Fanfic: Era uma vez: Oneshot | Tema: Fantasia, Mistério, Suspense, Revelação, Aventura, Oneshot
Poucas coisas impressionam Mariana Ferreira, era de se esperar que alguém vindo de uma cidade do interior para a capital reagisse completamente diferente ao se deparar em uma nova realidade. Mas para a garota que acabara de completar dezoito anos de idade, a mudança de cenário e rotina não foram uma delas, estava acostumada com mudanças. Não havia nada de impressionante nisso. Sempre morou no interior do Paraná, mas de ano em ano trocava de cidade, nunca entendeu completamente o desejo de sua vó e mãe por novos ares. Há três anos foi mandada para um colégio interno em Curitiba e mesmo assim não ficou impressionada, era temporário, pensou na época. De qualquer forma, era melhor não se acostumar.
Aprendeu a apreciar o mundano, como quando sua mãe contava uma piada imprópria e a avó lhe dava um leve puxão de orelha para chamar sua atenção, mas também não escondia o sorriso no canto dos lábios com divertimento. Só queria dar um bom exemplo para a neta, e sempre falhava miseravelmente, ninguém era imune ao humor divertido e desinibido de sua mãe.
O barulho da chuva batendo contra o telhado, o vento forte que quase rosnava em resposta a sua força contra tudo que encontrava a sua frente, os sons ritmados que as trovoadas causavam, até mesmo a sequência de raios que observa serem despejados pelo céu escuro da janela de seu quarto. Tudo isso a impressiona muitos mais, e ela não se cansava dessas pequenas coisas, achava que eram momentos únicos. Gostava da casa que sua família se instalou pelos últimos três anos, ficava no topo de uma montanha e de cima podia observar a pequena cidade, era rodeada pela mata silenciosa.
Mas agora essas memórias carregavam um gosto amargo e uma tristeza intensa, estava de volta a casa da família para o enterro da avó. Uma morte pacífica, eles disseram, morreu dormindo. Por fim, cansou do clima de melancolia e deitou na cama até cair no sono, desejando que fosse agraciada com mais um de seus sonhos mirabolantes, a vó sempre dizia que a neta era especial e que seus sonhos não eram assim tão aleatórios como a mesma achava.
Assim que fechou os olhos e pegou no sono, deu largada para o primeiro passo de sua jornada. Sonhou uma última vez com a avó, dona Maria das Graças, sentada em sua cadeira de balanço na beira do penhasco que ficava a quinhentos metros da casa. Quanto mais ela corria em direção a avó, maior a distância se tornava. Cansada, chorou desesperada pela atenção da matriarca, dona Maria olhou com compaixão para a neta e a confortou com palavras de amor e encorajamento, deixando uma mensagem final:
- Há um presente para você no nosso esconderijo. Use com cuidado, não tenha medo. - Maria das Graças levanta da cadeira e se posiciona em pé, de costas para a beirada do penhasco, ela abre os braços e completa: - Vá em paz, minha filha. Eu já estou indo.
Assim que termina de falar, Mariana observa a avó recolher os braços de volta para si e repousar as duas mãos em seu peito, em cima do coração. Ela sopra um beijo, solta a respiração como se estivesse se livrando de um fardo, e dá um passo para trás. Mariana nunca desejou tanto estar ao lado da avó para a segurar contra si e impedir tal ato, observou inerte a avó se lançar para baixo.
A estudante acordou num sobressalto, suando frio, levantou da cama e correu em direção ao banheiro. Foi quando se olhou no espelho que percebeu que as lágrimas do sonho também caíram na vida real, estava com os olhos marejados. A experiência foi tão realista que precisou jogar água fria no rosto para despertar por completo. Eu só posso ter perdido a cabeça, pensou enquanto trocava o pijama ensopado de suor.
Mas só havia uma forma de confirmar a veracidade da mensagem, e ela sabia em seu âmago que já sabia a resposta para essa dúvida. A própria Maria das Graças deu a dica, o esconderijo secreto da avó e sua neta. Quando se mudaram para essa casa, decidiram que iriam acabar de vez com o hábito de fumante de sua mãe, principalmente depois de apresentar problemas nos pulmões. Toda vez que achavam uma cartela de cigarro, elas davam um jeito de sumir em um lugar onde Solange, sua mãe, não seria capaz de encontrar.
A avó a desafiou a encontrar esse tal lugar, então a garota se aventurou nas árvores próximas ao terreno da casa e marcou discretamente um caminho. Só quem já soubesse onde procurar saberia quais árvores estariam entalhadas. O símbolo que usou para registrar a trilha entre as árvores era algo que aparecia constantemente em seus sonhos, um conjunto de linhas que formavam uma tríade. Está tudo entrelaçado, dizia Maria das Graças toda vez que via o desenho. Mariana nunca entendeu o porquê daquilo, mas ela se conformou com a maneira discreta e peculiar que a avó e a mãe agiam de vez em quando.
Incapaz de pegar no sono novamente e de poder conferir o que o esconderijo a reservava, passou o resto da noite ansiosa virando na cama. Pela manhã, sinais do temporal da noite passada podiam ser vistos pelo terreno, como algumas árvores podres que acabaram cedendo, e o mais impressionante deles para Mariana, um arco-íris que coloria o céu azul com poucas nuvens.
Se arrumou para o velório da avó e quando desceu para encontrar a mãe para partirem para o cemitério, notou que uma luz havia se apagado na mesma. Mas havia algo além disso, nesse período que retornou para casa, a mãe parecia distante, como outra pessoa. Solange das Graças Ferreira havia perdido a sua principal companheira, antes de Mariana nascer, sua mãe e sua avó sempre fizeram companhia uma à outra. E quando o pai da estudante desapareceu quando completou um ano de idade, a pequena família ficou mais unida que nunca. Mariana usou como explicação o choque que a nova realidade causou em Solange como desculpa para a mãe não ter derramado uma lágrima sequer ao ver a mãe ser velada e enterrada.
Pensava na experiência que havia acabado de passar enquanto caminhava pela trilha guiada pelos símbolos esculpidos em árvores, estava distraída com o cenário a sua volta e estranhamente focada em seu objetivo. Por isso não perdeu tempo quando encontrou o tronco podre e oco, tirou uma pedra da sua base para revelar o buraco. Nele havia um pequeno baú de madeira, se ajoelhou na terra úmida com o objeto em mãos para poder analisa-lo melhor. Ao abrir, notou um anel de prata com uma pedra oval em seu centro o emoldurando, era um ônix. Ao lado, um bilhete escrito a mão, reconheceu a letra da avó:
“Esta pedra traz luz à escuridão, se brilhar, corra.”
Muito estranho, pensou enquanto o colocava em seu dedo e em seguida direciona sua atenção para a capa do livro que estava ali guardado. Ele não possuía título, apenas uma capa dura e escura com as bordas douradas, em seu centro estava o símbolo que havia esculpido nas árvores, a Tríade. E o mais bizarro ainda, a sensação que aquele livro trouxe consigo, como se ao colocá-lo em suas mãos, Mariana estivesse completa. Como se toda a sua vida fosse resumida a aquele momento, este livro a pertencia.
- Está tudo entrelaçado - sussurrou, recitando a avó. Agora ela entendia.
Curiosa com o artefato, começou a folhear as páginas e ficou frustrada ao constatar que estavam todas em branco. E num passe de mágica, o livro ganhou vida. Desenhos começaram a ser formados em suas primeiras páginas, como se fosse um quadrinho contando uma história. E Mariana podia jurar que era a protagonista ilustrada naquela narrativa.
Cada página mostrava uma ação sua desde que chegou à cidade: na janela observando a chuva, o momento que acordou do sonho, o enterro da avó, enquanto percorria a trilha até o esconderijo. E, principalmente, o presente: Mariana ajoelhada segurando o livro com uma silhueta atrás de si.
- Eu sabia que você era a Leitora. Meu mestre vai se orgulhar de mim quando entregá-la para ele - diz sorrindo, mas seus dentes eram pontiagudos e uma gosma preta escorre entre eles. Nesse momento Mariana teve certeza que a mulher que dividiu a casa nas últimas horas não era sua mãe e a criatura em sua frente era tudo menos humana.
- O que você fez com a minha mãe? - Pergunta relutante, com medo da resposta.
- Ela está morta, querida - responde sem remorso com sua voz gutural. - Quando fazemos a passagem, nossos corpos físicos são abandonados. Apenas nossa essência permanece, para o que eu sou, preciso de um receptáculo para poder viver aqui.
- E o que você é? - Mariana questiona alarmada ao se levantar do chão segurando firme o livro em uma mão e notar o anel brilhar na outra.
- Um demônio - responde a criatura desforme. - Não chore, criança. Sua mãe morreu assim que me apossei de seu corpo há uma semana. Foi uma pena sua avó ter que morrer também, tudo para não ter que revelar a localização do livro. Agora vamos, estamos ficando sem tempo.
- Sem tempo?
- O portal tem hora marcada, se perdermos a oportunidade, só poderemos atravessar no próximo daqui dez anos.
- O que tem do outro lado do portal?
- Um mundo sem restrições, criança. Onde todas as lendas e mitos são realidade. - Responde se aproximando.
- Eu não entendo porque tenho que ir também, eu te entrego o livro, pode levá-lo. Só quero que me deixe em paz!
- Você não sabe de nada, não é mesmo? Do que adianta um livro que prevê o futuro sem a única pessoa que é capaz de lê-lo? O mestre será imbatível com este dom ao seu comando.
O volume de informações era absurdo para ser compreendido naquele momento, Mariana tinha uma decisão para fazer, uma que mantivesse sua vida e vingasse a morte da mãe e avó. O único recurso que ela havia em poder no momento era o próprio livro, por isso, abriu o artefato mágico e observou as próximas cenas que formavam em suas páginas.
Precisava dar a volta na criatura a sua frente, fingiu que ia obedecer a sua ordem e andou em sua direção. Mas ao ficar próxima ao ponto de poder sentir o cheiro podre que exalava e tocá-la, guardou o livro na bolsa transversal que carregava e juntou toda a sua força para empurrar a falsa mãe. A criatura vil urrou de dor pelo choque do corpo contra o chão, proferiu palavras de ódio enquanto se erguia e corria atrás de Mariana.
A Leitora abriu o livro mais uma vez, registrou a cena recém desenhada e respirou fundo. Ela sabia o que tinha que fazer. Correu até o penhasco onde viu a avó se jogar, agarrou o livro contra o peito e juntou toda a coragem dentro de si para encarar o que faria a seguir. Deu um passo para o vazio, despencando em queda livre. Ela sentiu o vento contra seu corpo, a adrenalina pulsando nas veias, sentiu medo, e depois não sentiu mais nada.
Assim como mostrado na página, um portal se abriu no ar, quando Mariana aterrissou no chão, ela já não estava mais na Terra. Esse foi mais um passo que deu em direção a sua jornada como Leitora e, em busca de vingança pela sua família.
Longe dali, no hospital da pequena cidade do interior, médicos conversam entre si sobre a paciente encontrada horas depois de pular de um declive. Por algum milagre, Mariana Ferreira estava viva. Seu estado era crítico, a incerteza de que algum dia acordaria do coma era uma realidade que os médicos tentavam afastar da mente, pois no fundo sabiam que eram mínimas.
Mas o que eles não sabiam, era que, apesar de seu corpo não ter atravessado o portal, sua alma e sua mente projetaram um novo corpo para a Leitora, que se encontrava em um território além da compreensão humana.
Autor(a): vinefrost
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