Daphne: VELMA, ISSO NÃO TEVE GRAÇA NENHUMA!
Eu acordei de maneira brusca com um travesseiro de quase dois quilos sendo arremessado contra a minha cara. Eu não sabia quantas horas eu havia dormido, mas não foi o suficiente para descansar nem para me livrar das sensações horríveis que o pesadelo me causou. Quando eu me sentei no sofá, Daphne começou a gesticular e apontar para o quarto. As bochechas dela estavam bastante vermelhas e ela parecia tão transtornada devido à timidez que nenhuma palavra de protesto conseguia sair dos lábios dela.
Velma: Hoje é 19 de junho, faz dez anos do nosso baile de formatura, acredita? Então eu achei que vocês dois mereciam uma edição comemorativa de dez anos… você sabe, para vocês lembrarem tudo o que aconteceu naquela noite…
Eu não tive tempo de rir do meu deboche, porque em seguida recebi outro travesseiro na minha cara, desta vez de maneira mais forte e violenta.
Daphne: NÃO TEVE GRAÇA! EU NÃO SEI O QUE VOCÊ PLANEJOU, MAS FOI RIDÍCULO, VELMA!
Velma: Calma, eu não planejei nada! O Flim Flam me acordou de madrugada para falar que as digitais dos galões são do Gi-Hun… e que a polícia de Seul tem evidências fortes de que Shaggy está certo…
Toda timidez de Daphne desapareceu como mágica, e eu pude ver o rosto dela ficar sombrio com a descoberta.
Daphne: Bem, então vamos acordar os meninos para contar a novidade e agilizar a visita nos locais em que Gi-Hun esteve…
Antes que eu pudesse concordar, Fred apareceu na sala com o cabelo desarrumado e cara de interrogação. Ele também parecia confuso e envergonhado por ter acordado na cama em que Daphne dormiu, mas não disse nada a respeito. Daphne, por sua vez, o evitou e correu para o escritório para abrir a porta que Scooby-Doo estava arranhando. Fred, então, me encarou com receio, certo de que eu iria lhe dar uma bronca.
Fred: Eu sei que você deve estar pensando que é fisicamente impossível um corpo de 1,90m de altura e 100kg se deslocar seis metros sozinho, mas eu JURO que eu não fui voluntariamente para aquela cama…
Velma: Flim Flam ligou de madrugada para falar sobre o caso e a Daphne me expulsou do quarto, então eu vim para a sala e você mesmo ‘se expulsou’ daqui porque eu estava fazendo muito barulho, fim do mistério!
Scooby correu em nossa direção e pulou alegremente. Logo atrás dele, Shaggy surgiu tão irritado que parecia estar possuído por um demônio. Sem ao menos dizer “bom dia”, ele se jogou no sofá e cobriu a cabeça com uma almofada enquanto amaldiçoava o dia e a claridade do apartamento. Scooby pulou em cima dele com a mesma alegria, mas as patadas violentas e as lambidas só irritaram Shaggy ainda mais.
Velma: Ah, esse daí estava trocando tiros no Free Fire às 5h40 da manhã, então eu acho que ele não será muito produtivo até o meio dia…
Daphne: Ou até o café da manhã…
Ao dizer isso, Daphne entregou alguns biscoitos a Scooby-Doo, e o cheiro açucarado fez Shaggy se sentar no sofá e tomar os pacotes das mãos dela. O humor de Norville foi melhorando gradativamente, biscoito a biscoito, até que um sorriso apareceu quando o pacote esvaziou.
Shaggy: Quando o café da manhã vai ficar pronto? Mas eu quero café da manhã de verdade, essas comidas feitas de whey protein que você tem aqui são horríveis, Fred!
Se a comida era ruim e Shaggy comeu todo o estoque de Fred, imagine se fosse boa.
Velma: Tem uma cafeteria pet-friendly ótima a duas quadras, Shags, vamos nos arrumar e tomar café lá? Eu explico as descobertas de Flim Flam enquanto comemos…
As minhas palavras mágicas “cafeteria” e “tomar café” tiveram em Shaggy o mesmo efeito do que oito horas de sono, e ele se levantou revigorado. Obviamente, ele ignorou a parte “vamos nos arrumar” e apenas lavou o rosto e calçou os sapatos.
***
Daphne e Fred evitaram a presença um do outro até o momento em que a garçonete da cafeteria ofereceu um jornal a Shaggy para tentar distraí-lo - e tentar diminuir o ritmo com que ele esvaziava as cestinhas de pães que a cafeteria oferece de cortesia.
Shaggy: Hey turma! Tipo, hoje faz dez anos da nossa formatura no colégio, que loucura não?
Dessa vez, eu ataquei a cestinha de pães com a mesma selvageria de Shaggy e enchi a minha boca de comida para eu não ter que dizer nada a respeito daquele assunto. Daphne e Fred se olharam e coraram, mas eles foram incapazes de dizer qualquer coisa.
Shaggy: E, tipo, olha só que coincidência! Naquele dia eu estava usando essa mesma camiseta aqui… e eu me lembro que eu também comi donuts de geléia de morango no café da manhã! Vocês se lembram do que vocês fizeram naquele dia?
Fred e Daphne ficaram ainda mais envergonhados, então eu mastiguei depressa os pães e elaborei uma boa ironia para intervir.
Velma: Eu estava usando esses mesmos óculos também…
Shaggy: Puxa! Tão vendo? Tipo, as coisas estão se repetindo!
Fred então olhou para Daphne e esperou o contato visual dela para dizer alguma coisa sobre o fato de os dois terem acordado na mesma cama naquela manhã. Ou na manhã de dez anos atrás. Mas Daphne não caiu na armadilha dele.
Daphne: Não estão não! Há dez anos o meu pai não era um vilão de manchete de jornal, minha casa não era alvo de investigações do FBI, minhas contas não estavam bloqueadas e eu podia pagar qualquer coisa sem ter que levar quilos de dinheiro ilegalmente por aí…
Daphne encerrou empurrando o jornal no centro da mesa, e nele as manchetes eram todas sobre George Blake e Steven Applegate. Eu pude notar que os olhos dela estavam marejados, por isso eu a confortei com um abraço. Fred ficou imóvel, indeciso se deveria falar a respeito do comentário triste de Daphne ou sobre todas as outras coisas - do passado e do presente - que ele queria dizer a ela. Como o assunto “formatura” aparentemente havia terminado, ele desistiu de seus sentimentos e apenas segurou a mão dela.
Fred: Estamos quase resolvendo esse mistério, Daph, tenha calma… em um ou dois dias pegaremos os malditos VIPs e tudo voltará ao normal… nem sempre as coisas são como nós esperamos, mas não significa que elas sejam ruins… todas essas coisas ruins que você está passando vão valer a pena! No final, nós vamos prender uma máfia internacional que está fazendo vítimas há mais de trinta anos!
Shaggy: Fred tem razão, Daphne, vocês se lembram da Googie, aquela menina que eu levei no baile? Tipo, dez anos atrás eu achei que a gente se amava e que seria para sempre, tá ligado?… tipo, eu achei que a gente ia casar e ter filhos e talz…
Velma: Você sempre acha isso sobre absolutamente qualquer garota com quem você se relaciona, Norville…
Shaggy: …tá, mas não vem ao caso! Com a Googie era diferente… tipo, eu achava que ia dar certo… mas não rolou… e hoje eu estou aqui, entendeu? Eu conheci o Scooby-Doo, e depois a Crystal, e depois a Sugie veio morar comigo, e eu trabalho com cães e com os meus melhores amigos, e ganhei vários campeonatos de CS, e o meu canal na twitch é um sucesso… tipo, tá muito melhor, minha gente! Então é isso aí, Daphne, fica tranquila que já já tudo vai melhorar!
Eu não achei os comentários de Fred e Shaggy explicitamente ofensivos, mas senti que algumas daquelas palavras machucaram todas as feridas que Daphne tem há anos a respeito de Fred e das expectativas que ela nutriu sobre ele. Os olhos verdes dela ficaram ainda mais marejados, e antes que eles transbordassem em lágrimas, ela se levantou.
Daphne: Fazer armadilhas estratégicas, prender os bandidos, ser o herói, receber toda a glória… é só isso que importa para você, né Freddie? Parece que Shaggy tem razão, as mesmas coisas de dez anos atrás estão se repetindo mesmo…
Antes que qualquer um de nós pudesse esboçar qualquer reação, Daphne jogou duas notas de cinquenta no centro da mesa e saiu.
Fred: Hey, aonde você vai?
Daphne: Vou prender a máfia internacional que está fazendo vítimas há mais de trinta anos! Não é esse o seu objetivo?
Daphne bateu a porta de vidro da cafeteria com tanta força que eu pensei que ela fosse quebrar. Fred nos olhou apreensivo, esperando que algum de nós fizesse alguma coisa ou dissesse o que ele deveria fazer. Shaggy o ignorou completamente – afinal, metade da comida que ele havia pedido ainda não tinha chegado, então nada no universo o faria sair dali – e eu apenas revirei os olhos e suspirei.
Velma: Fred, há dez anos eu fui atrás dela para consolá-la… você não acha que as coisas precisam mudar um pouco? Como você mesmo disse: nem sempre as coisas inesperadas são ruins… pode ser que valha a pena…
Shaggy: Sim, tipo, quando eu pedi, eu não esperava que esses muffins aqui fossem recheados, mas tá valendo muito a pena!
Eu revirei os olhos novamente e encarei Fred de maneira incisiva, exigindo alguma reação. Ele então terminou sua xícara de café e foi atrás de Daphne. Em menos de cinco minutos eu finalizei a minha refeição e me juntei à multidão de olhares horrorizados que assistiam Norville devorar grande parte do estoque de comida da cafeteria – e, pior, dividir tudo aquilo com o próprio cachorro. Quando os meus cálculos apontaram que o valor da nossa refeição estava atingindo os cem dólares, eu o arranquei daquela mesa e deixei o troco – e dois muffins inteiros – de cortesia para o garçon.
***
Fred estacionou na frente da loja de brinquedos, e antes que pudéssemos soltar nossos cintos, Scooby-Doo nos pisoteou, saiu pela janela e correu até um carrinho de hot dog que estava na esquina. Norville o perseguiu – ele estava mais animado com a ideia de comer hot dogs do que preocupado com o cão que havia fugido –, então coube a nós três a tarefa de entrar na loja e entrevistar os atendentes. Fred e eu nos olhamos e concordamos que a melhor estratégia seria apresentar nossas credenciais da NYPD, e quando fizemos isso, a jovem que nos atendeu nos conduziu ao dono da loja. O homem era oriental, aparentava ter mais de sessenta anos e se apresentou como “Sr. Zhang”. Ele se mostrou muito simpático quando nos apresentamos como policiais.
Fred: Sr. Zhang, estamos trabalhando em um grande caso nesse momento, e ontem recebemos uma informação da Interpol de que o nosso suspeito esteve em sua loja no dia de ontem e pagou uma compra com cartão de crédito… o nome dele é Seong Gi-Hun… ele é sul-coreano… esteve em sua loja por volta das 3 da tarde… esta é uma foto recente dele…
Fred entregou a fotografia nas mãos do Sr. Zhang, e ele sorriu e balançou a cabeça positivamente.
Sr. Zhang: Sim, eu me lembro dele… fez uma compra realmente grande… mas não vi nada de suspeito nele… ele parecia bastante simpático e generoso, deu boas gorjetas a todos os meus funcionários…
Fred: O Sr. se importaria de nos mostrar o que exatamente ele comprou?
Sr. Zhang: Claro! Só um minuto, vou encontrar a venda…
O velho começou a digitar em seu computador e vasculhar entre os registros de vendas enquanto Fred e eu discretamente olhávamos ao redor em busca de pistas. Através do vidro eu vi Scooby-Doo preso pela coleira em um poste, andando de um lado para o outro para pegar as pipocas que uma senhora lhe arremessava. Shaggy se aproximou de nós silenciosamente mastigando um hot dog enquanto recebia olhares de reprovação dos funcionários por estar comendo dentro da loja.
Sr. Zhang: Ah, aqui está, Seong Gi-Hun… compra grande… ele levou várias bonecas e bichos de pelúcia… e também encomendou um par de patins número 33 que eu fiquei de lhe entregar assim que chegar… eu não o atendi, mas quando eu estava registrando os produtos no caixa eu me lembro de ouvi-lo mencionar que o aniversário da filha dele foi há alguns dias… então creio que os brinquedos sejam para ela…
Fred: E quando os patins chegarem Gi-Hun virá buscá-los?
Sr. Zhang: Não, um dos meus funcionários irá entregar… ele deixou um endereço…
Fred: E o senhor poderia nos fornecer esse endereço que Gi-Hun lhe passou?
O velho hesitou diante do pedido de Fred. Ele olhou para cada um de nós e pude perceber que ele estava analisando nossas roupas e nossa aparência para concluir se éramos mesmo policiais. Creio que aparência desleixada de Shaggy - e a maneira nojenta como ele devorava o hot dog e lambia todo o molho que escorria pelas mãos e pela camisa – não passou muita credibilidade, então ele duvidou de nossas credenciais da NYPD.
Sr. Zhang: Desculpe, crianças, essas informações são confidenciais…
Daphne: Por favor, Sr. Zhang, é urgente! Muitas pessoas estão correndo perigo e precisamos achar Gi-Hun!
Sr. Zhang: Sinto muito, querida, eu não posso divulgar informações pessoais sem um mandado oficial de busca…
O velho se mostrou irredutível e Fred, Daphne e eu apenas suspiramos. Nós sabíamos que ele estava com a razão, por isso não insistimos. Shaggy não se mostrou preocupado, ele apenas enfiou o resto do hot dog na boca, lambeu os dedos e se aproximou do balcão.
Shaggy: Tem mais uma coisa, Sr. Zhang, tipo, eu queria saber se você tem daqueles bonequinhos da Bandai aí para vender…
A pergunta fez tanto sentido para nós quanto para o velho, ou seja, nenhum. Shaggy, porém, não se intimidou com os olhares de interrogação que todos nós lhe lançamos.
Shaggy: Tipo, aqueles bonecos action figure, homem! Machineman, Power Rangers, Yu Yu Hakusho, Dragon Ball… tá ligado?
Velma: Norville, não é hora de comprar seus bonecos idiotas! Estamos no meio de uma investigação!
Eu fiquei tão irritada com a pergunta inadequada de Shaggy que não percebi o Sr. Zhang sorrindo e balançando a cabeça de maneira afirmativa enquanto vasculhava o estoque de produtos no programa de computador. Quando ele encontrou os produtos mencionados, Shaggy começou a listar quais ele queria e logo em seguida o Sr. Zhang se afastou para buscá-los. Com uma rapidez impressionante, Shaggy digitou algo no teclado e encontrou o registro da compra de Gi-Hun. Em seguida, com a mesma agilidade, fotografou o endereço de entrega e apagou a sua busca, deixando o programa da maneira como o velho o deixou. Não demorou muito, o Sr. Zhang apareceu com duas caixas nas mãos e nós sorrimos para Shaggy com admiração.
Sr. Zhang: Sinto muito, filho, eu só tenho esses dois…
Shaggy: Tipo, não tem problema! Vou ficar com esses mesmo…
Sr. Zhang: São oitenta dólares…
Shaggy fez um barulho com a garganta e gesticulou para que um de nós pagasse pelos brinquedos.
Velma: O quê? Oitenta dólares? Nem pensar, Norville!
Shaggy: Velma! Você não imagina… como eles são… tipo, valiosos… e como foi difícil consegui-los…
A ênfase de Norville não me convenceu e eu realmente não estava disposta a pagar por aquela pista. Felizmente, Daphne era mais sensível - e bem mais rica – e se comoveu o suficiente para recompensar Norville pelo que ele havia feito.
Daphne: Aww, ele merece, Velma!
Assim que os bonecos foram para as mãos de Norville, ele comemorou como uma criança de seis anos e saiu da loja para pegar o cão. Quando entramos no carro, eu inseri o endereço no GPS e assisti Scooby-Doo mastigar oitenta dólares em forma de bonecos durante todo o trajeto.
***
As marcas de dentes que Scooby deixou nos bonecos abalaram a amizade entre ele e Shaggy. Enquanto caminhamos em direção à porta, o emburrado Norville ficou na calçada dando um sermão no cachorro – e ele parecia entender cada palavra. Pouco tempo depois de tocar a campainha, a porta foi aberta por uma garotinha oriental magra, de cabelos longos, e que aparentava ter 9 ou 10 anos.
Fred: Bom dia, eu sou Frederick Jones, capitão da polícia de Nova York, será que eu poderia falar com seus pais?
A menina nos devolveu um olhar assustado e timidamente chamou pela mãe. Logo em seguida uma mulher oriental, magra, de cabelos curtos e muito bem vestida veio nos receber.
Kang Eun-Ji: Bom dia, em que posso ajudá-los?
Fred: Bom dia, senhora, eu sou Frederick Jones, capitão da polícia de Nova York. Estas são Velma Dinkley, chefe da perícia da NYPD, e a advogada Daphne Blake. No momento, estamos trabalhando em um caso em parceria com a Interpol, e viemos até aqui porque um dos suspeitos desse caso esteve em Nova York no dia de ontem e deixou este endereço ao fazer uma grande compra em uma loja de brinquedos de Manhattan… o nome dele é Seong Gi-Hun e esta é uma foto recente dele… gostaria de saber se a senhora o conhece e se poderia nos ajudar…
O semblante da mulher mudou completamente, e havia uma mistura de raiva e tristeza em seu olhar. Atrás dela, no fim do corredor, eu pude ver a garotinha escondida atrás de uma poltrona, olhando para nós com os olhos marejados.
Kang Eun-Ji: Oh meu Deus! Eu não consigo acreditar… aquele… aquele… maldito! Maldito seja Gi-Hun!
Após um breve surto de raiva, a mulher nos convidou para entrar. Nós nos acomodamos em poltronas de uma sala grande e cheia de janelas. Na parte de baixo de uma das várias cortinas havia sapatinhos pretos, e eu percebi que a garotinha estava se escondendo para poder nos ouvir.
Kang Eun-Ji: Muito bem, eu sou Kang Eun-Ji… digam-me o que aquele desgraçado fez agora… pelo jeito, ele se tornou um desgraçado internacional, afinal, a Interpol e a NYPD estão atrás dele…
Fred: Então a senhora o conhece?
Kang Eun-Ji: Às vezes gostaria de nunca ter conhecido, capitão…
Fred: Qual seria o motivo para tanto ressentimento, Sra. Kang?
Kang Eun-Ji: Gi-Hun é meu ex-marido… ele é o pai da minha filha Ga-yeong, aquela garotinha que vocês viram agora há pouco… e ele foi responsável pelos piores anos da minha vida…
Fred: Piores em que sentido, Sra. Kang? Ele é um homem violento? Abusivo? Perigoso?
Kang Eun-Ji: Não, ele apenas foi um imenso idiota… em todos os sentidos… ele me abandonou durante o meu parto e eu quase morri ao dar à luz Ga-yeoung… além disso, ele sempre foi irresponsável com o emprego e com dinheiro, gastava demais, trabalhava de menos, fazia dívidas absurdas, gastava tudo com apostas em corridas de cavalos… e acho que nem preciso dizer que sempre foi um péssimo exemplo para Ga-Yeoung… ele é um péssimo pai…
Notei a cortina se mover quando a Sra. Kang disse que Gi-Hun era um péssimo pai, e pelo movimento, eu notei que a menina parecia estar esfregando os olhos.
Kang Eun-Ji: Ano passado, eu decidi vir morar nos Estados Unidos para manter Ga-Yeoung longe dele… primeiro nós nos mudamos para Los Angeles, mas pouco tempo depois ele veio vê-la… trouxe presentes caros e reestabeleceu a relação com a filha… então decidimos mudar para Nova York no mês passado, mas o desgraçado nos achou novamente! Ele apareceu aqui ontem, cheio de brinquedos… pelo jeito, teremos que ir para outro país para despistá-lo…
Novamente eu vi a movimentação do tecido da cortina na altura dos olhos da garota, então deduzi que ela estava chorando por ouvir aquela conversa.
Fred: Sra Kang, um dos motivos que nos trouxeram aqui foram esses brinquedos… ou melhor, o dinheiro que comprou esses brinquedos… a loja nos informou que Gi-Hun gastou quase quinhentos dólares em mercadorias, mas como a senhora disse, ele não trabalha… a senhora saberia nos dizer qual é a fonte de renda de seu ex-marido? De onde sai esse dinheiro que banca tantos luxos?
Kang Eun-Ji: Eu não sei, mas desconfio que não seja fruto de trabalho honesto… ele pode ter ganhado algum dinheiro naquelas malditas corridas de cavalos… ou em alguma falcatrua que ele elaborou para enganar alguém… ou, talvez, ele roubou as economias da pobre mãe… ou pegou algum dinheiro emprestado de alguém e não pagou… Gi-Hun é um vagabundo, capitão, é até difícil de imaginar quais crimes aquele inútil seria capaz de cometer para conseguir dinheiro fácil…
Através da cortina, uma grande protuberância se formou na região da cabeça da menina, e eu percebi que ela estava cobrindo o rosto com as duas mãos.
Fred: A sra. sabe se Gi-Hun se envolveu financeiramente com uma corretora de valores chamada Liberty? Se ele fez empréstimos, se usou algum serviço de investimento em bitcoins…?
Kang Eun-Ji: Não sei, capitão, mas como eu disse, esse homem é um irresponsável… não ficaria surpresa de saber qualquer tipo de escândalo financeiro dele…
Fred: Saberia nos dizer se ele é membro de algum tipo de máfia ou quadrilha?
Kang Eun-Ji: Também não sei, mas creio que ele seja muito fracassado para ser membro de qualquer coisa… esse homem não tem qualidade alguma…
Fred: E a senhora se lembra se Gi-Hun desapareceu por um período em junho do ano passado?
Kang Eun-Ji: Se ele desapareceu ninguém sentiu falta, capitão… na verdade, ficaríamos felizes se ele desaparecesse para sempre… seria um alívio até mesmo para a pobre mãe dele…
A última resposta foi tão ríspida que Fred e eu nos olhamos e hesitamos em continuar com as perguntas. Estava muito claro que os sentimentos pessoais que a Sra. Kang nutria pelo ex-marido não deixariam que ela nos desse qualquer tipo de informação útil sobre Gi-Hun e todo o caso. Fred olhou para mim com um olhar derrotado e entendi que ele gostaria que eu fizesse alguma intervenção.
Velma: Sra. Kang, eu entendo o seu ressentimento por Gi-Hun, mas nós não estamos aqui para incriminá-lo… na verdade, acreditamos que Gi-Hun seja o mocinho do nosso mistério… recentemente, nós descobrimos uma máfia internacional composta por banqueiros e pessoas poderosíssimas, e entre outros crimes, esse grupo é responsável pelo desaparecimento de centenas de pessoas desde o ano de 1988…
Fred: …algumas dessas pessoas se tornaram vítimas do tráfico de órgãos… e além dos desaparecimentos, essa máfia desvia 38 milhões de dólares todos os anos para uma ilha deserta sul-coreana chamada Silmido…
Velma: No início, nós acreditávamos que Gi-Hun fazia parte dessa máfia, mas as evidências recentes provam que ele está nos conduzindo a pistas que incriminam os mafiosos… por isso, Sra. Kang, nós apreciaríamos qualquer tipo de informação sobre Gi-Hun que a senhora puder nos fornecer…
Daphne: Um homem chamado Alan Mayberry acusou a corretora Liberty de ter desviado seu dinheiro ilegalmente, por isso, começamos a investigar essa corretora… inicialmente, nós acreditávamos que era esse caso seria um simples caso de roubo e estelionato, mas graças às evidências que Gi-Hun nos deixou, descobrimos que é algo muito maior e muito mais grave… e que Alan Mayberry, na verdade, não é a vítima, e sim um dos criminosos…
Fred: Nós encontramos as pistas desse caso graças ao nosso cão policial Scooby-Doo, ele farejou uma trilha de alvejantes que Gi-Hun deixou no local que estávamos investigando…
Velma: E nós descobrimos essa trilha porque Gi-Hun propositalmente deixou os galões de alvejante no aeroporto antes partir para Seul na noite passada… como o endereço da senhora foi outra evidência que Gi-Hun nos deixou, acreditamos que a senhora pode nos ajudar de alguma forma…
A Sra. Kang não ficou feliz de saber que Gi-Hun não era o vilão do nosso caso. Contrariada, ela suspirou profundamente e nos encarou com uma expressão séria.
Kang Eun-Ji: Eu sinto muito, mas não tenho nada de relevante para dizer sobre Gi-Hun, porque para mim ele é totalmente irrelevante… eu não sei se ele desapareceu o ano passado… o Gi-Hun tem o costume de sumir por uns tempos, seja pelo vício em jogos, seja por estar se escondendo de credores… como eu disse, ele não vale nada, ele é uma vergonha para a filha…
Mais uma vez eu vi a menina levar as mãos ao rosto, e dessa vez, os sapatinhos pretos se mexeram, inquietos.
Fred: Sabemos que milhões de wons foram depositados na conta bancária de Gi-Hun logo após esse breve desaparecimento… melhor dizendo, uma quantia equivalente a 38 milhões de dólares… sabemos que a fonte desse dinheiro é a máfia, mas precisamos saber o motivo pelo qual Gi-Hun ganhou essa quantia…
Kang Eun-Ji: O motivo, capitão, é porque ele é um bandido! Será que terei que repetir centenas de vezes? Ban-di-do! Eu não sei detalhes sobre a vida de Gi-Hun porque ela não me interessa, o único detalhe que eu sei é que eu preciso mantê-lo longe da Ga-yeong e…
Ga-Yeoung: CHEGA!
Todos nós nos assustamos com o grito e a aparição inesperada da menina. O rosto dela estava vermelho e bastante molhado devido às lágrimas. Apesar da atitude inicial dela ter sido enérgica, logo em seguida, a garota se encolheu diante do olhar de severa reprovação da Sra. Kang e sua voz saiu como um sussurro.
Ga-Yeoung: Chega, mamãe! Não diga essas coisas sobre o meu pai…
Eun-Ji: Ga-Yeoung! Isso foi muito desrespeitoso! Vá para o seu quarto agora mesmo!
Ga-Yeoung: Não, mamãe, por favor! Eu não tive a intenção! Eu só queria que os policiais não ficassem bravos com o papai!
Eun-Ji: Ga-Yeoung, não me obrigue a dizer mais uma vez, vá! Você estava ouvindo algo que não devia e nos interrompeu de uma maneira muito mal-educada…
Ga-Yeoung: Não, mamãe, por favor, me escute! Eu não quis fazer isso…
Antes que a menina pudesse argumentar, a Sra. Kang a pegou pelo braço e começou a conduzi-la rispidamente até o corredor. A menina chorou e se debateu, e eu percebi que a mãe sentiu vontade de castigá-la fisicamente, mas não o fez porque estávamos na frente dela.
Ga-Yeoung: Mamãe, por favor, me solte! Deixe-me falar com os policiais sobre o meu pai!
Eun-Ji: Você não vai falar com ninguém até sair do castigo! E você não deve falar nada sobre o lixo do seu pai, se ele se meteu em encrencas, ele mesmo deve sair delas sozinho!
Ga-Yeoung: Não! Por favor, mamãe! Eu sei as respostas que eles querem! Por favor, capitão, me escute! Eu sei a resposta da sua pergunta sobre o dinheiro do meu pai!
Ao ouvir a menina, a mulher paralisou e olhou para nós. Em seguida, a menina se soltou das mãos da mãe e enxugou as lágrimas. Nós nos olhamos e Daphne se aproximou da menina com a câmera do celular filmando. Fred então se aproximou de Ga-Yeoung e se abaixou para ouvir o que ela tinha a dizer.
Fred: Muito bem, Ga-Yeoung, como você pode nos ajudar?
Ga-Yeoung: Você perguntou como meu pai compra tantas coisas se ele não trabalha… bem, na verdade ele não precisa trabalhar, meu pai é muito rico, sabia? Ele tem milhões de wons na conta, mais até do que a minha mãe e o meu padrasto… mas ele não fala para ninguém porque ele disse que só vai usar esse dinheiro para ajudar as pessoas…
Eun-Ji: Capitão, perdoe a imaginação fértil da minha filha, é muito difícil para ela aceitar a verdade sobre o pai… os psicólogos dizem que ela cria fantasias como mecanismo de defesa…
Ga-Yeoung: Não, não é mentira capitão, eu não inventei, pode procurar na conta dele, ele tem muito dinheiro e está ajudando todas as pessoas que morreram…
A última palavra me causou um desconforto tão grande que pensei que fosse desmaiar. Nós nos olhamos com preocupação, a Sra. Kang arregalou os olhos e olhou para cada um de nós, buscando confirmação no que a filha havia dito.
Fred: Sra. Kang, na verdade, temos provas de que Ga-Yeoung está dizendo a verdade… como eu havia dito, Gi-Hun tem milhões na conta e ele tem feito depósitos anônimos a parentes das vítimas que desapareceram em junho de 2020…
Eun-Ji: Como você sabe disso, Ga-Yeoung? E quem são essas pessoas?
Ga-Yeoung: Meu pai me contou ontem… ele disse que essas pessoas morreram no jogo que ele participou no ano passado…
O desconforto aumentou e fez minhas mãos gelarem.
Eun-Ji: Que jogo, menina? Que loucura é essa?
Ga-Yeoung: O jogo da lula!
A frase foi como uma explosão atômica. Eu senti minha boca secar e o ar faltar em meus pulmões. Aparentemente, o susto foi igualmente impactante em Daphne, pois ela agarrou minhas mãos e me olhou com lágrimas nos olhos.
Eun-Ji: Meu Deus, esse maldito acabou com a saúde mental da minha filha! Agora eu terei que dobrar as sessões de terapia, e aposto que o desgraçado milionário nem irá me ajudar financeiramente com isso… jogo da lula, Ga-Yeoung? De onde você tirou isso? É verdade que o seu pai é um grande desocupado, mas duvido que ele perca tempo jogando o jogo da lula por aí…
Daphne: Sra. Kang, jogo da lula é um jogo infantil da Coréia do Sul e…
Ga-Yeoung: Não, ele não jogou o jogo da lula, ele venceu o jogo da lula! Meu pai é uma celebridade, capitão! No ano passado, ele participou de um reality show de sobrevivência em uma ilha deserta valendo milhões… o nome do reality é “jogo da lula” e os participantes têm que sobreviver a vários jogos… o jogo final é o jogo da lula, e o meu pai venceu! Por isso ele ganhou milhões de wons…
Eu apertei a mão de Daphne – que estava tão fria quanto a minha – e senti meus próprios olhos se encherem de lágrimas. A Sra. Kang suspirou e, apesar de estar visivelmente irritada, ela não censurou mais a filha. Fred nos olhou em choque, recusando-se a aceitar o que ouviu.
Ga-Yeoung: Mas esse reality show é cruel, capitão… as pessoas que fazem esse jogo são homens muito maus que tratam pessoas como cavalos de corrida e não ligam se os competidores morrem… na verdade, eles até torcem para que algumas pessoas morram de maneira bem violenta, porque eles gostam de assistir… eles apostam entre eles qual competidor vai morrer e qual vai conseguir completar os jogos… eles incentivam os competidores a se machucarem entre os jogos… e cada competidor que morre o valor do prêmio aumenta para os sobreviventes…
Eun-Ji: Ga-Yeoung! Já chega! Eu não vou tolerar esses absurdos…
Fred: Não, Sra. Kang… não são absurdos… por favor, deixe-a continuar…
A voz de Fred saiu rouca e tensa, e Daphne segurou a mão dele para confortá-lo.
Daphne: Ga-Yeoung, você saberia nos dizer como esses homens maus escolhem os competidores?
Ga-Yeoung: Papai disse que eles escolhem pessoas pobres e cheias de dívidas no metrô de Seul… foi assim que ele mesmo foi escolhido… primeiro, eles fazem um jogo rápido com a pessoa escolhida, em que o objetivo é virar um ddakji de papel… quando a pessoa consegue virar o ddakji, os homens maus dão a elas um pouco de dinheiro e um cartão de visitas prometendo mais dinheiro ainda…
Rapidamente eu peguei um dos vários cartões achados na Liberty e mostrei para a menina. A Sra. Kang se assustou ao perceber que a garota estava falando a verdade e levou as mãos à boca.
Velma: Um cartão igual a esse?
Ga-Yeoung: Sim! Depois papai ligou para esse número e os homens maus falaram para ele ir a um lugar em uma certa data e uma certa hora, e ele foi… daí os homens maus mascarados apareceram em um carro e sequestraram ele… e depois papai acordou em um lugar fechado e o jogo começou…
Velma: MASCARADOS?
O tom da minha voz saiu com a mesma intensidade do meu desespero, e todos olharam para mim espantados por eu ter gritado. Eu me lembrei do pesadelo da noite anterior e senti minhas pernas ficarem fracas.
Velma: Desculpe, Ga-Yeoung… eu…
Ga-Yeoung: Sim, papai disse que os homens maus usam máscaras pretas com formas geométricas desenhadas em branco… quadrado… triângulo… círculo… assim como os cartões…
De repente, minhas pernas definitivamente ficaram fracas e uma tontura forte me derrubou de joelhos no chão. Daphne e Fred gritaram meu nome simultaneamente, e Fred me ajudou a levantar e me conduziu até uma cadeira. Daphne interrompeu a gravação e veio até mim.
Daphne: Você está bem?
Velma: Estou… eu… eu acho que fiquei muito chocada por descobrir que Shaggy estava certo…
A menina e a mãe nos olhavam com horror. Fred então se aproximou delas para continuar o interrogatório e Daphne foi atrás dele com a câmera ligada. Eu não tive forças para acompanhá-los, as imagens perturbadoras do meu pesadelo me prenderam àquela cadeira.
Fred: Ga-Yeoung, por que seu pai lhe contou tudo isso ontem?
Ga-Yeoung: Porque ele odeia os homens maus! E ele disse que quer destruir todos eles antes que o reality show aconteça de novo esse ano!
Fred: Quando e onde esse reality show vai acontecer?
Ga-Yeoung: Ninguém sabe, capitão… meu pai está tentando descobrir, mas os homens maus estão atrás dele…
Fred: E como seu pai pretende destruí-los?
Ga-Yeoung: Eu não sei… mas ele está chamando policiais do mundo todo para ajudar…
Fred: Então quer dizer que seu pai está nos chamando também?
Ga-Yeoung abaixou os olhos e fez um sinal afirmativo com a cabeça enquanto a Sra. Kang nos olhava estupefata. No momento em que me levantei da cadeira, eu comecei a hiperventilar e senti minhas mãos tremerem
Fred: Bem, creio que já conseguimos todas as informações que precisávamos… muito obrigado pela sua ajuda Ga-ye…
O celular de Daphne tocou de repente e atrapalhou a gravação de vídeo. Ela se assustou e deixou o celular cair no chão, e quando olhei para a tela, percebi que o motivo do susto não havia sido o toque, e sim o autor da chamada: Alan Mayberry. Sem que precisássemos dizer qualquer coisa, Fred pegou o celular e recusou a chamada imediatamente.
Fred: Bem, precisamos mesmo ir, garotas. Muito obrigado por nos ter concedido o tempo de vocês e por todas as informações. Para a segurança de vocês e de todos nós, eu gostaria de pedir que vocês não contassem essas coisas para ninguém… nem mesmo falassem sobre a nossa visita…
Ga-Yeoung e Eun-Ji concordaram e retribuíram nossos agradecimentos, e nós nos despedimos em seguida. O celular de Daphne voltou a tocar devido a uma chamada de Alan e Daphne novamente recusou. Quando eu atravessei a porta da casa, Ga-Yeoung segurou a minha mão.
Ga-Yeoung: Ei, moça… tome cuidado…por favor…
Eu sorri e balancei a cabeça positivamente… mesmo sem saber como eu faria aquilo