eu vi ele ela estava comigo. E depois se foi. O En-sama disse que ela tinha fugido, mas ela jamais fugiria... Ela... Se foi, Judal. Por causa dele minha mãe se foi.


 


O magi continuou pensativo após aquilo. Ele não fazia ideia de quem eram seus pais, já que desde sempre tudo de que tinha memória era a Al-Thamen. Provavelmente se falasse algo soaria grosseiro. E normalmente não se importava com isso, mas no momento não via graça em provocar a garota.


 


— Eu não sei o que fazer. Mesmo que eu tenha seis anos pra tentar mudar isso... Como eu vou mudar? O imperador nunca vai me deixar fugir desse casamento. – A voz de Kourien soava desanimada e sem esperança no momento, o que não impressionava Judal nem um pouco.


— Você nunca vai saber se só ficar reclamando. – A resposta foi direta, mas não se arrependia. Os olhos rosados da garota viraram para ele no mesmo instante e um sorriso triste se desenhou, mas logo se desfez com o comentário seguinte. – Garanto que seu “onii-san” estaria dando tudo de si se estivesse vivo.


— Não fale dele, Judal! – Após isso suspirou longamente sabendo que era verdade. – Garanto que eu poderia dar tudo de mim se ele estivesse vivo. Eu teria um lugar pra ir.


— Se você não tem lugar pra ir, vamos construir um! – A voz do sacerdote pareceu se animar enquanto ele sorria de forma decidida, o que fez com que Kourien acabasse sorrindo junto.


— Você é um idiota! Não me dê esperanças se não for cumprir!


— Você não confia em mim, bruxa?! Ofensivo~! Eu te dei a dungeon não? Como prometido!


— Então... Eu quero outra! – Ao dizer aquilo a garota cruzou os braços e empinou o nariz de forma mimada, fazendo Judal se inclinar para frente indignado.


— Outra?!! Vai nessa! Vai ter que fazer melhor que isso pra conseguir~ Mas vou pensar no seu caso... Bruxa~!


 


A voz do garoto soou divertida e logo Kourien já parecia um pouco menos abatida. Judal tinha esse poder de fazê-la se sentir bem desde sempre. A atitude chamativa e despreocupada do sacerdote lhe agradava e normalmente a fazia rir. Com certeza amava Judal demais, era uma das pessoas que mais queria por perto, mesmo sabendo que ele tinha atitudes externas que não concordava. Em um salto a garota saiu da cama para pegar uma toalha e ordenar que conseguissem um hanfu seco para ele e dessa forma passou o resto do dia em sua cama conversando sobre futilidades com o rapaz.


 


4


 


Pouco a pouco as coisas foram voltando ao normal, mais uma vez. Kourien sabia que não adiantaria ficar chorando, exatamente como Judal havia dito. Por isso evitou tocar no assunto o máximo possível, respondendo apenas o necessário quando Kouen ou os demais perguntavam algo. Os treinos com seu djinn se tornaram mais frequentes com o irmão mais velho passando a lhe ajudar e quando finalmente conseguiu manter o masou por mais que cinco minutos começou a aprender com o magi também.


Os meses correram rapidamente depois disso e os frutos de seus treinos começaram a ser colhidos, o que a fazia ter um fio de esperança sobre seu futuro. Enquanto ela seguia presa ao seu pequeno mundo dentro de Kou, os demais reinos seguiam crescendo e avançando. Já era de conhecimento geral que Sindria havia se reerguido, ainda que fosse um reino relativamente jovem. E também já era sabido pelos demais líderes que Sinbad havia conquistado inúmeras dungeons. As ambições da Aliança dos Sete Mares batiam de frente com os desejos do Império Kou e isso deixava as coisas muito tensas. Não era dito abertamente sobre a guerra, mas era um conhecimento silencioso compartilhado por todos e que se mantinha isolado em uma parte dos pensamentos dos interessados. Por mais que Sinbad quisesse, ainda, acabar com as guerras não havia forma de fazer isso pacificamente até então.


Os burburinhos sobre isso já corriam pelos corredores da Cidade Proibida, mas Kourien tentava fingir que não se importava com o que Sinbad fazia. Aquele nome fazia suas entranhas se contorcerem e invariavelmente Judal aparecia comentando algo sobre o homem. Aquele era um desses dias. O magi parecia carrancudo demais, muito mais que o normal, e parou no meio do caminho ao avistar Kourien sendo seguida pelas suas fiéis damas de companhia e assistentes que já passavam pelo meio do jardim em direção à saída leste quando decidiu se aproximar.


 


— Você andou desaparecido, Judal-chan~ – A garota comentou sem tirar os olhos da pequena estradinha de pedras coloridas, apenas ouvindo um bufar ao seu lado pouco depois.


— O rei idiota roubou mais uma dungeon...! Que merda! Quantas mais ele vai conseguir?! – O magi vociferou claramente irritado enquanto gesticulava para a princesa.


— Quantas ele já conseguiu? – Temia perguntar isso, mas saberia uma hora ou outra.


— Sete. Dá pra acreditar?! Tsc.


— Isso não devia acontecer. Como é possível que vejam ele acumulando tanto poder sem fazer nada para impedir? Não é justo, Judal.


— E quando que algo foi justo, bruxa?


 


O Alto Sacerdote tinha razão. Até então só havia tido uma onda de azar desde sempre e por isso provavelmente se irritava tanto com Sinbad. Mesmo depois de tudo... Ele ainda havia conseguido. Ele havia construído Sindria mesmo depois daquele mar de sangue. Kourien estremeceu ao pensar nisso e pigarreou tentando afastar as imagens que se formaram em sua cabeça. Estava com raiva, mas não deveria. Não naquele dia.


 


— O que você vai fazer fora da cidade? – A voz do garoto pareceu se acalmar, mas não tinha certeza quanto duraria aquela atitude.


— Vou levar parte do tesouro para o casarão.


— Você vai dar os espólios da dungeon?! Pros órfãos??! – Dessa vez Judal pareceu ofendido.


— Sim~ Foi o que eu disse. Você já sabia que eu faria isso, tente não parecer tão surpreso.


— Eu achei que seguiria ajudando como sempre. Aquela perda de tempo... Não dar tesouro pra eles!


— Esse “tesouro” não é nada perto do que conseguimos lá. É só o suficiente para que eles possam aguentar o inverno sem problemas. Não seja tão mesquinho, Judal-chan.


— Que desperdício! Mas ugh! Seu tesouro, se quiser jogar fora problema seu...


 


Judal seguiu reclamando por boa parte do caminho, mas sabia como Kourien era. Assim como a garota já estava acostumada com o mau-humor do outro. Se entendiam bem, apesar de não concordar em tudo e no final Judal seguiu com ela mesmo não querendo entregar o tesouro. Ao chegarem as crianças correram para encontrar a princesa, fazendo com que Judal voasse para longe delas com um gemido de desgosto. Aquele lugar era como um sonho para o qual ela fugia quando não queria estar na própria vida por algumas horas. Normalmente Kourien dizia que ajudava as crianças porque era o certo a fazer, mas ela sabia que no fim das contas ela o fazia porque era seu escape.


Durante aquele dia ela pôde tomar chá com algumas meninas, ver os desenhos tortos de alguns mais velhos e cozinhar com a anciã que cuidava de todos. Teve seus cabelos escovados, ouviu cantigas infantis e pôde rir de como as crianças pareciam adorar o magi apesar de tudo. Ao fim da tarde, pouco antes que o sol se pusesse a porta se abriu chamando a atenção de todos. Kourien sorriu imediatamente e se levantou para a abraçar a recém-chegada. Mei era uma mulher jovem, mas que tinha a expressão de quem havia vivido muito. Os cabelos negros como os de sua mãe presos em um coque davam um ar maduro para ela, assim como o corpo farto que ficava bem evidente pelo hanfu simples. A meia-irmã de Kourien era quase um oposto. Todas suas feições lembravam sua mãe Tao. Após um abraço longo das duas as crianças também se aproximaram para abraça-la, já que Mei passava boa parte do dia vendendo coisas na feira.


 


— Você me esperou, me sinto honrada~! – Mei brincou fazendo uma pequena reverência e então sentou ao lado da menor e pegou sua mão, acariciando sobre o colo. – É bom te ver, Kou.


 


Kourien sorriu e apertou o toque na mão da irmã enquanto a encarava por alguns instantes. Não fazia muito tempo que haviam se reencontrado, mas ela havia feito muita diferença no retorno da princesa ao palácio.


 


— Também é bom te ver, aneue. Desculpe ter estado tão ausente, as coisas andam corridas no palácio e... Bom, não importa. – A garota sorriu sem graça pouco depois, mas Mei apenas riu fraco e levou a mão delicada aos lábios para um beijo terno.


— Não tem que se desculpar, eu sei que a vida lá não é o paraíso que aparenta. – A voz de Mei saía calma, compreensiva enquanto falava e logo ela agradeceu ao chá que era oferecido por Xia antes de voltar a atenção para a princesa. – Os boatos sobre a aliança com Noradraan já se espalharam por aqui. Você devia ir embora agora que tem um djinn.


 


Xia já estava sentada do outro lado da mesa junto de Baa, enquanto Judal parecia derreter em sua cadeira. Ao escutar aquilo o sacerdote imediatamente se endireitou e sorriu abertamente enquanto Kourien arregalava os olhos na direção da irmã.


 


— Viu, bruxa! Não sou o único a te dizer isso!


— Judal, não! Mei-oneesama, não diga essas coisas! Você poderia ser acusada de traição! – A voz dela pareceu genuinamente preocupada e ela olhou para os lados como se alguém pudesse escutar, mas as crianças estavam distraídas brincando com Jiang e Touya.


— A princesa tem um dever, Mei. Ela deve cumprir o dever antes de pensar em si mesma. – Xia começou calmamente, bebericando um pouco do chá antes de continuar. – Mas você precisa, minha pequena, decidir qual é o seu dever primeiro.


 


Judal enrugou o nariz sem entender o que a idosa dizia enquanto a garota apenas a observou um pouco pensativa. Não sabia qual era seu dever ainda. Lutar contra a Organização? Judal já havia repetido que seria destruída se pensasse nisso agora. Se tornar general? Kouen não parecia precisar de si por enquanto, quando tinha Hakuei crescendo tão rapidamente dentro das tropas. Casar pelo bem do Império? Nesses momentos Kourien invejava as crianças de Xia, mesmo que fosse realmente estúpido. Elas podiam brincar e sonhar sem pensar em nenhuma obrigação, mesmo muitas tendo a mesma idade que ela. Não pôde evitar suspirar tristemente ao pensar nisso, mas não tinha fuga. Sabia que deixar Kou era burrice, não conseguiria viver sozinha. Não queria.


 


— Kou-chan? – Mei tirou a menor dos devaneios depois de longos instantes de silêncio. – Você vai encontrar seu caminho com o tempo, não sofra antes das coisas acontecerem porque isso só vai te prender no mesmo lugar.


— Você... Tem razão, eu acho. – A princesa respondeu incerta, com a voz baixa. Mas fazia sentido e isso a fez sorrir minimamente logo depois. – Obrigada. A todos vocês.


 


Ao ver a expressão de sua candidata mudar aos poucos Judal sorriu satisfeito. Sabia que Kourien tinha muito que aprender ainda, mas também sabia que ela poderia chegar longe com o incentivo certo. A garota finalmente bebeu de seu chá após isso enquanto Xia lhe sorria gentilmente.


Antes que qualquer um ali pudesse falar mais Touya apareceu pela porta, fazendo com que as vozes das crianças que brincavam no pátio invadissem a sala.


 


—Kourien-sama? O Kouen-sama mandou avisar que precisa falar com você. É algo sobre Sindria.


 


Kourien pareceu ficar séria imediatamente. Não imaginava o que o irmão poderia querer falar com ela sobre isso, mas assentiu imediatamente.


 


— Avise que irei o mais rápido possível.


 


Touya se curvou brevemente antes de fechar a porta de novo e então a garota se ergueu, sendo acompanhada pelos demais. Mei abriu os braços na direção da menor e a puxou para um abraço apertado, beijando o topo da cabeça da mesma em seguida.


 


— Não importa qual decisão tomar, conte comigo. Eu vou te seguir onde quer que vá. Nós todos vamos. – A voz saiu baixa, como um segredo confidenciado e então Kourien sorriu, sentindo-se acolhida nos braços amáveis de Mei.


— Obrigada, aneue... Eu não sei o que seria de mim sem vocês.


 


Após se afastarem Xia a abraçou também, acariciando o rosto da pequena com cuidado enquanto a olhava com um sorriso pequeno, a expressão de quem sabe de coisas que os demais ainda não veem.


 


— Nós confiamos em você, então confie em nós também. – Com um beijo na testa da garota a anciã a soltou, afagando em seguida os cabelos de Judal que apenas choramingou desgostoso.


— Obrigada Xia-obaasan, por favor me avisem se precisarem de algo.


— Não se preocupe, você já nos ajudou muito hoje.


 


Logo Mei e Xia já acompanhavam os dois até a porta, observando as crianças se aglomerarem para se despedir. Em poucos minutos já retornavam para a Cidade Proibida, as damas de companhia lhe seguindo como sempre.


 


— O que você acha que o En-sama quer, Judal-chan? – O longo período de silêncio foi quebrado quando já estavam no meio do caminho, os portões dourados já bem a vista.


— Deve ter a ver com a reunião. O velho quer discutir sobre a expansão do império e uma hora ou outra ia ter que falar com o rei idiota.


— Ele vai ir para Sindria?! – Kourien dessa vez pareceu chocada, não esperava que o irmão fosse realmente iniciar esse tipo de conversa tão cedo.


— Sim, mas ele me proibiu de ir... Um saco. Foi exigência do Sinbad eu acho.


— Não dá nem pra julgar nesse caso...


— Não importa, eu sou o magi do Império. Devia ir. Mas não ligo, também. Vai ser mais uma reunião chata com certeza.


 


Kourien assentiu de forma automática. Não sabia o que esperar de um encontro diplomático assim, mas sabia que Kouen era inteligente o suficiente para não perder o controle da situação. O resto do caminho foi silencioso, exceto pela conversa baixinha de Jiang e Touya sobre alguma coisa irrelevante no momento. Para que não demorasse mais a garota se dirigiu com Baa e Judal diretamente para a sala onde Kouen sempre estava. Com uma batida suave teve a atenção do homem que logo fez um gesto breve para que entrassem.


 


— Kouen-oniisama, desculpe a demora.


— Tudo bem, a Hakuei avisou que você estava indo para fora. – Kouen falou ao guardar a pena no tinteiro, levantando para se apoiar na frente da mesa com um suspiro cansado. – Judal já deve ter te dito que eu estou indo para Sindria.


— Sim, ele comentou... – Kourien respondeu olhando brevemente para o magi que estava encostado em uma estante de pergaminhos.


— Eu estou indo lá para falar sobre as expansões, mas é óbvio que o Sinbad não vai aceitar.


— Você quer conhecer o reino. – A garota entendeu rapidamente, atraindo a atenção de Baa que parecia não entender onde Kourien se encaixava nisso.


— Sim.


— E porque você queria falar comigo sobre isso...? – Ao perguntar isso sentia seu corpo se agitar, como se estivesse emitindo um alarme de perigo. As mãos suaram e se apertaram nervosamente. Nunca havia falado sobre Sinbad com Kouen.


— Porque quero que me acompanhe.



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Autor(a): Yume Baku

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