Fanfic: O Fantasma das Cinzas | Tema: Fantasia, Vingança, Saga, Romance, Terror, Suspense, Aventura
"Pensei em um mundo sem memória e sem tempo; considerei a possibilidade de uma linguagem que ignorava os substantivos, uma linguagem de verbos impessoais e epítetos indeclináveis. Assim foram morrendo os dias, e com os dias foram morrendo os anos, mas algo parecido com a felicidade ocorreu em uma manhã.
Choveu. Choveu com poderosa lentidão.”
A sensação das gotas de chuva caindo sobre sua pele havia sido trocada por algo totalmente diferente. Era líquido, era chuva, mas não era água. Uma sensação ímpar que jurava ter se esquecido de como era, mas em verdade não conseguiu, jamais, apagar aquilo de sua memória. Aquele não era o tipo de coisa que podia, de fato, se esquecer. Era como se a memória de um passado traumático - este trancafiado a sete chaves - tivesse sido libertado como um cão feroz que quebrou suas correntes.
O corpo todo doía, mas nada superava a ardência no braço esquerdo. Era como se houvesse uma chama infindável lhe queimando de dentro para fora, mas estava tão fraco que nem gritar era capaz. A única coisa que conseguiu fazer foi abrir os olhos, com muito esforço, e se deparar com o universo de horrores espirituais que lhe dava as boas vindas. A grama havia sido trocada por breu; a chuva havia sido trocada por sangue. Os pássaros não eram mais pássaros, mas sim almas cantando em sofrimento, e as imensas árvores haviam se tornado cinzas e poeira.
O som dos perturbados era uma cacofonia infernal e ensurdecedora, digna de levar qualquer um à loucura. Mas pessoas como Haoh não sentiam pavor da insanidade. Muito pelo contrário. Pessoas como Haoh se arrastavam para a insanidade, e se arrastar foi o que ele fez. Lentamente, carregando todo o peso do universo nas costas, conseguiu mover um braço para frente, enfiando os dedos em um chão invisível feito de sombras e poeira. Sentiu a mão se firmar no absoluto Vazio daquele lugar, e puxou o peso do corpo como um verme abatido tentando sobreviver. Em seguida fez o mesmo com o outro braço - este o enfaixado, que pareceu querer explodir ao mero movimento do ombro. Queria gritar, mas não tinha ar o suficiente nos pulmões para isso. A única coisa que conseguiu fazer foi engolir o choro e continuar se arrastando.
Cada movimento feito pelo espadachim era um martírio. Era como se o corpo quisesse se despedaçar, deixando os braços continuarem sua jornada sozinhos, sem o peso da vida que carregavam. A chuva de sangue continuava a cair, lenta, vagarosa e absolutamente pesada. Os espíritos mantinham seu canto fúnebre, trazendo consigo as mágoas das falhas que tiveram em suas vidas miseráveis. E onde uma pessoa qualquer ouviria gritos e choro, Haoh entendia cada palavra de sofrimento que eles lhe contavam.
Foi quando algo o fez parar. Sentiu a mão tocar em algo que não era o chão inexistente, mas sim um corpo. Algo físico, palpável, visível. Um pé, que imediatamente lhe enviou uma sensação de pavor por toda a espinha, e ignorando todo o sofrimento que aquele lugar usava para lhe esmagar, foi contra o seu bom senso e ergueu a cabeça para ver o que era. Uma figura familiar. Kaijin, o Fantasma das Cinzas. A sua outra face.
Uma respiração rasgada e profunda escapava pela figura fantasmagórica de Kaijin. Era como se guisos de uma cobra chacoalhassem toda vez que ele puxava ar para dentro... E quando exalava tudo de volta para fora, em uma fumaça negra, garras arranhassem uma louza, causando arrepios na espinha de qualquer um. Ignorando o pedido de súplica de seus músculos, Haoh colocou ambas mãos no chão, mas não conseguiu se erguer. A verdade é que só queria desistir. Deixar que aquela criatura o engolisse de uma vez por todas, cedendo sua casca mortal para o espírito que a almejava. Mas ao invés de uma mordida, o que veio foi o total oposto. O fantasma deu um passo para o lado, dando passagem para que Haoh continuasse sua procissão humilhante, deixando que o guerreiro finalmente enxergasse o que havia do outro lado daquele mar de sombras.
Um Portão Fantasma. Um dos muitos que existiam ao redor da Terra de Primavera; invisíveis ao olho humano, porém ali presentes, servindo como passagem do Mundano para o Espiritual. E aquele portão, ali, estava escancarado, totalmente aberto, permitindo que todos espíritos ali contidos saíssem livremente, e que qualquer alma desavisada que não pertencesse àquele lugar fosse tragada pela sua boca faminta. Era seu dever, como um Santo, descobrir o que estava causando aquele problema. Mas ele não era mais um Santo, e aquele não era mais seu dever.
— ... O que você quer de mim? — A voz de Haoh veio carregada, como se seus pulmões estivessem cheios de sangue. Talvez estivessem, pois o gosto de ferrugem permeava a língua e as paredes da boca. E após o eco de sua voz ser engolido pelo Vazio, não obteve resposta alguma. Manteve os olhos vermelhos fixados naquela máscara maldita do Fantasma das Cinzas, e conforme o tempo passava e a resposta não vinha, seu coração era preenchido por imensurável amargura. — O QUE VOCÊ QUER DE MIM?!
E foi quando aquele grito que ecoou com a fúria de um trovão partindo os céus que tudo voltou ao normal. Os gritos se tornaram cantos de pássaro, as sombras viraram grama, o sangue mudou para água e as cinzas deram lugar para a vasta floresta que Haoh jurava ter usado como esconderijo. O peso nos ombros se tornou inexistente, a dor sumiu, e o braço esquerdo parou de arder em chamas. Viu-se diante de uma das rotas mais desconhecidas daquele lugar; essa já tomada pela natureza séculos atrás, e que agora servia apenas de lembrete sobre a magnitude da vida natural da Terra de Primavera. Mas algo permaneceu. O gosto de ferrugem na boca, aquele gosto de sangue puro dos inocentes ainda estava bem nítido em sua língua. Portanto, ele sabia que aquilo não foi um simples sonho.
Havia se passado em torno de meia hora desde que se levantou. O sol brilhava intensamente, mas algo ainda o incomodava. E ele não era um homem que gostava de dar sorte para o azar - ainda mais conhecendo o quão azarado era. Comeu a carne que havia caçado na noite anterior, eliminou os rastros de que havia feito uma fogueira e pegando seus pertences, colocou o chapéu de palha na cabeça, a máscara no rosto e seguiu o caminho que o Fantasma lhe mostrou.
Não sabia para onde estava sendo levado, mas sabia que devia ir para lá.
"Kohaku sempre me disse que a vida era repleta de momentos belos. Eu não vejo tanto belo assim. Eu vejo mais como pura obscenidade. É só que - eu não sei, a vida aqui é vil e amoral. Eu não vejo nada de bonito nisso. Eu via fornicação e asfixiação, sufocamento e lutas por sobrevivência, e... E... Isso só cresceu. Isso apodreceu na gente. É claro, tem muita miséria. Mas é a mesma miséria que está presente em tudo. As árvores estão miseráveis, e os pássaros estão miseráveis. Eu não acho que - eu não acho que eles estejam cantando. Eu acho que eles estão gritando em agonia. Isso é uma terra inacabada. Uma terra pré histórica. A única coisa faltando nesse lugar é a vida primitiva.
É como se houvesse uma maldição pesando nesse lugar inteiro... E qualquer um... Que vá profundamente nessa terra, acaba pegando um pouco dessa maldição para si. Então estamos todos amaldiçoados com o que fazemos aqui. É uma terra que os Deuses - se eles realmente existem - criaram com raiva e fúria. É a única terra onde a criação... Ainda não está finalizada. E sabe, olhando de perto o que nos cerca... Há uma certa harmonia. É a harmonia de... De um assassinato coletivo dos espíritos. E nós, em comparação à essa articulada violência, podridão e amoralidade desse lugar - Uh... Nós, em comparação a essa imensa articulação... Soamos como frases inacabadas de um livro barato, sendo gaguejadas por um artista amador na frente de seu público.
Nós devemos ser humildes diante dessa fornicação opressora. Dessa morte opressora. Desse crescimento opressor, dessa falta de ordem opressora. Até... Até as estrelas aqui, se olharmos para o céu, são uma bagunça. Não há harmonia no universo. Nós temos que nos acostumar que não há verdadeira harmonia da maneira que nós a idealizamos. Mas cabe a nós, como Santos, manter essa harmonia. Mas quando eu digo isso, eu falo repleto de admiração por tudo. Não é que eu odeie o que fazemos. Eu amo. Eu amo tudo isso. Mas eu amo tudo isso contra o meu bom senso, e também contra o melhor dos meus julgamentos.”
Autor(a): swordsaint
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