Fanfic: Volume 1 - O Segredo da Banshee | Tema: Forgotten Realms
FICHA TÉCNICA:
Volume 1 – O Segredo da Banshee
Título: Cap.2 – O Assassinato em Dagger Port
Autor: Andrei Maurey
Gênero: Aventura Fantástica
Capa: Imagem gerada por Inteligência Artificial do NightCafé Studio
Copyright © 2023 por Andrei Maurey
Primeira edição: Dezembro, 2023
Fundação Biblioteca Nacional – Escritório de Direitos Autorais, RJ.
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Ao subirem a encosta íngreme, os cinco avistaram o caminho de terra batida para a vila, ao lado do rio Windling. A noite caía e a brisa gelada batia em seus rostos. As estrelas começavam a surgir na escurecida abóbada celeste, aumentando o seu brilho em meio aos tons alaranjados do céu, entrecortados por nuvens tingidas de luz roxa. De onde estavam já era possível avistar as chaminés e as tochas das casas expelindo fumaça, além da imponente fogueira da praça central, responsável por providenciar boa claridade para os seus habitantes.
A vila situava-se em uma área descampada e privilegiada, ao sul da Floresta Trollbark, por onde os viajantes tomavam as “seguras” trilhas indo e voltando do interior do continente. Seu governante é Odarragan Acidarrow, um humano de cinquenta anos, escolhido a dedo pela fria duquesa Delshara Windhair, a Estrela Marítima do Sul, uma elfa aquática que habitava a enseada de Waterdeep e, por conta de feitos lendários na proteção submarina da cidade durante uma sangrenta batalha, passou a ser escolhida unanimemente pela Alianças dos Lordes da cidade para toda a administração da região de Orlumbor, que englobava a pequena vila de Dagger Port.
Entre as construções que compõem o lugar estão setenta e seis casas de madeira com telhados variados, duas torres de pedra para a morada do governante, duas tavernas agitadas, uma estalagem digna do porto movimentado, dez galpões de companhias e guildas mercantes, quatro templos (Selûne, deusa das estrelas, da lua e da navegação; Chauntea, deusa da agricultura; Tyr, deus da justiça; e Lathander, deus da manhã, do nascimento e do recomeço), e um casarão de carvalho e pedra, onde se encontra o destacamento dos guardas e o escritório do tabelião local. Em seu entorno, quatorze fazendas de grãos e especiarias, além de ranchos para a criação de animais, como bodes, cabras, ovelhas e galinhas, e diversos barcos de pesca completam a enérgica atividade comercial do lugar.
Com a noite chegando, a poucos metros da vila, eles sentiram o delicioso aroma de carne assada vindo da Maresia Doce, a taverna mais popular. Ao se aproximarem, dois guardas trajando corselete de couro, espadas bastardas e o famoso manto cinza estampando o emblema da adaga vermelha no peito, cumprimentaram-nos ao vê-los passar para entrar.
Na taverna, havia doze mesas para quatro lugares e sete cadeiras no balcão. Para a sorte deles, duas mesas estavam desocupadas no canto. Um grupo de oito homens jogava 7 Adagas animadamente numa mesa no canto oposto à entrada. O gentil taverneiro, Bulfard, vestia um avental sujo de restos de comida e sangue que voava dos pedaços picotados apressadamente na cozinha. Ele carregava uma bandeja com pratos de galinha assada com batatas cozidas no caldo de siri ensopado. Ele tinha mais dois assistentes que o ajudam com os pedidos. Belwas, com o apetite voraz, sentiu a boca salivar com o aroma inebriante que invadia o salão.
— Finalmente! — ele cofiou o espesso bigode da cor do ébano. — Ei, Bulf, pode adiantá mais cinco desses? — perguntou, quando o taverneiro passou próximo ao grupo.
Zolbek, Lans e Arzayla consentiram, todos estavam famintos.
— Apenas batatas pra mim, a minha dieta não envolve carne de animais — interrompeu Jevish.
— Tudo bem, qué as batatas secas ou o molho de siri não conta como carne? — indagou o anão às pressas, mas pelo olhar de nojo do gnomo, ele entendeu que seriam batatas secas mesmo.
— Quatro! E um com batatas bem secas! — berrou Belwas para o taverneiro, que confirmou o pedido. No caminho para as mesas, o anão virou-se para Jevish, desta vez, com mais calma.
— Que desperdício de espaço no prato, tem certeza?
— Há quarenta ciclos anuais deixei de ingerir esses alimentos. O martírio não me impede, mas acredito que seja o correto...
Belwas fez uma expressão facial, ao mesmo tempo, de agonia e solidariedade.
O grupo chegou junto às mesas vagas.
— Vamos sentar — pediu Lans.
Os quatro se sentaram e puxaram a outra mesa para perto, a fim de juntá-las para receber os marinheiros, caso eles viessem. Nesta hora, os olhos de Jevish fecharam-se pelo tempo de quatro a cinco gargalhadas no salão e ele pareceu acompanhar uma voz ditando-lhe algo nos ouvidos. Ao abri-los, ele demonstrava aflição.
— Peço desculpas, terei de me ausentar por um tempo. Retorno em instantes pra encontrá-los... Peçam um copo de leite de ovelha pra mim, por favor — anunciou, retirando-se da taverna e deixando Belwas enojado com o seu pedido. “Batatas secas e leite azedo de ovelha?”, pensou, com o estômago embrulhado.
Lans e Arzayla estavam sentados de frente para Belwas e Zolbek e um silêncio desconfortável pairou sobre a mesa quando Jevish se retirou. Pouco depois, Bulfard trouxe uma cadeira mais alta para o gnomo e interrompeu o incômodo momento ao se dirigir a eles.
— Como foram de viagem, eh, tudo certo? O que vão beber, eh? — perguntou com a sua voz simpática, porém levemente irritante.
— Pode-se dizê que sim... Digo, teve momentos de tensão, mas superamos bem — respondeu o anão, minimizando o tamanho da apreensão e do desespero que todos sentiram.
— Dois cervejas pra mim, dois pra Belwas! — Zolbek pediu.
— Queremos uma jarra de vinho — complementou Arzayla após a confirmação de Lans.
O taverneiro se retirou, deixando-os à mesa, entreolhando-se e apreensivos pela falta de assunto.
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Jevish caminhava apressadamente em meio às casas de madeira. As pernas curtas davam passos agitados enquanto ele se esforçava para recuperar o fôlego. Tinha receio de chegar atrasado.
Mais adiante, parou em frente a uma imponente residência. As paredes brancas eram reforçadas com pesadas colunas de carvalho riscado, as telhas eram feitas de barro queimado com acabamento escovado e as janelas de vidro polido exibiam luxuosos painéis de luz dourada. Quem quer que morasse ali, obviamente, levava uma vida de larga opulência e riqueza.
Jevish subiu os três pequenos degraus de madeira da entrada e bateu à pesada porta de carvalho com retângulos de vidro verde e aguardou. Um homem bem gordo, de barba feita, cabelos curtos e pretos, vestindo um manto marrom de seda, abriu a porta e olhou com interesse para o gnomo.
— Não temos peixes... — disse, aguardando uma resposta.
— Então, sirvam mariscos! — completou Jevish, prontamente.
A voz decidida não gerou dúvidas e a senha estava correta, logo, a sua entrada foi permitida.
Ao seguir o servo para dentro da residência, o gnomo atravessou uma sala repleta de móveis impecáveis feitos de carvalho real. Os sofás e as poltronas, os armários, a mesa e as cadeiras eram todos trabalhos de marceneiros talentosos de Waterdeep. No chão e nas paredes, ele viu coleções de tapetes e tapeçarias de Calimshan de fazer inveja a qualquer comerciante do ramo, além das cortinas de linho branco encomendadas de Berdusk. No canto à direita, um suntuoso piano estava estrategicamente posicionado no centro de duas estátuas de bronze em formato de ondas se quebrando, cujas cristas espumantes eram formadas pelo brilho intenso de dezenas de pérolas prateadas de Ruathym. Ao fim da sala, uma escada em caracol, feita de ferro puro, levou Jevish ao segundo andar.
O corredor era ornamentado por quadros retratando a incrível história de Balduran e a construção do muro de granito da cidade que mais tarde ficou conhecida pelo nome Baldur’s Gate, local de nascença do proprietário. Além disso, Jevish percebeu que as seis portas do segundo andar tinham maçanetas de ouro maciço, um detalhe que, a essa altura, já não era mais tão surpreendente.
— Por aqui, senhor... — disse o servo, apontando para a porta no final do corredor. — Rawlin Strowbar está aguardando sua visita... Pode entrar sem bater.
— Obrigado... Com licença — antes de girar a maçaneta, o gnomo respirou fundo e entrou.
O dono da companhia Blue Water era um homem grisalho, alto, de porte firme, sobrancelhas grossas e olhos grandes e profundos. Trajava uma espécie de toga branca e sobrevestes negras com risca de giz azulado, uma indumentária requintada para o uso informal dentro de casa. Sobre o avantajado nariz, repousava um velho par de óculos prateados. Estava sentado na escrivaninha, registrando informações no seu diário com uma pena amarelada de canário de Cormanthor, quando percebeu a entrada do gnomo.
— Você chegou rápido! Onde elas estão? — perguntou, antes de, sequer, cumprimentá-lo.
— Aqui! — Jevish estendeu o braço e entregou-lhe uma bolsa de couro amarrada com um fino cordão de algodão.
Rawlin apressou-se para desamarrar o nó e despejou o conteúdo da bolsa na palma esquerda. Cerca de três dúzias de uvas cinzentas encheram sua mão envelhecida: as pérolas prateadas de Ruathym.
— Bom trabalho! E ele acredita realmente que ainda estejam no cofre? — indagou o nobre, encarando o gnomo fixamente.
— Com a máxima certeza, senhor... Eu o vi colocando-o debaixo do braço quando desembarcou, certo de estar na posse delas...
— Ah... Ele se julga tão inteligente — Rawlin balançou a cabeça. — Mas dessa vez, ele vai saber com quem está lidando. Pela manhã, quando aparecer no galpão pra assinar a entrega do carregamento, darei ordens para sua devida expulsão da companhia! — declarou, com uma luz enérgica nos olhos.
O nobre separou uma pérola e a pôs no bolso da toga branca. Em seguida, devolveu as outras para dentro da bolsa, colocou-a em um elegante baú e o empurrou para baixo da luxuosa cama, na qual um troll adulto poderia dormir confortavelmente.
— Agora, conte-me como você conseguiu efetuar a troca. Correu algum perigo real? — o dono da companhia recostou-se na cadeira e preparou-se para ouvir a história.
— Não foi nada fácil, senhor... Durante toda a viagem, o capitão não deixava ninguém se aproximar da sua cabine... Só consegui ter uma oportunidade pouco antes da terrível tempestade que nos fez encalhar numa das ilhas de Whale Bones... — respondeu o gnomo, percebendo a preocupação no rosto de Rawlin.
— Tempestade? Encalhados? Só me faltava essa agora... Diga-me com sinceridade, qual o estado do Onda Voadora? — indagou, mais aflito com as perdas materiais do que as possíveis perdas humanas.
— Há umas partes quebradas, senhor... Mas nada muito grave. A tripulação toda fez um ótimo trabalho e é uma pena que tenhamos perdido um homem, jogado ao mar pelos fortes ventos — o gnomo baixou a cabeça, entristecido. “Que Ilmater tenha sido generoso e lhe concedido um fim sem dor e sofrimento”, pensou.
Rawlin fitou Jevish, assimilando as informações. Sua feição era a de quem parecia estar fazendo cálculos matemáticos. De repente, o gnomo lembrou-se da mensagem que precisava reportar.
— Há uma outra coisa, senhor... — ele colocou a mão nos bolsos e retirou um pedaço de papel, entregando-o ao nobre.
Rawlin mal pousou os olhos no documento e se enfureceu.
— Qual o motivo disso? Por que estão fazendo isso?
Jevish levantou os ombros, chateado por não saber a resposta.
— Eles provavelmente acharam que eu era um representante da companhia apesar dos meus trapos, então aproveitei pra receber o documento em vez de deixá-lo nas mãos do capitão...
Rawlin continuava a ler e a raiva convertia-se em desespero.
— Eles não perderam nenhuma mina... Não é possível! Por que o preço aumentaria? — parou, pensativamente, tentando recobrar os sentidos. — Havia algum sinal de conflitos ou brigas em Ruathym? Homens armados pelo cais ou na cidade? Os habitantes estavam de mudança ou mostravam-se temerosos?
— Nada... Tudo na mais tranquila e perfeita calma, senhor. Bem, se você desconsiderar os três navios de guerra de Norland...
No instante em que o gnomo terminou de pronunciar o nome da região, Rawlin bateu na mesa e revelou um semblante feroz.
— Ah, não acredito! Fecharam negócio com Rogarsheim, aqueles malditos mercenários! — exclamou, enfurecido. Depois, olhou para o pedaço de papel na mesa e refletiu. — O norte das Moonshae vai entrar em guerra e eu irei à falência! E essa porcaria de ferro nem é mais tão puro! Estou perdido! Arruinado... — comentou enquanto a sua voz ia tornando-se fragilizada.
Jevish se compadeceu da sua dor e se aproximou do nobre.
— Calma, senhor. Tente ver pelo lado positivo... Se entrarem em guerra, vão precisar de comida e couro... Sua comida e o seu couro! — enfatizou ele. — E embora o ferro seja importante para a guerra, não se pode comê-lo!
Rawlin ponderou sobre a informação, respirou profundamente e tentou recuperar a tranquilidade.
— O problema é que tem comida e couro em tudo que é lugar e várias nações vão querer arrancar fatias gordas desse bolo de ferro. Além disso, eu perco as pérolas. Pelo meu contrato, tenho primazia total sobre a comercialização delas, salvo em casos de guerra. Com esse conflito, perco o privilégio e meu couro não tem qualidade pra competir — confidenciou ele, chateado.
Em seguida, Rawlin olhou para o gnomo, percebendo que estava emanando sinais de fraqueza, e corrigiu depressa a sua postura.
— Tenho certeza que encontrarei meios de recuperar as minhas finanças. Não será a primeira vez e, certamente, nem a última! Mas obrigado pelas palavras, Jevish, você tem sido útil e um aliado fiel — confessou o nobre, deitando a pena amarelada. Em seguida, ele pousou os olhos no diário, pensativo. O silêncio deixou Jevish um tanto desconfortável e ele procurou mudar de assunto.
— Ele vem roubando há muito tempo? — indagou, timidamente.
— Acredito que desde a primeira vez... Desconfio que ele pegava um quinto delas a cada viagem e sempre informava que os elfos do mar tinham dificuldades para encontrar as conchas ou os Kuo-Toa decretavam ordens para caçar os intrusos. Às vezes, ele dizia que o mercado interno estava ruim, você sabe, essas desculpas toscas que depois de descoberta a verdade, a gente fica se sentindo imbecil de ter acreditado...
— Por que o senhor o escolheu pra ser o capitão?
— Hum... Excelente pergunta — Rawlin parou para vasculhar as lembranças. — Parecia ser a pessoa correta... Ele era o imediato de Halden Vayne, o capitão anterior que, infelizmente, desapareceu sem deixar vestígios. Por ser meu amigo há décadas, confiei no que ele dizia sobre Draper, que era atento e ambicioso, além de rápido da cabeça e brutal nos negócios. Quando Halden sumiu, fui levado a confiar nesse falso capitão, um bandido miserável!
— O que o senhor fará depois de tê-lo expulsado da companhia? — a curiosidade de Jevish aumentava a cada resposta.
— Valko tem revelado certas habilidades que poderiam torná-lo um bom capitão pro Onda Voadora...
— É... Ele me parece o tipo que sabe receber ordens e cumpri-las muito bem. Mas receio que Draper possa vir atrás do senhor para fazer algum mal, se-senhor... — a voz de Jevish falhou ao pensar na possibilidade de ver o nobre ferido.
— Não se preocupe, meu novo amigo — anunciou, com um tom de segurança. — Conheci Naron em Calimshan e por aquelas terras sem lei, eles conhecem muito bem o valor dos efeitos mágicos de proteção. Eu o adquiri de um comerciante por um preço um pouco caro demais justamente por causa dessas habilidades...
Rawlin deu uma risada meio forçada e fechou o diário.
— Vamos esquecer os negócios por enquanto... Você gostaria de ficar pra ceia e me acompanhar? — o nobre tocou um pequeno sino localizado no canto da escrivaninha.
Jevish não esperava pelo convite, mas é óbvio que aceitou.
— Vamos descer e nos lavar para comer — anunciou ele. — E não me chame mais de senhor a partir de agora, você cumpriu com sua missão e não está trabalhando pra mim no momento...
Ao descerem as escadas, Naron já estava pondo os talheres e os pratos na mesa. O servo puxou uma cadeira adaptada na ponta da mesa e apontou para Jevish se sentar. Era deste modo que Rawlin recebia os convidados para jantar, um em cada extremo oposto da avantajada mesa para dezesseis lugares.
Depois de banharem as mãos em tigelas de porcelana e secarem-nas com toalhas de seda, Naron surgiu trazendo as entradas numa bandeja de prata: bisnagas com creme de cebola, patas de siri fritas e duas taças de vinho. Jevish lembrou-se de ter pedido a porção de batatas e o leite de ovelha na taverna. Ao menos, essa refeição seria mais saborosa.
— Naron, deixe as patas aqui, nosso amigo não come carnes ou frutos do mar — o servo obedeceu e deixou-as ao lado de Rawlin, junto a uma taça de vinho. Sem demora, depositou a bisnaga no seu prato e, com a concha, despejou o espesso creme por cima. O nobre aguardou que ele fizesse o mesmo no prato de Jevish.
— Bom apetite!
— Obrigado, senh... Digo, meu amigo!
Os dois morderam as bisnagas, apreciando o agradável sabor e o aroma de cebola cozida que invadia a sala de estar. Rawlin engoliu mais duas patas crocantes de siri, limpou a boca com o guardanapo e iniciou uma nova conversa.
— Com essas informações, o Onda Voadora não voltará à ativa por uns três meses, no mínimo... Logo agora que precisava de você para vigiar o trabalho de Valko. O que pretende fazer durante esse tempo?
Jevish segurou o sorriso, percebendo que Rawlin não conseguia se conter e puxava assunto outra vez sobre negócios.
— Vou a Baldur’s Gate a mando das vontades de Ilmater, senho... Digo... O templo vem sofrendo baixas misteriosas...
— Como assim? — Rawlin ouvia com atenção e mordeu o pedaço de pão distraído, fazendo o creme escorrer pelo queixo.
— Nosso sacerdote reportou o sumiço de quatro iniciantes. Três deles reapareceram uma semana depois no distrito das docas com feridas de chicotadas nas costas. Dois perderam as vidas por causa dos ferimentos — a voz rouca do gnomo revelou compaixão pelas almas dos pobres rapazes.
— Mas, quem faria isso? Ilmater não incomoda ninguém!
— Suspeitamos que seja inveja, sen... Ou alguma retaliação, pois todos eram jovens servos de uma família influente. Os pobrezinhos haviam descoberto no deus pranteador a busca e salvação dos seus sofrimentos e opressões... Coitados, isso não deveria ser o que lhes causaria exatamente aquilo que procuravam remediar...
— Espero que os culpados sejam capturados depressa! Aliás, por acaso o Conselho dos Quatro Duques ainda mantém Krishof como o encarregado da segurança das ruas?
Jevish confirmou a informação.
— Ah, ele é bom, é implacável com os fora-da-lei... Se a Flaming Fist toda fosse como ele, certeza que o mistério estaria resolvido!
— Espero que sim, é meu desejo retornar logo... Dagger Port tem se revelado um lugar oportuno para fazer minha moradia, além da missão de construir e estabelecer um templo aqui.
— Fantástico! Uma excelente notícia... Pode contar comigo pra empréstimos, investimentos e uma ótima relação com Odarragan! Talvez você não saiba, às vezes, ele encrenca com templos novos...
Rawlin pegou sua taça de vinho e a levantou, sendo imitado pelo gnomo.
— Ao templo de Ilmater em Dagger Port!
Jevish percebeu um contentamento exagerado nas palavras do homem. A sua ideia era ainda mera vontade, um objetivo distante; ele nem recebera o apoio prévio dos altos clérigos para concretizá-la. “Esses nobres, sempre atuando com os pés na benevolência e a cabeça no ouro”, pensou. Contudo, reconhecendo que o seu chefe, ao menos, tinha um bom coração, ele levantou a taça e repetiu:
— Ao templo de Ilmater em Dagger Port!
Ambos seguiram comendo, bebendo e trocando palavras. Naron trouxe mais duas taças de vinho e o prato principal, uma tigela de sopa: o famoso “Caldo de Corais”, a preferida de Rawlin.
— Aprecie a sopa... É feita com parte de água do oceano fervida com legumes e um fruto do mar, digamos, bem especial... As ostras de Mintarn! — anunciou com alegria, embora Jevish não soubesse do que se tratava. Ele continuou, entusiasmado. — Tem certeza de que não deseja experimentar? Elas são importadas direto do Mar Brilhante e como se encerrou o conflito entre Mintarn e Orlumbor, eles conseguem vendê-las agora com mais facilidade. Só essa tigela custa mais ou menos o seu pagamento... — revelou, sorrindo.
Jevish coçou o protuberante nariz de asas largas, acanhado pela intenção de recusar. Rawlin compreendeu e, gentilmente, pediu a Naron para tirar as ostras da sua porção. “Você não sabe o que está perdendo”, ele pensou em dizer, mas depois, lembrou-se de que a rígida doutrina de Ilmater adotada pelo gnomo já deveria privá-lo de prazeres suficientes e não precisava ser lembrado disso.
Com a refeição servida, Jevish deu continuidade ao relato sobre a tempestade, o quase naufrágio, como passaram a noite em uma gruta na praia e como fizeram para desencalhar o Onda Voadora, arrancando risos de satisfação do dono da companhia. Na hora da sobremesa, Naron trouxe duas fatias de torta de morango silvestre com creme e uvas picadas.
Após o jantar, Rawlin convidou Jevish para ouvi-lo tocar piano e ele aceitou. Era visível a vontade do anfitrião de mantê-lo dentro de casa. Um súbito sentimento de que o nobre é um homem muito solitário invadiu o coração do gnomo e lhe deu pena. Animado pela aprovação do convite, o dono da casa resolveu abrir uma garrafa de conhaque de Luskan para celebrar a amizade e a lealdade (além do estado relativamente restaurado do Onda Voadora). E Jevish logo percebeu que a atividade não seria um tanto sofrida, pois logo nas primeiras notas, ele encantou-se pela música e o talento do nobre.
Umas dez ou doze melodias depois, Rawlin encerrou a exibição e recebeu muitos aplausos do amigo, arrancando-lhe uma comoção aquosa dos olhos. O artista levantou-se do piano e aproveitou para solicitar a presença do servo.
— Naron! — chamou. — Entregue-lhe o pagamento.
O homem gordo trouxe depressa um saco contendo moedas e o ofereceu ao gnomo.
— Peço mil perdões, com o jantar e as taças de conhaque, acabei me esquecendo do pagamento e de que você deve estar cansado — refletiu ele. — Assim que você retornar de viagem, conversaremos sobre o templo... Será um enorme prazer ajudá-lo nessa missão!
— Obrigado, muito obrigado — agradeceu Jevish incisivamente, guardando o saco no bolso. Rawlin expressava um leve sentimento de compaixão e ternura. Os olhos marejados e suas mãos trêmulas falhavam em esconder a vontade de estender o encontro.
— Quero que considere este pequeno gesto como um presente pelo brilhante trabalho e as informações privilegiadas — revelou o nobre. Em seguida, ele pegou a pérola que havia guardado na toga branca e a entregou nas mãos do gnomo, que ficou pasmo.
— Obrigado, senh...! Quer dizer... Ah, não me importa. Obrigado, senhor Rawlin! Virei visitá-lo quando pisar os pés novamente em Dagger Port, pode apostar!
Jevish curvou-se para cumprimentá-lo com as honrarias dignas e indispensáveis e saiu pela porta. O dono da casa sorriu com o seu jeito tipicamente ingênuo de conduzir as práticas de etiqueta.
Do lado de fora, Jevish contou as moedas: quarenta dragões de ouro. Somando ao valor médio de mercado da pérola, ele obtivera algo em torno de cem dragões. A quantia iria lhe fornecer um certo consolo por um bom tempo. Satisfeito, tomou o caminho de volta à taverna. Sua visão estava parcialmente embaçada e ele andava aos tropeços, arrependendo-se de subestimar o conhaque de Luskan.
Mais à frente, ao dobrar o muro de uma casa, avistou o galpão da companhia à distância e viu os marinheiros aguardando em frente ao portão. Curioso, resolveu se aproximar, pois já passava muito da hora que deveriam ter sido pagos. Havia algo estranho no ar.
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Na Maresia Doce, o clima estava mais animado. Um meio-elfo tocava sua lira, acompanhado por dois flautistas e um tamboreiro. O quarteto musical era de Marsember, a cidade-porto de Cormyr. Homens batiam as canecas nas mesas e no balcão, cantando ao som da agitada música. Na mesa ao lado, uns jogadores recomeçavam a partida de 7 Adagas, dessa vez, com nove participantes.
O grupo conversava à mesa, quando Jevish surgiu e se sentou na elevada cadeira. A primeira coisa que fez foi empurrar o prato frio de batatas cozidas secas para o centro da mesa e deu um vigoroso gole no leite de ovelha na intenção de neutralizar o conhaque.
— Estou te dizendo, meu caro Belwas... O dia que você visitar as Montanhas dos Trolls, poderá ver com os próprios olhos... Mas só se não encontrar nenhum deles pelo caminho... — Lans dialogava com o anão, procurando fazê-lo acreditar na sua estória.
— Sei não... Uma estátua de mais de mil metros, feita por anões que viveram na região há mais ou menos seis mil invernos atrás? — questionou o anão, aproveitando a recusa das batatas para colocar algumas no prato e retornar a comer. Ele fez uma careta ao levar o pedaço da comida insípida à boca.
— Esculpida direto na montanha... E só a barba da escultura tem mais de trezentos metros! — insistiu o meio-elfo. Zolbek admirou-se com a proporção da obra. — Segundo as lendas, uma civilização antiga de anões residia bem no meio da barriga da estátua, o que eu não duvido nem um pouco que fosse possível — completou, dando uma risada e apontando para a comida sendo devorada.
— Só acredito vendo! Nem com todos eles trabalhando noite e dia por toda a vida, isso seria possível...
— Obviamente, você desconhece as aptidões e habilidades com a pedra de sua própria raça... — assegurou o meio-elfo.
— O que houve? Parece incomodado — interrompeu Arzayla, ao perceber a ansiedade no comportamento de Jevish. Ele agia como se estivesse tentando impacientemente acessar uma lembrança.
— Estou intrigado — explicou o gnomo, olhando para os lados e controlando o volume da voz, apesar da música alta. — Passei no galpão da companhia há pouco e os marinheiros ainda aguardam o capitão pra receber o pagamento...
Todos se entreolharam.
Um rapaz esbarrou em Bulfard no outro canto da taverna e o fez derrubar a bandeja com oito canecas de cerveja. Gritos de gozação e palmas preencheram o ambiente, menos da parte de quem havia sofrido o prejuízo. Zolbek se pronunciou, comovido com a situação dos marinheiros.
— Se não receber pagamento, grande fome pra família!
— Calma, o senhor Rawlin não deixará que fiquem sem dinheiro — informou o gnomo, convicto.
— Como tem tanta certeza? — indagou Lans, seriamente.
— Eu o conheço há mais tempo que os senhores. Ele respeita os seus homens e não irá prejudicá-los. Podem ficar sossegados...
— Ele paga mal seus homens, isso sim — protestou Belwas, com uma batata na boca. — Vinte míseras moedas pra dezoito dias de trabalho? E naquelas condições? Um mendigo em Waterdeep deve contratá guardas por esse preço — zombou, engolindo a comida.
Jevish sinalizou uma vontade de continuar defendendo o nobre, mas optou por ficar em silêncio. Arzayla balançou a cabeça, dando indícios de confusão. Lans percebeu o incômodo da amiga.
— O que tem em mente?
A elfa, pensativa, ignorou suas palavras. Ela travara a mente em pensamentos estranhos e viajava pelas profundezas da memória.
— Capitão atrasado, algo ruim acontecer! — apontou Zolbek.
— Diante disso, o dono tem de arcar com a responsabilidade... — informou Lans.
— Sim, se for este o caso, ele enviará alguém... É uma desonra na Costa da Espada faltar com a palavra — intercedeu Jevish, vendo-se na obrigação de defender novamente a honra do nobre.
— O problema não é a palavra de Rawlin, mas os motivos ocultos do capitão... Muito estranho ele ter sumido... Ou ele mentiu para os seus homens ou algo aconteceu após o desembarque — completou o meio-elfo.
Jevish expirou o ar dos pulmões, ofegante. Ele podia sentir seu rosto mudando de cor e os poros enchendo-se de suor.
— Minha terra, palavras com mentira, perde a língua!
— Língua? — repetiu Arzayla, com uma luz queimando nos olhos cinza-azulados após ouvir a palavra. De repente, uma centelha de raiva percorreu o corpo da elfa e uma descarga física despertou-a do transe, ateando fogo na sua mansidão induzida por mágica para abarrotar a alma dela de adrenalina, ódio e frustração.
— Maldito! Maldito verme imundo! — bradou ela, recuperando a consciência e a memória do evento. — O maldito me enfeitiçou!
Os quatro ficaram assustados, aguardando a sua reação.
— Agora, quero saber direito essa história de não ter pagamento! Irei até lá para conferir a razão desse sumiço... Vocês vêm comigo? — perguntou, tirando umas moedas do bolso do casaco e pondo-as sobre a mesa.
Lans se levantou, incrédulo, e acompanhou sua amiga. Zolbek e Jevish foram atrás. Belwas deu um gole final na cerveja, viu que as moedas pagavam mais do que o valor da conta e sentiu-se contente pelo banquete gratuito.
Uma briga por causa das canecas derrubadas iniciou-se perto do balcão e os músicos interromperam a apresentação. Quando eles estavam perto da porta da taverna, Belwas desviou-se habilmente de uma cotovelada que tê-lo-ia acertado em cheio no rosto.
Em frente à Maresia Doce, eles se reuniram e foram na direção do galpão da companhia Blue Water. Garrafas, canecas e copos iam sendo arremessados e quebrados lá dentro e eles puderam ouvir os sons de gritos e xingamentos. Do outro lado da rua, cinco guardas da vila corriam para a taverna.
No galpão, os marinheiros aguardavam ansiosamente a chegada de Draper e levantaram-se quando avistaram os companheiros de viagem. Valko, de pé e encostado no portão de ferro trancado com cadeado, parecia o menos aflito e preocupado.
— Há quanto tempo o capitão está atrasado? — questionou a elfa, tomando as rédeas da situação e procurando esconder a raiva.
Valko contemplou o suave rosto de Arzayla saltando do turbante roxo e pensou no que iria dizer.
— Ah, senhora... Ele semp’traz o pagamento d’pois qui’a gente termina o serviço... Dev’tá atrasado, só isso...
— Sinto muito... Mas, infelizmente, ele não virá! — declarou ela, fazendo com que os outros marinheiros parassem e viessem na sua direção. Lans, Zolbek, Belwas e Jevish ficaram perplexos.
— Com’assim? — um marinheiro dirigiu um olhar desconfiado à elfa cinzenta, tentando descobrir algo na sua fala.
— Ele já deve estar bem longe daqui... E, provavelmente, levou a parte mais valiosa da carga... — explicou ela.
— Qui’parte valiosa? Do qui’cê ‘tá falando? — perguntou Valko, preocupando-se com a postura dela.
— É... Pruquê ele robaria o patrão numa viagem sem carga boa? — inquiriu outro marinheiro.
— Senhora, trabalho cum capitão há dois verões... Desd’qui’ele virô o chefe, nunca faltô cum pagamento — salientou o imediato do Onda Voadora.
Quando Arzayla iria recuar, Lans pôs a mão em seu braço a fim de lhe dar apoio. Ela tomou fôlego e continuou.
— O que tinha no cofre embaixo do braço do capitão quando ele desembarcou? Não eram as pérolas de Rawlin Strowbar?
Jevish engoliu em seco, preocupado com o rumo da conversa.
— Ah, ele semp’lev’elas pro patrão n’outro dia! Ele nunca confiô na gente prá cuidá delas — disse, com certa frustração.
Arzayla ficou em silêncio, percebendo a falta de argumentos. Ela não podia revelar o motivo da certeza sobre a fuga do capitão sem mencionar a gema encontrada na gruta e sua intenção de recuperá-la. Lans, ainda estranhando toda a situação, notou a necessidade de interceder para ajudá-la.
— Nada impede que o capitão algum dia resolva dar um golpe — falou, olhando para ela e confiando nos seus propósitos. — Afinal, de quantas pérolas estamos falando? Umas quinze, dezoito, vinte, no máximo? Isso dá um valor acima de mil dragões de ouro, o que já é uma razão e tanto pra levantar suspeitas...
Belwas e Zolbek trocaram olhares atônitos pela enorme quantia, segundo seus padrões. Jevish colocou a mão no bolso, sentiu com a ponta dos dedos sua pérola prateada e abaixou a cabeça, avaliando a situação. Se contasse a verdade, os marinheiros ficariam furiosos com ele e não tolerariam a traição, por isso, optou por permanecer calado, embora continuasse curioso acerca do sumiço do capitão.
Os marinheiros estranharam, pois não havia uma causa real para Draper fugir, ele sempre entregou as pérolas ao Rawlin.
— Deixa’disso! — respondeu Valko, tranquilamente. E no intuito de amenizar o clima, falou serenamente. — Ele vai’vim, conheço o capitão, ele sempr’aparece...
— Não, não vem... Tenho certeza — sustentou Arzayla.
Valko olhou para ela, desconfiado. A elfa começava a lhe dar nos nervos. Os demais observavam, angustiados, a cena.
— Onde eu posso encontrá-lo? Onde fica a sua residência aqui na vila? Ele deve ter parado em algum lugar antes de fugir... — insistiu ela, tentando arrancar qualquer migalha de informação.
Valko coçou o nariz com as costas da mão.
— O qui’cê tem a vê cum isso? Por qui’cê não segue seu rumo? — indagou com uma leve entonação de raiva.
— Não lhe interessa! — bradou a elfa. Em seguida, ela percebeu a falta de comedimento e mudou a forma de falar para um tom mais suave. — É particular... Uma coisa que resolverei diretamente com o capitão quando encontrá-lo.
Valko deu um passo na direção de Arzayla e ela recuou. A tensão aumentava e Lans teve de intervir para impedir o pior.
— Vamos fazer o seguinte... — expressou ele. — Vou até a casa de Rawlin pra exigir o pagamento... Qual é o valor?
— Trinta dragões pra mim, quinze pra cada... — explicou Valko, suspeitando das intenções de Lans. — Ah, e mais quinze pra pagá a esposa do Jarol, qui’morreu na tempestade... Dezessete homens...
— Está bem. Trinta dragões, mais quinze pra cada... Combinado. Aguardem e logo retornarei!
Os marinheiros suspiraram, desejando acreditar no meio-elfo.
— Ficarei aqui, aguardando o “retorno” do capitão — provocou a elfa. No fundo, ela acreditava numa pequena chance de encontrar Draper, ainda mais pela confiança dos marinheiros no seu retorno.
— Não posso deixá-la aqui sozinha com eles... — sussurrou Lans, receoso, para a sua amiga.
— Eu posso ficar com ela e manter a situação sob total controle — interveio Jevish, arranjando um jeito de contribuir sem precisar retornar à residência do nobre e se ver metido nessa confusão. — Mas, não demore!
— Eu quero ir! Pode sê que ele aceite aumentá meu pagamento! — comemorou o anão, arrancando um sorriso de Zolbek.
Lans, Zolbek e Belwas caminharam depressa na direção da casa de Rawlin Strowbar. Passando pelas ruas, eles viram que muitas já estavam com as luzes apagadas e os habitantes, adormecidos. Logo adiante, ao fazerem a curva numa viela escura em frente a um poço de pedra, eles passaram por dois guardas fazendo a ronda noturna. Um deles carregava na mão uma pequena esfera de pedra granítica de coloração bege areia com listras negras de azeviche, parecendo se guiar por ela. Lans conhecia o objeto, tratava-se de um poderoso artefato de olho arcano.
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Lans bateu duas vezes na grossa porta. Silêncio. Bateu mais duas vezes e nada. Tudo que podiam ouvir era a estridulação dos grilos no campo. Ao tentar pela terceira vez, Naron abriu a porta.
— Não temos peixes — anunciou o servo.
— Não estamos atrás de peixes... — explicou o meio-elfo.
Ao ouvir isso, Naron, imediatamente, virou uma alavanca atrás da porta e eles ouviram um fraco som de clique. O círculo acima da entrada emitiu um tênue brilho de luz roxa, percebido por Lans.
— Vocês despertaram o meu senhor... O que fazem batendo em portas desconhecidas a essa altura da noite? — perguntou, com um leve aborrecimento.
— Peço desculpas pelo incômodo, mas é que o capitão deixou de pagar a tripulação e eles estão lá no galpão com fome e sede...
— Qual o nome dos senhores?
— Lans Donovan, Zolbek Rosghal e Belwas Amberjaw.
— Um momento — disse o servo, fechando a porta.
Os três aguardaram pacientemente. Um pouco depois, ouviram gritos furiosos vindo do segundo andar e algumas casas acenderam as lamparinas, preocupadas com o barulho. Quando Naron abriu a porta, seu rosto estava impassível.
— Por favor, deixem as armas no chão da entrada e queiram me acompanhar...
Enquanto desembainhavam e guardavam as armas, Lans notou na parte de trás da porta uma janela de cerca de doze centímetros de diâmetro, coberta por uma espessa camada de vidro, através da qual, Naron enxergava, claramente, quem estivesse lá fora, mesmo ela sendo inexistente do ponto de vista do visitante. Embaixo dessa “visão mágica”, ele distinguiu um intrincado conjunto de alavancas tingidas de runas arcanas, as quais em nada compreendia a função.
Dentro da residência, os três avançaram para o centro do salão, impressionados pela qualidade dos móveis. Enquanto as tapeçarias chamavam atenção de Lans; Zolbek e Belwas ficaram boquiabertos com as duas estátuas de bronze de ondas se quebrando, sobretudo pelas cristas brilhantes, feitas com as famosas pérolas prateadas. Dali a alguns piscares demorados de olhos, eles ouviram passos da escada e viraram-se para encarar o proprietário da companhia.
Rawlin descia vagarosamente, amarrando o robe de cetim azul cobalto sobre o conjunto de pijama de seda. Antes de se dirigir aos convidados, aproveitou e enxugou os olhos com as costas da mão.
— Naron me informa que o capitão não pagou os marinheiros e, pelo visto, ninguém sabe do seu paradeiro... É por esta razão que vieram à minha casa e me acordaram no meio da noite? — sua voz rouca denunciava certa indignação. Ao terminar de descer, seguiu na direção das estátuas e posicionou-se no meio delas.
— Peço perdão por isso, mas achamos injusto que eles ficassem sem o pagamento depois de uma árdua viagem — explicou Lans.
— Tem razão... Draper será expulso da companhia pela manhã e quando os negócios forem retomados, nomearei um deles como o novo capitão... Peçam desculpas aos homens por mim — requisitou o nobre, calmamente. Ele não demonstrava o menor sinal de ter se exaltado momentos antes.
Lans virou-se para fitar os outros dois, surpreso com as palavras de Rawlin. Zolbek coçou a careca negra, sem saber se conseguira entender direito o que fora dito. Belwas deu de ombros e limitou-se a encarar o homem, curioso.
— Quanto ao pagamento, como terei certeza de que irão levar o dinheiro até eles?
— Não nos interessa roubar ninguém. Queremos apenas ajudar e desfazer a injustiça... Não imaginei receber em moedas. Se desejar, o senhor pode repassar os custos pra Maresia Doce. Tenho certeza que um homem da sua integridade e caráter terá a promessa aceita — declarou Lans.
Rawlin lançou um olhar firme de aprovação sobre o meio-elfo, apreciando a sua habilidade para sanar problemas de uma maneira rápida, criativa e honesta.
— De acordo... — disse, virando-se para o servo. — Naron, traga o meu kit de escrever e uma folha de papel.
O homem gordo correu para subir logo as escadas. O nobre fitou Lans mais uma vez com uma expressão de contentamento.
— Ora, ora... Quem diria! Quando você e a elfa vieram até mim, implorando por um lugar no Onda Voadora, confesso que não era a favor da ideia. Mas algo me dizia que vocês mereciam a ajuda...
— E agradecemos imensamente pela gentileza... Obtivemos, em parte, as respostas que buscávamos...
Rawlin sorriu. Depois, ele virou o olhar para Zolbek e fitou o seu casacão de pele de tigre vermelho com demasiado interesse.
— Gostaria de vendê-lo? Eu coleciono peças raras e este casacão de uma tribo bárbara de terras distantes ficará perfeito na parede...
— Vender? Não sei valor... Casaco pertencer a guerreiro de tribo inimiga abatido...
— Que tal cem dragões? Acha um preço justo?
Zolbek animou-se com a oportunidade de receber um dinheiro inesperado, mas Belwas, criado nas Colinas de Trielta, sabia que o interesse do nobre na vestimenta poderia fazê-la valer muito mais.
— Pede duzentos, Zolbek... Ele vai pagar — sussurrou o anão.
— Duzentos dragões! — declarou ele, meio sem jeito.
O nobre deu uma risada sincera, sem escárnio. Experiente, ele já supunha uma contraproposta e estava preparado, principalmente ao ver as roupas deles e saber que não sustentariam a negociação por muito tempo.
— Você é bom de negócios, rapaz... Mas por esse valor, não estou interessado... A não ser que aceite por cento e cinquenta... — disse, jogando a isca e aguardando o grande peixe musculoso mordê-la. Na sua cabeça, o casacão valia algo na casa dos trezentos dragões.
— Eu aceitar... Negócio completo! — Zolbek concluiu, feliz.
— Maravilha! — clamou Rawlin, esfregando as mãos de alegria. Ele deslocou-se até o canto da sala, abriu a gaveta de um armário e retirou uma pequena caixa de madeira. Ao abrir a tampa, enfiou a mão e começou a contar os sóis brancos.
— Eu querer pérola... Presente pra mim... Qual valor?
Rawlin parou a contagem e o contemplou com atenção.
— O preço atual flutua na casa dos sessenta dragões...
— Eu aceitar...
Rawlin ponderou o pedido com calma. Havia a probabilidade de elas se tornarem muito raras por causa da guerra, logo, não achava inteligente se desfazer delas levianamente. No entanto, considerou a solicitação bastante gentil e a troca, afinal, era positiva. Ele foi na direção da estátua e, com um leve puxão dos dedos, removeu uma pérola prateada da crista, para a felicidade de Zolbek. Em seguida, completou o valor com nove sóis brancos.
— Guarde-a com carinho. Tenho informações de que, em breve, ela valerá o dobro ou mais! — afirmou, pagando-o como prometido.
Os três ficaram estupefatos com a notícia.
— Pode deixá-lo aí no sofá — requisitou Rawlin, referindo-se ao casacão. — Amanhã, verei o que farei com ele...
Num instante, Zolbek obedeceu o nobre. Neste momento, Naron descia as escadas, trazendo o material e Rawlin foi para a mesa de jantar redigir o texto.
— Colocarei o pagamento em nome de Valko e ele é quem será o responsável pela contagem e distribuição dos valores de cada um... É uma forma de testá-lo na liderança e no controle dos problemas — anunciou, enfiando a ponta da pena no frasco de tinta e, depois, arrastando-a pela superfície branca do papel. — E como uma forma de reparar o incômodo a vocês, acrescentarei uma jarra de cerveja!
Belwas lambeu os beiços. Quando terminou de escrever, Rawlin derreteu um pedaço de cera azul na lamparina de cristal da mesa e deixou umas gotas pingarem sobre a página. Em seguida, utilizou o anel para carimbar o documento com a sua insígnia da onda azul, a marca da companhia.
— Aqui está, venha pegá-lo — ele estendeu o braço para Lans.
De posse da promessa, eles despediram-se cordialmente e foram buscar as armas. Lá fora, Belwas notou a janela de uma casa acesa. Uma senhora, bem velha, percebeu que havia sido vista e apagou a lamparina. Eles decidiram seguir depressa para o galpão.
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Os marinheiros correram ao vê-los se aproximando. O meio-elfo entregou a carta a Valko e eles comemoraram, agradecidos. Porém, uns mantiveram-se impassíveis, não demonstrando satisfação pelo pagamento, talvez por uma fidelidade ao capitão ou pela estranha quebra da rotina a que estavam acostumados. Em pouco tempo, os mais exaltados corriam para celebrar na Maresia Doce. O imediato parou e virou o rosto na direção da elfa.
— Ei, elfa... Quando o capitão soubé o qui’cês fizero, ele vai’vim atrás di’cês... Nem vão precisá ir’atrás dele! — alertou Valko.
Arzayla contemplou a face do imediato, avaliando a sua postura.
— Impossível... Se há algum lugar em que ele deseja estar, esse lugar é longe de mim! — expressou ela, confiante, para surpresa de Valko. Depois, ele acelerou o passo para alcançar os marinheiros.
— Vamos com eles? Ainda é cedo e não ‘tô bêbado! — exclamou Belwas, feliz da vida.
Zolbek concordou. Ele ansiava por sair do relento e ser acolhido em um ambiente caloroso, livrando-se da brisa fria que tocava-lhe e gelava o abdômen descoberto após se desfazer do casacão. Jevish preferiu se recolher para descansar e foi dormir na casa onde havia alugado antes da viagem. Apenas Lans e Arzayla permaneceram na frente do portão do galpão, intrigados.
— Zay... Agora que tudo se resolveu, você gostaria de me deixar a par do que ocorreu com o capitão? Como ele te enganou?
— Ainda não, preciso entender como deixei ser roubada...
— Roubada? — a voz dele aumentou bruscamente num lampejo de estarrecimento.
— Vamos para a estalagem, você precisa descansar... — afirmou ela, na tentativa de acalmar os ânimos do amigo.
Os dois caminharam em silêncio, com o meio-elfo dando passos inquietos de aflição. Mais adiante, eles entraram na Coral de Areia, a movimentada estalagem da vila.
Na Maresia Doce, Belwas e Zolbek viram quatro mesas e cinco cadeiras quebradas, além de outros objetos espalhados pelo chão, em meio às marcas de sangue. Sem tempo para essas tarefas extras, Bulfard não conseguira limpar os vestígios da briga. Entretanto, os clientes não pareciam se importar já que o clima estava agradável e animado. Com os dois desordeiros presos, os músicos retomaram a melodia e a ordem foi restabelecida.
O taverneiro, obviamente, aceitou a promessa de pagamento de Rawlin e abriu conta para todos. Valko, os marinheiros e Belwas fizeram jogos de vira-vira das canecas e, em meio a bigodes, barbas e roupas encharcadas de cerveja, eles cantaram e dançaram ao som da balada composta pelo quarteto musical para celebrar o festival da Quebra do Gelo em Marsember, no qual a primeira embarcação a entrar no porto pela manhã, adquire o direito de ancorar por um ano inteiro sem a necessidade de pagar impostos.
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Após entrarem no quarto, Lans trancou a porta e foi se sentar na cama para retirar os sapatos de couro. Era um aposento pequeno, com uma cama de casal no centro, duas mesas de cabeceira feitas de rocha marítima talhada, um armário duplo de madeira, um baú no canto e duas cadeiras com uma mesa, onde queimava uma vela, acesa pelo recepcionista para fornecer a única iluminação quando entrassem. A janela, do tipo guilhotina, encontrava-se aberta para arejar o ambiente e o colchão macio estava relativamente limpo, uma regalia dos quartos mais pomposos do andar superior.
Arzayla removeu o turbante roxo e deixou os cabelos prateados caírem sobre os ombros. Lans retirou o colete de couro e ambos buscaram roupas limpas nas mochilas para irem dormir. Enquanto fuçava um par de meias para proteger os pés do frio, Lans iniciou a conversa que tanto o inquietava.
— Zay... Somos amigos há tanto tempo... Por favor, não esconda nada de mim, eu só quero entender a história para te ajudar...
A elfa cinzenta amarrou o cabelo, abotoou a sua camisola de lã e abriu o cantil para beber um pouco d`água. Lans insistiu.
— O que ele te roubou? E como pode ter tanta certeza da fuga do capitão? E o que foi aquilo com os marinheiros? Você quase nunca perde um argumento...
Arzayla respirou fundo, angustiada. Não é que não quisesse lhe contar, mas ao fazê-lo, sabia que ele iria criticar sua decisão e, pior, ela teria de passar pela vergonha de ter caído na lábia de Draper.
— Sente-se que eu irei lhe contar... — afirmou, compreendendo que não podia deixá-lo sem respostas. Então, ela puxou a janela de cima para baixo, vedando o quarto, sentou-se ao seu lado na cama, ajeitou o travesseiro e contou a história, desde o descobrimento da gema na gruta, passando pela ameaça de ter de entregá-la ou ser atacada, até o desembarque apressado e suspeito no cais, quando o capitão fez uso de um truque arcano para obter sua compreensão. Lans ouvia com atenção, incrédulo. Ao final, Arzayla identificou uma expressão imperturbada no rosto do meio-elfo, uma postura incomum, considerando a linhagem do seu sangue dracônico. Ela podia jurar que ele ficaria mais exaltado, no entanto, continuou o relato, adicionando mais informações.
— O objetivo é descobrir onde irá para tentar vendê-la. A cidade mais próxima é Orlumbor, mas desconfio que jamais a levaria para perto da duquesa, sabendo que estaremos atrás dele... As opções viáveis são a estrada para sudeste, pegando a Ponte de Boareskyr e avançando rumo a Scornubel, a cidade das caravanas, ou Elturel, apesar de duvidar que fará negócios na teocracia dos paladinos de Helm... — a elfa parou para realinhar os pensamentos e engoliu em seco. — Ou viajará para o sul, mas se ele cruzar a fronteira de Amn, não o veremos nunca mais... — revelou, entristecida.
Lans fitava o canto do chão no quarto, submerso em lembranças. Até que sua memória foi reavivada ao ouvir a última frase da elfa.
— Ele vai pro sul! — exclamou, para a desesperança de Arzayla. — Ele vai pra Baldur’s Gate! E aposto dinheiro que irá por terra! — vociferou, enchendo-se de orgulho pela descoberta.
— Como pode ter tanta certeza?
— Eu ouvi uma conversa do capitão com um dos marinheiros e agora tudo faz sentido. Pelo que pude entender, a Trono de Ferro, uma organização mercantil da região, vem enviando mensagens a muitas companhias na Costa da Espada, recrutando homens para aumentar seu poder e influência e obter o monopólio do comércio de minérios de ferro e armas...
Arzayla suspirou com a atemorizante notícia.
— E o que tem Baldur’s Gate a ver com isso?
— Tudo! É lá que está localizado o quartel-general da Trono de Ferro! — atestou ele, com satisfação. — Ouvi também que eles estão alvoroçados pela futura visita de um líder que virá de Ordulin, um tal de Sarevok...
— E o capitão, tendo experiência e sendo largamente conhecido no comércio de ferro com Ruathym, sem dúvida, será contratado! — concluiu a elfa, desanimada.
— Exatamente! Que maldito... Eu sempre soube que ele não era uma pessoa de caráter. Ele já planejava trair Rawlin ainda em alto-mar, é um verme! — confessou para si mesmo. Depois, ele virou-se para Arzayla e libertou o seu sentimento retraído. — Só não havia razão para odiá-lo antes... Digo, se você tivesse me revelado isso há mais tempo...
Arzayla rapidamente compreendeu que uma crítica estava para sair de sua boca. Pelos seus cálculos, estava demorando até demais. Por isso, resolveu interrompê-lo previamente.
— Amanhã, quando acordarmos, iniciarei os preparativos para a nossa viagem... — anunciou ela, recuperando as esperanças.
— Calma... A essa hora, ele já sabe que a mágica foi quebrada e não vai correr o risco de se esbarrar com a gente. Ele vai aguardar uns dias, esperar o momento certo... Até porque o Rawlin acredita que vai encontrá-lo pela manhã para demiti-lo. E ao perceber o seu sumiço, o nobre poderá se tornar um aliado interessante... — disse ele, raspando os dedos, simbolizando o conceito de dinheiro.
— Certo... Amanhã, começamos a caça... Acha que conseguimos, só nós dois, lidar com ele e os seus homens?
— Não sei... Não conheço as habilidades de luta do capitão... E as rapiers que ele carrega na cintura, certamente, não são um enfeite. Além disso, sabemos que ele domina bem as magias arcanas e isso é sempre um problema a mais. De todo modo, pode não ser ruim convidar os dois amigos para nos ajudar... Quem sabe o gnomo...
— Não! — exclamou a elfa. — Prefiro que isso fique apenas entre nós. Incluir mais gente pode trazer transtornos desnecessários na hora de recuperarmos a gema...
— Pois é, espero que os guardas da vila não se intrometam nessa questão, senão já era...
Os dois pararam para suspirar. Arzayla aproveitou para afofar o travesseiro e Lans pôs, finalmente, o par de meias nos pés.
— Espante essa preocupação, Zay. Darei o tratamento adequado a um ladrão! Seus dias estão contados a partir de agora...
— Obrigada, meu amigo. Mas recuperar o que ele me deve já é o suficiente. O capitão não precisa perder a vida, a menos que outro jeito seja impossível...
— Concordo, apesar de ser difícil tomar algo de alguém quando a própria pessoa se põe em risco por não colaborar...
Lans parou para pensar e imaginou um possível confronto.
— Está bem. Vamos descansar? — solicitou a elfa.
— Pode ir, você precisa repousar. Aproveitarei o restante da vela para dar mais uma olhada nos meus papeis... Boa noite!
Arzayla, deitada, virou o rosto para o lado de fora da cama e, em pouco tempo, caía no seu transe élfico. Lans levantou-se, puxou a cadeira, abriu os documentos sobre a mesa e passou mais uma hora investigando-os. Quando se sentiu exausto, deitou-se na cama e, de longe, com a ponta do dedo, gerou um pequeno deslocamento de ar que apagou a vela sobre a mesa.
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O dia amanheceu ensolarado e os corredores da estalagem Coral de Areia encheram-se do saboroso aroma de bacon, linguiça e ovos fritos. Zolbek e Belwas, trajando roupas leves, deixaram o quarto e apressaram-se para degustar o farto café da manhã. As paredes do corredor principal exibiam quadros que revelavam grandes figuras políticas e históricas do passado da vila e da região de Orlumbor. Sem tempo para apreciar as obras, eles passaram direto e entraram no apertado salão de refeições. De longe, avistaram Arzayla e Lans sentados, comendo pães com creme de queijo derretido por cima de grossas linguiças.
O salão possui oito mesas de quatro a seis lugares e é conectado por uma passagem bloqueada por duas portas de madeira presas às dobradiças que se abrem para frente e para trás, de acordo com o movimento das pessoas. O piso é de granito rústico poroso e estava escorregadio pelo acúmulo de gordura. As grandes janelas abertas deixavam os raios de sol entrar para fornecer a iluminação. Vinte hóspedes tomavam seus cafés, silenciosamente. No canto oposto à porta, um homem estranho, de cabelos longos, amarrados em uma longa trança, vestia uma capa negra acinzentada sobre uma camisa marrom sem mangas, um cinto com fivela de cobre e botas pretas. Ele acompanhou atentamente o caminho da inusitada dupla até se sentarem à mesa e depois os ignorou.
— Bom dia! Pela aparência, os dois beberam demais ontem... — observou Lans, disfarçando o incômodo de eles não terem pedido para se sentar.
— Eu carregar Belwas todo pesado e molhado!
— Estava animado o ambiente. E me desafiaram nas canecas. Eu não podia perdê pruns marujos magricelas! — disse o anão, pondo a mão na cabeça por causa das fortes dores na têmpora.
Neste instante, uma moça jovem, de roupas um pouco surradas e sujas de gordura, aproximou-se deles.
— Mais dois sanduíches de bode no lençol dourado?
— Que ser isso? — perguntou Zolbek.
— Linguiça de bode no pão com queijo derretido — respondeu ela, mecanicamente. — Ou, se quiserem, temos fatias de bacon com ovos e torradas de pão preto na manteiga marinha...
— Segunda comida, por favor — escolheu Zolbek.
— Pra mim, um de cada... E pra beber, uma caneca de cerveja!
A jovem saiu apressada, deixando Zolbek pasmo com o pedido do amigo. Belwas resolveu puxar uma conversa com o grupo.
— O que vocês vão fazê a partir de agora?
Lans e Arzayla se entreolharam. O meio-elfo deu um gole no seu suco de limões de Mintarn e buscou uma resposta. A elfa interveio.
— Queremos conhecer melhor a vila antes de ir embora...
— Isso. Decidimos ficar uns dias por aqui — confirmou Lans.
— Conhecê a vila? Dá pra fazê isso tudo até o almoço! — brincou Belwas. — Eu quis dizê depois disso, pra onde vão e fazê o quê...
— Ah, depois pegaremos um barco pro sul — disse o meio-elfo, meio sem jeito, olhando para Arzayla.
— Pra onde no sul? — o anão demonstrava interesse no assunto, mas Lans começava a se sentir incomodado.
— Athkatla... E depois para a vila onde nasci, ao sul de Amn... — avisou, na esperança de estar sendo convincente.
Apreensivo, Belwas tentou olhar por cima do ombro da elfa para ver se a jovem estava trazendo a comida.
— Atikatla... — estranhou Zolbek, tentando se lembrar de algo. — Em Waterdeep, pessoas dizer nunca ir pra lá!
— E seria estranho se fosse o contrário — esclareceu Arzayla. —Waterdeep e Amn estão sempre em guerra, às vezes, com duração de muitos anos. As duas nações se desgostam e nunca acharam um jeito pacífico de manter as suas rotas comerciais coexistindo...
— Então, lugar ser diferente?
— Certamente... Amn tem seus defeitos e é mais violenta que o reino de Waterdeep. Mas uma pessoa como você se daria bem por lá, e poderia até fazer uma pequena fortuna — declarou a elfa.
— Como? — perguntou Zolbek, entusiasmado.
— Athkatla, a capital, é conhecida como a Cidade da Moeda e é uma das regiões mais ricas e opulentas da Costa da Espada... Tudo pode ser trocado, comprado ou vendido a qualquer hora e preço, bastando que ambas as partes julguem o acordo justo...
— Já ouvi dizê que os uniformes dos oficiais são feitos de prata e as ruas são pavimentadas com puro ouro! — interrompeu o anão.
— Pequenos exageros de uns viajantes deslumbrados, Belwas. A cidade é rica, mas isso seria inviável. Apenas a entrada de uma ou outra residência tem pavimentação banhada a ouro. E os oficiais carregam prata nas suas armaduras e lâminas, mas não para exibir a riqueza local, é por outros motivos...
— Eu gostar ideia pra visitar cidade... Quando pode?
— Conte comigo, quero vê com meus olhos toda essa riqueza! — adicionou Belwas.
Lans ajeitou a gola da camisa, arrependido pelas informações e por ter aguçado a curiosidade e a vontade deles, já que seus planos eram outros.
— Vejamos primeiro como estaremos daqui a uns dias, talvez até lá, vocês nem sintam mais vontade de ir... — alegou, na tentativa de dissuadi-los da ideia.
Para o seu alívio, a jovem garçonete chegou à mesa, trazendo os pedidos em pratos rasos de madeira, esfumaçando de tão quentes. O cheiro apetitoso preencheu o ar e fez Belwas salivar, admirando a comida. Zolbek pegou uma tira de bacon e a pôs inteira na boca. Lans olhou para fora da janela e percebeu o sol esquentando. Ele não tinha intenção de se atrasar para o desencontro de Rawlin com o capitão e, por isso, tratou de propor um brinde às pressas.
— Foi um grande prazer conhecê-los, senhores! Um brinde a nós por sobrevivermos ao naufrágio e ajudarmos os marinheiros! Que vocês sigam seus caminhos com muita sorte e saúde! — exclamou, erguendo o copo.
Os três levantaram os seus copos e brindaram às suas palavras.
— Queria que o pequeno Jevish estivesse aqui para me despedir. Ele me pareceu um ser interessante e uma companhia agradável — comentou a elfa com um sorriso gentil no rosto.
Lans olhou para a amiga e fez um sinal para irem embora.
— Agora, comida! — exclamou Zolbek, virando-se para o anão a fim de provocá-lo. — Belwas, lavar mãos e rosto pra comer?
— Não me interrompa, seu brutamontes! Nada nesse mundo vai me impedí de saboreá essa comida deliciosa...
Nesse instante, a porta do salão de refeições abriu-se com força e um anão de barba longa e cabelos ruivos, vestindo uma armadura de cota de malha e segurando um machado duplo nas mãos, entrou acompanhado de doze homens empunhando espadas bastardas. Todos trajavam o manto cinza com o emblema da adaga vermelha no peito. Eram guardas da vila de Dagger Port.
Os hóspedes e a jovem moça ficaram assustados e correram para o canto do salão. O anão olhou em volta e se dirigiu rapidamente à mesa dos quatro, bufando de raiva. Lans pôs a mão na coxa da elfa, assustado, e Belwas, distraído, tentava enfiar um pedaço de bacon na boca de uma vez só, mas queimou a língua e cuspiu-o no chão.
— Meu nome é Tragron Darkhorn e sou o chefe da guarda local de Dagger Port. ‘Cês ‘tão preso pelo duplo assassinato de Rawlin e Naron! Se tentarem resistir, garanto que a pena será de morte! — vociferou o anão com a sua enfurecida e imponente voz.
Os doze guardas se apressaram, fizeram um círculo em volta da mesa e se aproximaram para algemá-los. O salão permaneceu num silêncio sepulcral.
— Não resistam! — alertou Lans, calmamente. — Iremos provar a nossa inocência!
Lans, Arzayla e Zolbek levantaram-se com os braços juntos e à frente do corpo, oferecendo-os para as algemas, sem representar o menor perigo. Belwas, embora surpreso pela informação, usufruiu do breve intervalo para colocar umas tiras de bacon no sanduíche e segurá-lo enquanto eram todos algemados. O salão só restabeleceu a calma quando eles saíram da estalagem e seguiam na direção do casarão de carvalho e pedra, onde era o destacamento dos guardas.
Autor(a): dreimaurey
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