Fanfic: Perigosas Lembranças | Tema: Amnésia
Daniel Ribeiro.
O nome não dizia nada a Letícia. Estranhou o envelope estar no nome de uma única pessoa, sendo que a recepcionista havia mencionado que o buquê foi enviado pelo pessoal da ONG.
Deu de ombros; talvez fosse alguém da diretoria representando a todos. Colocou o ramalhete em cima da pequena mesa ao lado do celular e abriu o envelope. Era um cartão, mas no seu conteúdo não havia felicitações ou desejo de melhoras pela saúde. Na mesma caligrafia do envelope, estava escrita a seguinte mensagem:
LIGUE PARA O NÚMERO ABAIXO COM A MÁXIMA URGÊNCIA. POR FAVOR, NÃO DIGA OU MOSTRE A NINGUÉM ESTA MENSAGEM.
Logo vinha o número do celular indicado. Letícia franziu a testa. Que espécie de mensagem era aquela? E quem era o tal Daniel Ribeiro?
Mais uma vez tentou puxar da memória, mas não conseguiu associar o nome à figura.
Deveria ligar ou não? E se fosse algum maluco? Afinal, era muito estranha aquela mensagem e o pedido de mantê-la em segredo. Olhou para seu smartphone em dúvida. Apesar da desconfiança, a curiosidade em saber quem era o tal Daniel e o que queria era maior.
Aproximou-se da mesa, pegou o aparelho e estava prestes a discar o número quando a porta se abriu. Dessa vez, era Luciana.
- Mãe? – Letícia ergueu o rosto e arqueou as sobrancelhas.
- Ai, querida, você não imagina o que aconteceu! – Luciana foi entrando do seu jeito frenético e risonho – Quando eu comecei a fazer minhas compras pelo shopping e ia ligar para Elizabeth... ahm... Elizabeth Toledo, uma das maiores socialites responsáveis por organizar eventos de caridade – esclareceu ante a fisionomia confusa da filha – ... eu me dei conta de que estava sem um dos meus celulares, o que tem o número dela... – riu – Nossa, minha princesinha, entrei em pânico... o Antônio quem teve que lidar com meu chilique... Hum... Bom Antônio...ele é o meu motorista e sempre me acompanha com paciência nessas compras, além de ajudar a carregar as sacolas, é claro... Mas o fato é que ele me acalmou e me fez lembrar de que eu só poderia ter deixado meu aparelho aqui.
- Ahm... bem... eu não o vi – respondeu Letícia atordoada pelas informações que a mãe lhe passou em disparado. Ainda tentava se adaptar à sua personalidade. Olhou para a mesa e para a cama, mas nada – Tem certeza que o deixou aqui?
- Tenho, querida... Lembrei de que estava no banheiro na última vez que o usei – replicou Luciana, porém, sua atenção estava voltada para o ramalhete em cima da mesa. Abriu um sorriso – Que lindas suas orquídeas!
- Ah... são orquídeas?
- Sim, princesinha, suas favoritas. – Letícia arqueou as sobrancelhas com ar de surpresa. A mãe a fitou com malícia – Hum... Vejo que Ricardo não perdeu o jeito.
- Er... não foi o Ricardo que me mandou as flores – esclareceu, porém, no minuto seguinte, arrependeu-se ao ver a expressão de sua mãe se congelar e mudar para outra. De pânico. – Mãe?
- Quem foi que mandou as flores, Letícia? – seu tom alegre de antes mudou repentinamente para um tom apavorado
- Er... eu não sei... – Letícia se espantou com sua súbita mudança de humor – Disseram que foi o pessoal da ONG.
- Mandaram um cartão?
- Sim, mas...
- Me deixe ver o cartão. – estendeu a mão
- Mãe...
- Me deixe ver o cartão agora, Letícia! – Luciana foi ríspida
Letícia estava surpresa com a reação da mãe e hesitou por dois segundos. A mensagem era clara; pedia para que não mostrasse a ninguém. Contudo, pela expressão de Luciana teve a leve suspeita de que ela sabia de antemão quem seria o autor. E talvez não fosse alguém que merecesse sua confiança.
- Aqui – entregou o cartão – Diz no verso que é um tal de Daniel Ribeiro.
Luciana mal conseguiu disfarçar seu tremor e a expressão de pânico no rosto ao escutar o nome, porém, limitou-se apenas em tomar a mensagem da filha e ler. Letícia se assustou com a fisionomia lívida que se acentuou em sua face.
- Mãe, qual é o problema? – inquiriu – Quem é esse Daniel?
- Com ordem de quem isso foi entregue a você? – espumou Luciana ignorando suas perguntas e sem devolver o cartão à Letícia. Aproximou-se da lixeira com passos rápidos e jogou o cartão dentro após rasga-lo em vários pedacinhos. Olhou em seguida para o buquê na mesa – Quem foi o idiota que permitiu a entrega dessas flores para você sem a devida autorização?
- Evelyn, uma das recepcionistas...
- Vou exigir imediatamente que demitam essa incompetente! – cortou a filha e encaminhou-se para a porta, como se fosse tomar a medida, porém, Letícia a segurou pelo braço
- Mãe, calma aí! Ela não fez por mal... ela disse que é nova no trabalho.
- Não justifica tamanha negligência! – levantou os braços para o alto exasperada – Meu Deus, um hospital dessa categoria, o melhor de São Paulo, não deveria contratar profissionais tão desqualificados!
- Mãe, deixa a Evelyn em paz! – Letícia elevou o tom para espanto seu e de sua mãe
- Ah, estou vendo que sua mania de me gritar não foi apagada por sua amnésia – ironizou.
- Desculpe... foi sem querer – retrucou Letícia um pouco envergonhada. Suspirou – Mãe, por favor, deixa isso pra lá...- fitou-a intrigada – E me explica quem é esse tal Daniel pra você ficar assim.
- Ninguém – Luciana desconversou, virando o rosto.
- Mãe... óbvio que é alguém sim... e pelo visto não é boa pessoa só por você ficar desse jeito por ele ter me enviado esse buquê – cruzou os braços – E não adianta me convencer do contrário.
- Filha, esquece...
- Não, não vou esquecer, me desculpe – confrontou-a decidida, embora num tom mais brando – Estou cansada de fazer perguntas que você e meu pai claramente evitam de responder sei lá por qual motivo – Luciana a encarou como se não soubesse do que falava – E não adianta negar, que já percebi. Deixei passar até agora para não aborrecer vocês.
- Filha, que isso... você só está imaginando coisas – Luciana balançou a cabeça para os lados com um falso sorriso
- Quem é esse cara, mãe? Se é uma pessoa inconveniente de quem devo me manter afastada, preciso saber. Estou sem memória, lembra? Se você não tivesse aparecido aqui, eu teria ligado para ele no número que escreveu mesmo sem saber quem era.
- Filha, você faria isso? – sua mãe a encarou incrédula – Ligar para um desconhecido ainda com uma mensagem estranha como essa pra você não contar para ninguém?
- A mim não me pareceu um desconhecido se sabe até quais minhas flores favoritas, coisa que eu até mesma ignorava – retrucou – E então?
- Ele... ele... é um ex-funcionário da empresa de seu pai – respondeu Luciana com expressão cautelosa
- E qual a relação dele comigo?
- Nenhuma, mas.... ele deve estar querendo se aproveitar de você para se aproximar da nossa família.
- Continuo sem entender.
- Ele deu um golpe na empresa de seu pai... um desfalque enorme que quase levou Marcos à falência.
- Desfalque?
- Sim, mas acabou preso... só que não por muito tempo. – suspirou – A justiça brasileira ainda é falha.
- Mas não faz sentido, mãe. Por que ele ia querer me mandar flores para se aproximar da nossa família? E principalmente a família na qual ele deu um golpe?
- Vai... vai saber o que se passa na cabeça dessa gente, Letícia – a moça a fitou com descrença, porém, Luciana fez uma expressão de quem acabava de ter um pensamento repentino – Talvez... talvez ele esteja querendo afrontar a seu pai, só pode ser. – balançou a cabeça como se concordasse com a própria ideia – Ou então pretendia te sequestrar... Só pode ser isso. De alguma forma, ele soube de sua amnésia e quis se aproveitar do fato. – apontou o cartão – A prova é o teor da mensagem que está escrito aqui. Na certa, ele quer ganhar sua confiança aos poucos e dar um jeito de te raptar.
- A senhora... acha? – Letícia vacilava
- Claro, minha filha. Pensa comigo... Ele lhe manda flores falando que é da ONG e no cartão te pede para ligar sem falar nada com ninguém. Não lhe parece lógico?
- É... olhando por esse ângulo – Letícia foi se convencendo – Mas se arriscar assim?
- Ah, minha filha, quando uma pessoa não tem mais nada a perder, é capaz de tudo. – Luciana dizia com firmeza que não deixava sombra de dúvida – E esse cara, mesmo sendo solto, perdeu a reputação depois desse golpe e com certeza não deve estar conseguindo arrumar trabalho.
- E como ele sabia do meu gosto para flores?
- Ora... não é muito difícil de descobrir. Você... seu pai...nós somos uma família bastante conhecida da alta sociedade. E se perguntar para as pessoas certas, consegue-se uma informação simples como essa.
- Só não entendo por que você não quis me falar dele no começo.
- Ah, querida, é um assunto desagradável... Até hoje incomoda seu pai. – suspirou – Apenas fiquei irada com o atrevimento desse rapaz – passou a mão no rosto com evidente preocupação que convenceu Letícia – Só que eu não tinha pensado na possibilidade dele pretender lhe fazer algum mal... um sequestro, como eu acho.
- Mãe, se for mesmo essa possibilidade... é melhor então avisarmos o Ricardo.
- Não, querida, melhor não – Luciana pareceu alarmada. – Não vamos nos precipitar, pode ser exagero meu. De qualquer jeito, vou avisar o pessoal do hospital para continuarem a não permitir outras visitas que não sejam a de seu marido, a minha e a de seu pai, ou mesmo a Laura se ela voltar antes de você sair daqui. E também não entregarem nenhuma encomenda que não esteja no nosso nome... e confirmarem se fomos nós que enviamos.
- Certo, mas, por favor, mãe, não mande despedir a pobre Evelyn.
- Tudo bem... desde que ela não repita esse erro.
- Não é melhor ao menos avisar ao pai já que se trata de um ex-funcionário dele?
- Sim... eu vou ter que chateá-lo com essa história de novo. – Luciana pegou nas mãos da filha – Mas, preste atenção, Letícia, esse cara.... esse Daniel é perigoso... Você está com amnésia, mas tem que acreditar quando digo que não deve tentar se comunicar com ele... nem queira saber nada sobre esse sujeito. Quando sair daqui e se não recuperar sua memória, não deixe que se aproxime de você e nem receba nada no nome dele. Entendeu?
- Tudo bem, mãe... Eu acredito em você – Letícia assentiu, mas a atitude da mãe ainda a intrigava
- E não comente nada sobre hoje com seu marido. Ricardo é... costuma ser um homem equilibrado na maior parte das vezes, mas quando se trata de você, ele é... – interrompeu-se
- Ele é o quê?
- Protetor. Muito protetor... e preocupado. É melhor não o incomodar com um acontecimento tão banal como esse...
- Se você diz – ela deu de ombros
- É melhor até que eu me livre dessas flores – Luciana pegou o ramalhete – Se Ricardo as vir, pode fazer perguntas...
Letícia não protestou, contudo, a impressão que tinha era que sua mãe estava mais apavorada com a possibilidade de Ricardo se informar da entrega do tal Daniel do que a possível ameaça do próprio Daniel.
- Deus, que cabeça! – Luciana colocou as flores de volta – Primeiro... o celular. – esboçou um sorriso forçado como se quisesse dissipar a tensão. Foi até o banheiro- - Ah, graças a Deus! Estava aqui mesmo em cima da pia – voltou ao quarto e tornou a apanhar as flores – Vou jogar numa lixeira fora desses muros – olhava para Letícia com aquela expressão alegre, mas dessa vez, não lhe alcançava os olhos. Aproximou-se da filha e beijou seu rosto – Tchau, minha princesinha, até mais tarde.
- Até. – Letícia a correspondeu da mesma forma e ficou parada no mesmo lugar observando sua mãe sair
Estava tão intrigada com o acontecido que nem se lembrou de avisar Luciana sobre sua alta.
- 0 –
Eram três horas da tarde quando Luciana retornou acompanhada de Marcos. Letícia despertava de uma soneca; espreguiçou-se quando os viu se aproximarem.
- Oi, pai. Oi, mãe – cumprimentou-os com um sorriso e sentou-se na beirada da cama – Já chegaram?
- Oi, minha querida – Marcos lhe deu um beijo no topo da cabeça – Acordamos você?
- Não, eu já estava acordando.
- Sua mãe me contou das flores que recebeu... do Daniel – Marcos trocou um olhar com a esposa enquanto se sentavam cada qual numa cadeira – E do cartão pedindo para que você ligasse.
- Ela me contou do desfalque que ele deu na sua empresa – Marcos desviou o olhar e engoliu em seco como se o assunto o perturbasse – Incomoda falar sobre esse assunto?
- Já passou – disse ele claramente desconfortável – E... é melhor deixar enterrado.
- Mas parece que ele não quer enterrar – insistiu Letícia olhando de um para o outro – Mamãe suspeita até que ele pode estar querendo se aproximar de mim para te atingir. Ou até um sequestro.
- Sua mãe está exagerando – ignorou o movimento de Luciana ao cruzar os braços e olhá-lo com advertência – Ele não faria isso.
- Por que tem tanta certeza? – estranhou a postura despreocupada de Marcos. Ele não parecia alarmado como Luciana – Você o conhecia intimamente?
- Ele era... diretor financeiro da minha empresa – declarou Marcos sem fitar Letícia – Era de minha inteira confiança
- E mesmo assim foi capaz de trai-la, não é mesmo, querido? – a esposa colocou a mão em seu ombro e emulou um sorriso forçado
- É. – retrucou Marcos após observar a face da esposa e estreitar os olhos. Deu de ombros – Infelizmente foi assim.
- Mas... então o senhor não acha que ele queira me sequestrar ou me usar para te atingir?
- Sei lá, filha... pode ser. Não sei de mais nada – passou a mãos pela cabeça com ar cansado. Letícia o fitava intrigada por sua aparente despreocupação. E também não parecia haver o menor resquício de ódio ou mágoa no tom ou no rosto de seu pai pela traição de Daniel. Havia mais uma nota de pesar. Ela trocou um breve olhar com a mãe que mantinha a postura rígida. Como se sentisse o olhar de ambas, Marcos olhou fixo para a filha – De qualquer jeito, faça como sua mãe lhe disse... e se mantenha à distância.
- Você acha que ele pode querer me procurar ou tentar se comunicar de novo?
- É possível.
- Então... não seria melhor contar para o Ricardo? – alternou o olhar para ambos – A mãe acha que eu não deveria preocupá-lo ao mencionar sobre as flores e o cartão.
- Por mim, você deveria contar sim. – ele colocou a cabeça sobre as mãos entrecruzadas. Nos lábios, um estranho sorriso – Seria interessante ele saber que Daniel está à espreita.
Letícia estranhava cada vez mais a postura de seu pai. Ele não parecia nem um pouco preocupado fosse pelo tal Daniel, fosse por Ricardo se inteirar, aliás, parecia até que a ideia o divertia. Quanto a sua mãe, tanto o corpo quanto o rosto estavam tensos.
- Eu acho que não – Luciana reafirmou e voltou-se para a filha – Mas se esse rapaz mandar outra vez algum presente ou cartão ou tentar se aproximar, aí sim, você fala com seu marido.
- É, melhor. – concordou o pai com um suspiro. Em seguida, abriu os braços numa atitude irônica – Não vamos incomodar o grande Ricardo Fontes Guerra e deixá-lo à beira de um colapso.
- Querido... – Luciana o advertiu entredentes alternando um olhar nervoso para ele e Letícia
- É apenas uma brincadeira – levantou os braços em sinal de trégua.
Letícia estava cada vez mais confusa. Percebia uma comunicação nas entrelinhas entre os pais, uma que tentavam lhe ocultar. Resolveu lhes questionar a respeito, mas foram interrompidos por uma batida na porta.
- Pode entrar – respondeu Letícia.
A porta se abriu e os três voltaram seus rostos na direção. Era Ricardo e trazia uma bolsa grande e preta nas mãos. Na fisionomia, um largo sorriso, que se apagou ao cruzar os olhos com Marcos. Porém, voltou a ostentá-lo.
- Boa tarde, Luciana. Boa tarde... Marcos.
- Boa tarde – responderam ambos. Marcos um pouco mais lento que a esposa e nada animado.
- Boa tarde, Letícia – ele se dirigiu a esposa com mais entusiasmo e aproximou-se, permanecendo de pé. Não escondia o brilho nos olhos. – Foi bom o seu dia?
- Foi... ótimo – estava um pouco constrangida e tensa por se lembrar de que não deveria mencionar sobre o tal Daniel, as flores e a mensagem do cartão.
- Algum problema? – ele desfez o sorriso e franziu o cenho. Havia notado seu desconforto.
- Nenhum – ela tratou de disfarçar com um largo sorriso – Só... estava conversando com meus pais.
- Sobre o quê? – alternou o olhar entre ela e os sogros – Posso saber?
- Assuntos de família – retrucou Marcos com rispidez. O maxilar estava tenso.
- Acho que por isso mesmo eu deveria saber – Ricardo forçou um sorriso, mas com um olhar nada amigável para o sogro – Sou marido de sua filha... então também faço parte dessa família.
- Claro que sim – Luciana se apressou a dizer, o olhar voltado para Ricardo, mas a mão alisava o braço de seu marido como se quisesse contê-lo – Não estávamos conversando nada de muito importante. Apenas... contando à nossa filha episódios engraçados sobre a infância dela.
- Certo... – murmurou Ricardo, mas havia certa desconfiança em seu rosto ao olhar de Luciana para Letícia, que se remexeu inquieta
- E essa bolsa? – Luciana observou o que ele carregava, talvez para desviar o foco da conversa
- São as roupas e sapatos de Letícia... e bom, não entendo muito, mas peguei alguns itens que acho que servem de maquiagem – retrucou com um sorriso, porém, o desfez ao observar as expressões confusas e indagadoras dos sogros. Voltou-se para a esposa – Você não contou para eles?
- Ai, é mesmo... eu me esqueci – ela colocou a mão na testa
- Contou o quê? – indagou Marcos
- O médico vai me dar alta daqui a pouco... lá pelas quatro... e eu liguei para o Ricardo e disse que podia me buscar. – deu de ombros – Desculpe, pai, mãe... eu meio que me esqueci, me distraí... com um filme que estava vendo de manhã – trocou um olhar significativo para ambos, como se tentasse lhes recordar o verdadeiro motivo, um que tentou passar despistado do marido. Eles entenderam ao assentirem – Foi mal.
- Então... você vai embora com o Ricardo. – soava mais como uma pergunta do que uma afirmação e o tom empregado por Marcos não parecia muito satisfeito
- É, pai... é mais lógico. – fitou Ricardo um momento e voltou a olhar para Marcos – Ele é o meu marido e...
- Filha, você não tem que ir com ele se não quiser.
- Marcos! – Luciana lhe chamou a atenção
- Pode ir para nossa casa, meu bem – ele ignorou a esposa – Lá continua sendo sua casa também. Sua mãe e eu ficaríamos felizes em recebe-la.
- Eu sei, pai...– estranhava a atitude de Marcos e notou a tensão que se evidenciava no rosto e corpo de Ricardo –, mas...
- Não se sinta obrigada a ficar com ele, filha.
- Não estou obrigando Letícia a nada... Marcos – Ricardo disse entredentes o nome do sogro. Parecia se controlar – Eu deixei claro nas conversas com minha esposa que ela podia se decidir com quem ela deseja morar.
- Quero escutar dos lábios da minha filha – contestou Marcos no mesmo tom sem desgrudar os olhos de Letícia – Você deseja mesmo ir embora com... seu marido?
- Sim, pai, é o que desejo – afirmou sem hesitação. Viu a frustração se estampar no rosto do pai e um sorriso no de seu esposo – É o mais lógico não só por Ricardo ser meu marido, mas porque se é para recobrar minha memória, preciso retomar minha rotina de antes do acidente.
- Está bem – Marcos assentiu com ar desanimado – Se é o que quer.
- É o que quero, pai. – alisou o braço dele – Tenho certeza.
- Meu amor, Letícia perdeu a memória, mas não a capacidade de pensar por si mesma – Luciana sorria forçado com o rosto tenso.
- Se você mudar de ideia, filha... – Marcos colocou as mãos sobre os ombros de Letícia –... saiba que nossa casa sempre estará de portas abertas.
- OK, pai. – engoliu em seco, queria encerrar a questão. Podia notar o clima tenso que se instalava, sobretudo, por parte de Ricardo – Entendi.
- Cometi muitos erros, meu bem. E errei com você também – Letícia o encarou com expressão indagadora – Mas saiba que eu te amo muito. Você é a minha filha querida, meu maior tesouro. Quero que seja feliz.
- Er... seu pai está muito dramático e emotivo hoje – Luciana riu e se colocou de pé para salvar a situação – Quem costuma ser assim sou eu. – voltou-se para o marido – Querido, que tal irmos à lanchonete tomarmos um café? – Marcos demorou a responder e apenas a fitou com expressão sombria – Vamos, querido - ela arregalou os olhos e murmurou entredentes – É melhor deixar os pombinhos a sós.
Marcos permaneceu calado. Assentiu com um suspiro.
- Melhor mesmo. – se pôs de pé e encarou Letícia ainda por um bom tempo, como se quisesse lhe comunicar alguma mensagem que não pudesse expressar por meio de palavras – Vamos.
E passou ao lado de Ricardo. Letícia notou que ele dirigiu um olhar a este. Não deu para ver o rosto porque Marcos estava de costas, mas podia adivinhar sua expressão hostil. Contudo, seu marido permaneceu impassível sem lhe voltar.
Os pais de Letícia saíram do quarto, deixando-a sozinha com o marido. Porém, ela ainda olhava a porta pela qual haviam saído, os pensamentos confusos pelas palavras e atitudes de Marcos... e sua evidente hostilidade com Ricardo.
- O seu pai não gosta de mim – respondeu o empresário como se adivinhasse seus pensamentos. Ela o fitou surpresa por lhe confirmar a suspeita. Ele se aproximou, colocou a bolsa na parte inferior do colchão e ocupou a mesma cadeira que Marcos esteve sentado, de frente para ela. – Ele nunca gostou.
- E... por quê?
- Por três motivos. Um: ele acha que sou velho demais para você – esticou a mão com o punho fechado e mostrou seguidamente o polegar, o indicador e o dedo médio como se enumerasse, a expressão irônica e despreocupada – Dois: ele acha que fui um péssimo amigo em ter ficado todos esses anos sem me comunicar com você e seu irmão. E três: por causa da reputação do meu pai.
- Eu... ahm... seu pai? O que tem a ver?
- Sua mãe não te contou? – ele esboçou um sorriso divertido – Creio que ela deve ter falado mais sobre mim do que eu mesmo.
- Er... sim – admitiu Letícia – Mas porque eu perguntei. Eu queria saber mais a seu respeito, mas... estava sem jeito de te perguntar.
- Não te dei muita abertura, não é? – ele assentiu e levantou as sobrancelhas – Mas é natural que você queira saber.
- Ela me contou que... seu pai tinha fama de mulherengo, alcoólatra... e agressivo – ela o olhou cuidadosa – E que dizem que foi por isso que a esposa o deixou.
- É... e a mim também – soltou um riso curto com sabor ácido
- Desculpe.
- Não, tudo bem... não é segredo para ninguém que o grande bilionário Ricardo Fontes Guerra foi abandonado pela mãe – disse num tom brincalhão como se fizesse um anúncio, mas era perceptível seu tom amargo. Letícia o observou sem saber o que dizer – E ficou sob os cuidados do pai mulherengo e beberrão.
- E esse é um dos motivos de meu pai não gostar de você? – Letícia mudou o foco para não o aborrecer – O que tem a ver?
- Não é só pelo comportamento degradante de meu pai. Ele também era um homem horrível ao lidar com as pessoas no campo profissional. Em matéria de conduzir os negócios e empreender novos investimentos, era um gênio... mas em se tratando de relacionamento humano, dizer que ficava a desejar era pouco. Era um tirano, manipulador e usava de métodos nada legais para conseguir o que fosse. E mesmo que agisse de um modo que ninguém pudesse acusa-lo de nada, todos os grandes empresários tomavam conhecimento de seus atos fora da lei, inclusive seu pai.
- Ainda assim, você não tem que pagar pelos erros do seu – ela o encarava com brandura. Ricardo a fitou com um olhar enigmático e profundo que a incomodou. Ela desviou o olhar – E os outros dois motivos também me parecem sem sentido para meu pai não gostar de você – voltou a fita-lo com coragem – Você ser mais velho... Dez anos de diferença não são muita coisa. E você nem parece ter mais de trinta.
- Hum... obrigado – ele não pôde deixar de esboçar um sorriso charmoso e genuíno.
- Mas é a verdade – correspondeu ao sorriso – E quanto ao fato de você ter ficado anos sem comunicar comigo e com meu irmão... bem, não lembro se você me explicou a razão, mas seja como for, também acho besteira do meu pai.
- Ele me disse na cara que eu não estava aqui quando o Sérgio morreu – admitiu num tom ressentido – Que foi o momento que você mais precisou de mim.
- E o que você poderia ter feito? – ela mexeu o nariz – Hum? Nada.
- Teria te dado apoio... ser um consolo.
- Se você não estava aqui, não foi porque não quis, foi porque não pôde. Ninguém tem que te julgar, muito menos o meu pai. – viu a expressão de Ricardo se desanuviar – E continuo achando banais esse e os outros motivos para ele não gostar de você.
- Para ele não são – deu de ombros – Mas fazer o quê? Todo pai quer achar defeitos no tipo de homem que não considera à altura de sua filha.
- Sou eu quem tem que considerar se você está ou não está à minha altura, Rick – disse sem rodeios, mas se assustou ao ver os olhos dele se arregalarem e seu semblante empalidecer – O que foi?
- Você... me chamou de Rick. Esse era o apelido que você me deu quando era pequena... e mesmo depois de adulta, quando nos reencontramos, me chamava assim às vezes.
Durante alguns instantes, não soube o que responder, tão surpresa que ficou. Por fim, disse:
- Foi involuntário. – os lábios ficarem meio entreabertos ainda pelo espanto, mas formavam um meio sorriso – Será que significa que minha memória vai voltar em breve?
- Não sei. – ele fechou a cara e desviou o olhar como se a ideia o desagradasse – Pode ser.
Letícia cada vez entendia menos o seu marido. Ele não deveria ter uma reação mais animada?
- Eu... notei que você e seus pais estavam conversando e ficaram tensos quando cheguei. – mudou rápido de assunto como se quisesse esquecer o incidente. Seus olhos a sondavam – Sobre o que conversavam?
- Eu... Minha mãe disse, era sobre... recordações da minha infância.
- Tem certeza disso? – o tom era de descrença e inquisitivo assim como seu olhar
- Tenho – tentou parecer firme, mas falhou. Por alguma razão, não conseguia mentir para ele. – Não falávamos nada demais.
- Letícia, seja o que for, pode me dizer – insistiu. Ela engoliu em seco – Não me esconda nada.
- Eu não estou escondendo – protestou, embora se sentisse mal por lhe ocultar sobre Daniel. Desviou o olhar para não vacilar – Apenas... não tem nada de importante.
- Tudo o que se refere a você é importante para mim – aproximou mais seu corpo e colocou as mãos sobre o rosto dela, obrigando-a a encará-lo. Ela estremeceu. – Se não quer me contar agora, tudo bem. Eu só quero que saiba que pode me falar sobre o que quiser. Qualquer lembrança que tiver, qualquer incidente por mais bobo que possa lhe parecer, não hesite em me dizer – os olhos dele se intensificaram assim como o tom amoroso em sua voz – Pode não se lembrar de mim, mas continuo sendo seu marido e estarei a seu lado em qualquer situação. Eu só quero protegê-la. Eu disse e repito: confie em mim.
- T... t... tá – ela gaguejou tanto por seu olhar intenso como pelo contato das mãos dele em seu rosto, em sua pele.
Seu corpo reagia de uma maneira estranha ao toque de seu marido, como se uma corrente elétrica o percorresse. Um calor desceu da face às suas pernas. Ela tremia.
Ricardo estava perto demais, cada vez mais perto, podia sentir seu perfume. Observou sua face linda e bem desenhada e aqueles olhos de uma imensidão que poderia traga-la. O rosto se aproximou e parou a milímetros do dela; seu olhar alternava entre os olhos dela e a boca, que se entreabriu nervosa. A respiração dele falhou assim como a sua. Ela também mirou a boca dele, mas se arrependeu quando viu o brilho de luxúria em seus orbes se intensificar.
Uma parte de Letícia queria que ele o fizesse, que tomasse sua boca num beijo. Mas também estava muito insegura, tinha tanto medo; não sabia se era dele ou de si mesma; era como se temesse ficar à sua mercê. Como se ao se entregar sem conhecimento de sua vida anterior ao acidente, pudesse ficar nas mãos daquele homem e não conseguisse mais se libertar, presa a um sentimento avassalador. Será que o amava antes dessa forma? Se fosse o caso, desejava e temia ao mesmo tempo voltar a experimentar esse amor.
Não estava pronta para aquele beijo, mas tampouco tinha forças para afastá-lo. Não sabia o que fazer; foi Ricardo quem resolveu por eles. Lentamente, retirou as mãos de seu rosto e afastou-se, embora mirasse sua boca por um tempo.
- Desculpe... eu me excedi – abaixou os olhos e esboçou um leve sorriso de desculpas, mas não parecia muito constrangido
- T... tudo bem – gaguejou ela e abaixou o rosto. A respiração veio forte nos pulmões.
- Trouxe duas roupas para você... e os sapatos – disse ao se levantar de supetão. Ela o observou atordoada com seu movimento. – Não sabia o que você ia preferir... então te trouxe mais de uma opção.
Ele disfarçava o que quase tinha acabado de acontecer, mas de fato, não parecia constrangido, nem atordoado como ela. Parecia mais... satisfeito. Era evidente pelo sorriso de canto.
- Eu.... ahm... o quê? – tentou ordenar as ideias um tanto confusa. Seu corpo ainda tremia – Ah, sim, certo... as roupas... a... a alta.
De repente, sentiu-se uma retardada. Corou ao vê-lo acentuar o sorriso torto e encará-la com um olhar felino por sua reação.
- Conversei com o Rafael antes de vir aqui – ele continuou – Ele afirmou que sua alta está garantida... ele só tem que preencher os papéis e organizá-los. Se quiser, você pode até trocar de roupa para se adiantar.
- Er... tá... certo – ela se levantou. Não sabia se o encarava ou se olhava para o chão – Eu... vou me trocar
Ergueu a minimamente a vista, apenas para olhar a bolsa que ele lhe estendia.
- Vou deixa-la aqui sobre a mesa – afirmou sem deixar de encará-la
- Er... você se importa de... de me deixar sozinha um tempinho? – colocou uma mecha na orelha num gesto evidente de nervosismo – Uns... quinze minutos?
- Não, claro que não. Eu... vou na lanchonete tomar um café. Vou me juntar a seus pais. Quer que eu traga algo para você?
- Apenas água, por favor.
- Certo. – ele continuou a fitando intensamente. Ela engoliu em seco, tentando afastar o seu olhar o máximo que conseguia – Então... até daqui a pouco.
- Até.
Olhou para baixo e não o encarou mais até escutar o barulho da porta quando saiu. Assim que se viu sozinha, Letícia se sentou na cama com as pernas bambas.
Deus, Ricardo quase a beijou! E ela desejou que o fizesse, embora estivesse amedrontada.
Mas ele não o fez, talvez por perceber seu medo. Não sabia se ficava aliviada ou desapontada. Talvez mais a segunda opção.
Agora sabia que seria um martírio viver ao lado de seu marido. Um martírio de desejos e insegurança ao qual ela deveria aprender a lidar. Mas era tarde demais para voltar em sua decisão de morar com os pais.
Ou talvez estivesse exagerando, talvez estivesse com pudores demais.
Ora, seu marido era um homem lindo, atraente e irresistível; ela mesmo o admitia. Qualquer mulher não pensaria duas vezes e se jogaria nos braços dele.
O problema é que não sabia se deveria fazê-lo sem se lembrar dele e do seu relacionamento. E também não podia evitar a vergonha, não sabia como agir com Ricardo.
Em algum canto de seu cérebro, havia uma noção de como uma mulher deveria se comportar diante de um homem. E para passar o tempo, estava assistindo algumas novelas, seriados e filmes pela TV a cabo do hospital e as cenas que via sobre relações amorosas reforçavam seu conhecimento.
Pelo que via e intuía, muitas mulheres tomavam a iniciativa, inclusive as adolescentes que chegavam a ser até mais atiradas.
Será que seu antigo eu saberia lidar com um homem como Ricardo? Evidente que sim, ou não estaria casada. Apenas não sabia e não tinha certeza se algum dia se lembraria como.
Dar tempo ao tempo, era isso. De repente, sentiu-se um pouco mais aliviada por tomar essa decisão. Não se forçar, mas tampouco se negar se, porventura, outra oportunidade como aquela do “quase beijo” com Ricardo surgisse. E tinha impressão que não demoraria a surgir.
Deixar as coisas acontecerem naturalmente... era o que faria. E se elas a conduzissem até os braços de Ricardo, que assim fosse.
Com ou sem memória.
Autor(a): jord73
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