Fanfic: Dona Maria Jose | Tema: Quarto de despejo
19 de Maio
Continuo meio zonza, tonta e perdida. Abandonar o plano corpóreo foi a maior ressaca que já tive. Ontem presenciei as belas palavras de Dona Carolina a meu respeito, fico feliz de saber que me vou com uma boa impressão. Preciso me deitar, o clarão aqui de cima está a ferir minha visão.
3 de Junho
Já estou aqui há um tempo, e ainda sinto que uma hora hei de cair naquela espelunca imunda novamente. Não há nada de interessante para fazer aqui, digo, agradeço ao senhor por ter me trazido… mas poderia trazer um rádio de última geração. O mais perto de entretenimento que eu consigo, é olhar para baixo e ver meus ex-colegas de barracão. Ver a Carol daqui de cima me enche de tristeza, uma mulher guerreira que faz de tudo e mais um pouco para sustentar seus 3 filhos, queria poder tê-la dito quando ainda estava lá. Hoje a ouvi questionar sobre como é aqui em cima em relação à pobreza, e eu nem tinha reparado nisso quando cheguei, mas posso lhe dizer que justamente por não ter reparado, é que chego na conclusão de que o tratamento não é diferenciado para banqueiros, médicos e pessoas com dinheiro, fui recebida pelo mesmo portão com o mesmo sorriso pelos anfitriões da casa.
11 de Junho
A adaptação tem sido melhor desde a última vez que vim aqui, conheci algumas pessoas legais e outras nem tanto, tem gente que veio parar aqui por algum erro do destino, mas fazer o que… Não me recordo de ver tanta mesquinharia no Canindé, Dona Binidita está grávida aos 82 anos de idade. Creio que a favela se tornou um lugar sem entretenimento para as pessoas cuidarem da vida da senhorinha grávida, tinham mais é cuidar do próprio barracão. O filho da Binidita é uma graça, conheci ele assim que cheguei aqui. Opa, contei o sexo do bebê! Bom, ninguém vai ler esse diário mesmo, só se um dia eu resolver batizar a capa e enviar ao mundo mortal, especificamente para a pobre Carolina.
14 de Junho
Dia de chuva na terra é dia de limpeza aqui no céu. A limpeza ocorre por setores, por isso não chove em todos os lugares ao mesmo tempo, infelizmente Carolina mora bem em cima do portão de entrada e é vital que esteja limpa para a chegada diária dos novos residentes. Digo infelizmente pois sei que ela precisa sair para catar papel, e quando chove o papel encharca e não vale mais nada. Aqui, o brilho é intenso não apenas por estarmos acima das nuvens, mas por conta dos grandes pilares banhados a ouro, mera decoração. Se eu pudesse, derrubava um desses pilares bem na frente da porta da Dona Carol, ela nunca mais precisaria catar papel e seus filhos teriam pastel de sobra, carne, arroz, feijão, tudo que tem direito, nada de sopa de osso e macarrão podre.
Em dias de limpeza, gosto de ver como é o dia a dia das pessoas dentro de casa. Ouvi Carol questionar se vale a pena continuar tentando e sofrendo nesta vida miserável, se eu pudesse, lhe diria que ela não pode desistir ainda, não apenas pelos filhos, mas por ela! Dona Carolina tem um futuro brilhante que lhe aguarda, mas se eu a ajudar, tudo pode mudar.
Você pode estar questionando o porque da minha fixação por essa mãe solteira da favela do Canindé, não tenho uma resposta exata, mas, como nao se inspirar em uma mulher desta? Estava afim de escrever um pouco mais hoje, mas minhas mãos já doem de tanto segurar a pena. Sim, aqui usamos pena e tinteiro.
30 de Junho
Estou com nojo do que aconteceu com Odete hoje mais cedo. Nada mudou desde que parti, é a mesma misoginia e machismo de todo dia. Eu ia falar um pouco sobre como funciona aqui no céu, mas essa cena estragou meu dia.
7 de Julho
Tirei uns dias para conhecer mais afundo minha casa para o resto da eternidade, e vou contar algumas curiosidades. Primeiro, as noites são de tirar o fôlego, estamos sob as nuvens, as estrelas estão evidentes brilhando para nós. Nada que ouvimos em igrejas é 100% o que temos aqui, todas as diferentes religiões são bem representadas aqui em cima, por isso, não temos um prefeito, presidente, governador, muito menos um líder, todos temos consciência do nosso papel, apenas somos auxiliados pelos que já estão aqui a mais tempo. Os puxadores, pasmem, são de ouro, os pilares, de ouro, os talheres, de ouro. O uso do ouro é meramente estético, não vale mais nem menos que a prata. Ah, e se vocês estão se perguntando, nós não usamos o banheiro...
Autor(a): marinamaciel
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