Fanfics Brasil - Uma Visita - Parte II O Fantasma das Cinzas

Fanfic: O Fantasma das Cinzas | Tema: Fantasia, Vingança, Saga, Romance, Terror, Suspense, Aventura


Capítulo: Uma Visita - Parte II

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“Se eu já não soubesse
Que eu estava morto”


 O jardim da residência dos Lauriant era o que podia ser considerado magnífico. Uma cuidadosa e bem preparada articulação monumental que misturava simplicidade humana com a beleza natural, beirando entre os extremos de pomposo e rústico. Era uma clara mistura de todas as regiões diferentes de Lumière, com o bônus de ter algumas raras plantas da lendária Terra de Primavera – essas, cortesia de um viajante de lá, que trouxe algumas sementes de cerejeira e outras plantas daquele reino de fábulas distantes.


O vento carregava perfumes e sons majestosos de uma música suave. Era como se som e odor se misturassem, carregando os cinco sentidos de quem estivesse ali presente com uma tranquilidade ímpar e pacífica. Paraíso nunca esteve tão perto do mundo mortal, inclusive para o homem que criava aquela melodia com o violão.


Escorado num imenso carvalho, o viajante das Terras de Lá tocava cada nota com cuidado timidamente planejado, fazendo com que a melodia improvisada soasse como algo treinado vez atrás de vez. Presentes ali, encontravam-se mais três mulheres. A mais madura, Lilliana Lauriant, era sua esposa. Possuía olhos de um verde cintilante que lembravam jade, e um rosto totalmente sardento de pele branquinha e lisa. Apesar da delicadeza, o olhar dela carregava uma imponência misturada com ternura materna. Ela estava sentada ao lado do musicista, ostentando um sorriso que ia de orelha a orelha enquanto acariciava os cabelos prateados da garota mais jovem do grupo. Luvese, sua filha – e também do guitarrista.


Luvese se encontrava deitada na grama, usando as coxas de sua mãe como travesseiro improvisado. Ela devia ter três, no máximo quatro anos. Carregava no rosto as bochechas sardentas e redondas da mãe, e os olhos dourados e de traços do oriente de seu pai, além da mesma cor de cabelo. Prateado, reluzente e liso. Daquele jeito ela nem parecia a garota hiperativa que passava o dia inteiro correndo e pulando, virando o casarão inteiro de pernas para o ar. Naquele momento ela era um anjo sonolento, que gentilmente trilhava os dedos pequenos nas pernas cruzadas de seu pai.


A última pessoa que fazia parte do grupo era a garota do oriente, Cho. Trajava roupas da distante Terra de Primavera, e ajoelhada na grama, estava logo ao lado de Lilliana. Junto da mais velha, ela também acariciava os cabelos prateados de Luvese, cuidando de sua irmã caçula com todo o cuidado fraterno – por mais adotivo que fosse – que conseguia. Tendo um olho de cada cor, os orbes que carregavam esmeralda e safira trocavam olhares com seu pai adotivo, tentando absorver cada nota cuidadosa que ele tocava naquele show particular. Era uma melodia carregada de saudade de algo que ninguém sabia do que se tratava. A música lembrava distância, algo que foi perdido sem nem saber que um dia já foi possuído. E o homem, que continuava a tocar, parecia inerte ao resto do mundo, preso naquele momento que apesar de acompanhado, parecia mais solitário do que nunca. Foi quando ele terminou a última nota que se lembrou que havia um universo inteiro de beleza ao seu redor.


— Você está ficando realmente bom com esse instrumento, Haoh. — Lilliana comentou entre um sorriso e outro, mantendo a atenção nos cabelos da filha. — Olha só. Você até colocou a Lu pra dormir...


— Nossa. É mesmo...! Que milagre...! — Dava para notar surpresa na voz de Cho, que inclinada para frente, depositou um beijo na bochecha esquerda da caçula adormecida. Ao terminar, ergueu-se, dando alguns tapas nos joelhos para limpar o yukata rosado. — Ei. Eu vou pegar algumas flores! Prometi pra Lu que ia fazer um laço de flores pra ela, então quero terminar antes que ela acorde. — E acenando para o casal, ela deu as costas e se retirou em passos tranquilos, saltitando de vez em quando.


— Haoh... — Um sussurro vindo dos lábios de Lilliana, que encostou a cabeça no ombro do marido. Foi se aninhando ali igual uma felina manhosa, e a mão livre dela foi de encontro à palma esquerda do homem. Os dedos dele – e o restante do braço, inclusive – encontravam-se enfaixados de ponta a ponta, como se escondendo uma memória reprimida e vergonhosa. — ... Que tal cochilarmos enquanto esperamos Cho voltar? Eu acho que ela não vai demorar, não é...?


Silêncio. Ele não conseguia responder. Era como se naquele momento não tivesse voz alguma capaz de sair de sua garganta, e de um instante para o outro, seus olhos pesaram como se a tonelada de meses sem dormir o atacassem no mesmo instante. Estava tonto, cansado. Exaurido por inteiro. Observou Lilliana, e cada vez que piscava a dificuldade para manter os olhos abertos aumentava.


Ele olhou para as costas de Cho, que continuava se distanciando. Ergueu a mão direita, espichando o braço como se pudesse alcançar ela, mas não conseguiu. Ela estava longe. Distante. Sumia perante as muitas flores e arbustos do belo jardim. E em seguida voltou a olhar para Lilliana. Tentou tocar o rosto dela, mas os dedos pararam logo em um único centímetro a frente da mulher. Ela mantinha o sorriso. Tentou novamente, mas a mão caiu logo acima da cabeça de Luvese, ainda adormecida. Sentiu o delicado toque da seda dourada que fazia um laço no cabelo amarrado de sua filha, e quando foi tentar acariciar ela, os olhos se fecharam. Tudo ficou preto, e o mundo apagou em uma única vez.


Deuses. Como ela era bela. Como suas filhas eram belas. Sua família toda; perfeita, do começo ao fim. Até mesmo no escuro. Até mesmo no fim.


_


Ao abrir os olhos, sentiu o peso dolorido que carregava nos ombros a muitos anos. Os músculos pareciam queimar, e conforme o corpo foi ligando, encontrou com os olhos o laço dourado que estava na palma da mão enfaixada, mas esse sem sua dona. Era apenas um laço encardido, que agora não era mais dourado, mas sim um amarelo apagado. Um lembrete.


Levantar custou caro. Sentiu cada junta do corpo ardendo como o fogo do próprio inferno, e precisou se espreguiçar paulatinamente, fazendo cada osso do corpo estalar alto. Carregar seu próprio peso era uma tarefa complicada, mas ele ainda dava seu jeito.


O que uma vez foi o belo jardim dos Lauriant agora não passava de um cemitério de cinzas e fumaça. Já faziam anos que o casarão fora tomado pelas chamas do Prisma, mas era como se o odor da queimada tivesse permeado permanentemente o lugar. O que uma vez foi um tapete das diversas cores florescidas não passava agora de um solo infértil, morto para sempre. Atrás de Haoh tinha o que restou de um grande carvalho; agora uma madeira oca e desprovida de vida, mas que ainda, sabe-se lá como, carregava um resquício de glória centenária. E em sua frente, passando o restante do jardim, os escombros de seu antigo lar.


O casarão Lauriant, em outra época tão imperial e majestoso, agora era apenas uma ruína devorada por fogo e terra. Boa parte das paredes haviam cedido após o incêndio, levando diversos andares ao nível do solo. Mais da metade do lugar tinha cedido, salvo a ala lateral de frente para o jardim, que ainda mantinha dois dos quatro andares.


 



 


Juntando seus pertences do chão, o homem jogou a sacola de couro batido por cima de um dos ombros, ajeitando o manto sujo que cobria boa parte de seu corpo. Por fim, pegou a máscara azul que estava ao seu lado, iniciando uma caminhada vagarosa até a entrada dos escombros. Não havia mais porta, mas sim um buraco onde duas ou até mesmo três pessoas poderiam passar tranquilamente. Com um toque receoso, o homem tocou na entrada da porta, congelando já no primeiro passo.


O corredor era uma memória antiga. Conseguia se lembrar claramente de quando as cores das paredes não eram o preto queimado atual. Quando finalmente tocou o pé no chão, ouviu a madeira rangendo. A entrada não cedeu por pouco, e ele continuou. Era uma viagem pela estrada do passado; a cozinha que antes estava sempre cheia de empregados foi, ironicamente, o lugar que menos se queimou. Havia uma mesa imensa que dava para umas vinte pessoas – os Lauriant sempre comiam junto dos seus serviçais – e diversos utensílios de culinária pendurados nas paredes.


Em uma pausa solene, Haoh observou atentamente ali antes de prosseguir, indo para a escadaria que subia para o segundo andar. As pedras estavam firmes, e após confirmar que não seria soterrado pela subida em espiral, continuou o caminho até a parte superior. Os restantes do corredor comprido que tinha diversos janelões e aberturas para circulação de ar terminava antes da metade, e Haoh caminhou até onde conseguiu. Seu antigo quarto havia ido abaixo, mas ainda dava para acessar o quarto de Luvese ali; ou o que restou do cômodo.


— Kakaru toki... Sakoso inochi no oshikarame... — Sussurrou em um lamurio que mascarava dor aguda. O começo de um canto sibiloso e desolado.


Com um aperto no peito, demorou bons minutos até criar a coragem necessária para entrar lá. Se arrependeu, pois a primeira coisa que viu foi a cama queimada. Os brinquedos, roupas e pertences de sua filha haviam sido engolidos pelas chamas, tornando boa parte do local irreconhecível, salvo pelo pequeno baú que ficava abaixo do colchão destruído.


A curiosidade falou mais alto, e após ter dado um jeito de mover os restantes da cama para o lado, conseguiu puxar o baú empoeirado, abrindo o compartimento. O que restava lá dentro era pó, sujeira e um violão. O seu violão. Lembrou que tinha presenteado sua filha caçula com o instrumento quando ela disse que queria aprender a tocar. Boa parte das cordas já tinham se rompido, e o mogno estava bem manchado, mas... Dava pra salvar aquele objeto. Com toda a cautela possível, pegou o instrumento e passou as mangas sujas sobre o mesmo, o limpando parcialmente. Tratou de amarrar a fita amarela no braço do violão, dando um tapinha sutil ali. Ficou bonito, considerando a situação deplorável do objeto.


Lá do segundo andar dava pra ver os restantes do jardim queimado, com o imenso tronco de carvalho morto. Era uma visão melancólica. Era uma visão carregada de amargura e que tinha o peso de três vidas que foram embora. E também, era a visão de seu futuro; tudo o que lhe restava. Cinzas e escombros.


— ...Kanete nakimi to... Omoishirazuba. — Terminou, por fim, murmurando as palavras finais daquele canto que repetia como seu mantra.


Pondo a máscara no rosto, ele pulou diretamente do segundo andar para fora, caindo ajoelhado na terra rachada. Escondendo todo o pesar por trás da máscara, lançou um último olhar para trás, despedindo-se silenciosamente do seu antigo lar. Havia algo de errado em amar uma família de fantasmas?


Talvez não. Afinal de contas, ele também era um.


“Eu teria lamentado
O dia em que perdi a minha vida”



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Autor(a): swordsaint

Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).

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