Fanfics Brasil - Agruras da Escravidão Quimera

Fanfic: Quimera


Capítulo: Agruras da Escravidão

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CENA 01. RAIZ DA SERRA. EXTERIOR. DIA.


Continuação imediata do capítulo anterior. Assírio observa Lorena, que continua desacordada. Ele se levanta da relva com Lorena nos braços e se embrenha na mata.


CENA 02. CASCATA DO ALTO DA GARGANTA. EXTERIOR. DIA.


Assírio, com Lorena nos braços, se aproxima da cascata. Ele se ajoelha à beira do córrego com Lorena em seu colo e molha delicadamente a testa dela com água. Um tempo. Lorena começa a despertar e abre os olhos. Assírio sorri para ela, que parece não entender o que aconteceu.


              ASSÍRIO                    ¾ Senhora...


Lorena, atordoada, o empurra violentamente e foge, amparando-se em seguida numa árvore. Assírio se aproxima apressadamente, temendo que ela desfaleça novamente.


              ASSÍRIO                    ¾ Senhora... Não se sente bem?


LORENA                               ¾ Quem é o senhor? E, por Deus, o que fazemos aqui no meio da mata?  


ASSÍRIO                    ¾ Sua montaria disparou. Não se recorda?


Lorena, atordoada e desconfiada, encara Assírio.


CENA 03. CASA DE DR. HEITOR. SALA DE JANTAR. INTERIOR. DIA.


Badira serve café a Heitor e Tobias na mesa.


HEITOR                     ¾ Confesso que estou curioso em rever Assírio. Meu afilhado deve estar um homem como tu.


              TOBIAS                     ¾ Um galã, se meu pai me permite.


Ambos riem. Badira e Tobias trocam um rápido olhar. Ela sai.


HEITOR                     ¾ É, o mal é que vocês crescem rápido demais. Um piscar de olhos e já se transformaram em homens feitos.


TOBIAS                     ¾ Estivemos juntos mais cedo no Hotel Francês. Ele queria vir, mas argumentei que o senhor visitava um paciente na raiz da serra. Então confirmou que jantaria conosco. Mamãe já está na cozinha a azucrinar Rute com o jantar.


HEITOR                     ¾ Então hoje comeremos como reis.


E continuam rindo. Estão felizes com a volta de Assírio.


CENA 04. CASCATA DO ALTO DA GARGANTA. EXTERIOR. DIA.


Lorena e Assírio conversam sentado à beira do córrego.


              LORENA                    ¾ Deus meu, que vergonha!


              ASSÍRIO                    ¾ Não é para tanto, senhorinha.


LORENA                               ¾ Como não? Praticamente o agredi. E logo ao senhor que salvou a minha vida. Eu o machuquei?


ASSÍRIO                    ¾ Não. Mas, se me permite, a senhorinha me assustou. Parecia uma gata selvagem.


            Eles riem e se olham profundamente. Ela ruboriza.


                        LORENA                    ¾ Não sei como pude não lembrar de tudo. Cavalo louco.


ASSÍRIO                    ¾ Deve ter se assustado com algum animal, quem sabe uma cobra. Isso é muito comum.


LORENA                    ¾ Meu Deus! Poderia estar gravemente ferida ou até morta, se não fosse o senhor. Nem sei como lhe agradecer...


ASSÍRIO                    ¾ Não é preciso. Eu que a agradeço. Nunca havia salvado uma fada antes.


            Lorena sorri. Eles não conseguem desviar o olhar um do outro. Parecem hipnotizados.


CENA 05. CASA DE DR. HEITOR. SALA DE VISITAS. INTERIOR. DIA.


Adelaide arruma flores num vaso enquanto Badira varre a sala. Tobias entra trazendo revistas.


              TOBIAS                     ¾ Onde está meu pai?


ADELAIDE                            ¾ Descansando um pouco. Sabe como ele fica exausto sempre que visita pacientes fora da cidade.


TOBIAS                     ¾ E Alcina?


ADELAIDE                ¾ Em seu quarto, lendo. Sua irmã e essas manias de leitura.


TOBIAS                     ¾ Irei um instante a Gazeta. Prometi a Álvaro esses periódicos literários que trouxe da Corte.


ADELAIDE                ¾ Mas não se demore. Depois de dez anos na Áustria, Assírio certamente adquiriu os refinamentos de lá. Dizem que na Europa a pontualidade é levada em alta conta.


TOBIAS                     ¾ Não se preocupe, D. Adelaide. Voltarei logo.


E a beija na testa.


ADELAIDE                ¾ Rute está a preparar um pernil.


TOBIAS                     ¾ Huummmm... Vou num passo e volto noutro.


Ao passar por Badira, Tobias lhe entrega um bilhete. Ela sorri e esconde imediatamente o bilhete em sua roupa. Ele sai, enquanto Badira e Adelaide continuam em seus afazeres.


CENA 06. RAIZ DA SERRA. EXTERIOR. DIA.


Assírio e Lorena se aproximam dos cavalos, que pastam mansamente.


LORENA                    ¾ (ACARICIANDO O CAVALO) Quem o vê assim até pensa que é mansinho. Monstro! Quase me matou.


ASSÍRIO                    ¾ Os animais às vezes podem ter atitudes imprevisíveis.


LORENA                    ¾ Os humanos também, senhor.


            Assírio pega em sua mão e ela o repele. Ele fica sem graça.


                        ASSÍRIO                    ¾ Conversamos tanto e ainda não sei o seu nome.


                        LORENA                    ¾ Lorena. (...) E o meu salvador, como se chama?


            Ele hesita.


                        ASSÍRIO                    ¾ Quem sabe não sou um anjo...


                        LORENA                    ¾ O senhor não está sendo justo. Eu revelei o meu nome.


ASSÍRIO                    ¾ Torço que a curiosidade a faça voltar a este local. Quem sabe amanhã, no mesmo horário. Então revelarei o meu nome.


            Um tempo.


                        LORENA                    ¾ (OFERECENDO-LHE A MÃO) Por favor, senhor...


            Assírio a auxilia a montar no cavalo.


                        ASSÍRIO                    ¾ E então? O que me diz?


LORENA                               ¾ Se tens mistérios, senhor, também tenho os meus. Pode ser até que meu nome não seja Lorena.


ASSÍRIO                    ¾ Não quer que a acompanhe?


LORENA                    ¾ E o que diria minha tia se chegasse acompanhada de um senhor do qual não sei ao menos o nome? Adeus, meu anjo da guarda.


Lorena parte sorrindo em ligeiro galope.


                        ASSÍRIO                    ¾ Adeus não, senhora. Até breve! Até breve...


            Assírio está em êxtase.


CENA 07. FAZENDA MATA CAVALOS. EXTERIOR. DIA.


Lorena pára de cavalgar na entrada da fazenda. Ela olha para trás e sorri. Também está excitada com aquele encontro e continua cavalgando mansamente em direção a casa-grande.


CENA 08. RAIZ DA SERRA. EXTERIOR. DIA.


Assírio cavalga de volta a Fábrica de Pólvora também com um sorriso nos lábios, pensando naquele encontro.


CENA 09. FAZENDA MATA CAVALOS. CASA-GRANDE. EXTERIOR. DIA.


Aurélia, Leão, Honório e Casimira trabalham no cultivo das flores no jardim.


              AURÉLIA                   ¾ Lá vem a cabelo de anjo...


Lorena pára com o cavalo em frente a casa-grande. Leão corre para auxiliá-la.


              AURÉLIA                   ¾ (CAÇOANDO) Vai cabritinho, vai...


              CASIMIRA                ¾ (ADVERTINDO) Aurélia, Aurélia...


Leão ajuda Lorena a descer do cavalo.


              LORENA                    ¾ Obrigada, Leão.


              LEÃO                         ¾ De nada, sinhazinha.


Leão se afasta levando o cavalo e Lorena sobe a escadaria que dá para a varanda.


CENA 10. FAZENDA MATA CAVALOS. VARANDA. INTERIOR. DIA.


Lorena encontra Geronça e Fabíola tomando limonada na varanda.


              FABÍOLA                   ¾ Nossa! Já estava preocupada com a demora.


              LORENA                    ¾ O clima estava tão ameno na serra que nem me dei conta da hora. Demorei tanto assim?


              GERONÇA                ¾ O que há? Parece estranha.


              LORENA                    ¾ Nada, titia. A uma certa altura da cavalgada o animal disparou e tive dificuldades em contê-lo.


              FABÍOLA                   ¾ Santo Deus!


              GERONÇA                ¾ Mas eu disse a Leão que escolhesse um cavalo manso. É um imprestável mesmo. Merece umas chibatadas.


              LORENA                    ¾ Por favor, minha tia. O cavalo apenas correu um pouco e só. Eu estou bem.


              FABÍOLA                   ¾ Também não acho que o escravo deva ser castigado, mas minha prima poderia ter se acidentado. Venha, sente-se do meu lado e lhe servirei um pouco de limonada. Está deliciosa.


              GERONÇA                ¾ Isso. Descanse de sua cavalgada. Vou descer um instante. Preciso fiscalizar o trabalho de confecção dos buquês.


Geronça desce a escadaria rumo ao jardim e Lorena senta ao lado de Fabíola.


                               LORENA                    ¾  Fabíola, pegue em minhas mãos.


Fabíola toca as mãos da prima.


FABÍOLA                   ¾ Estão geladas! (TOCANDO-LHE A FRONTE) Mas em compensação teu rosto está febril. Estás doente?


LORENA                    ¾ Não sei, Fabíola. Mas estou sentindo algo que nunca senti em toda a minha vida.


FABÍOLA                   ¾ Como assim? Eu não entendo.


LORENA                    ¾ Conheci um rapaz na Raiz da Serra.


Fabíola leva as mãos ao rosto num susto.


CENA 11. FAZENDA MATA CAVALOS. CASA GRANDE. JARDIM. EXTERIOR. DIA.


Geronça no jardim, enfurecida e segurando um buquê de cravos, diante de Honório, Casimira, Aurélia e Leão.


              GERONÇA                ¾ Mais um buquê de cravos totalmente perdido! É o quinto da semana! (E ATIÇA O BUQUÊ NO CHÃO) Quem fez isso?


Silêncio.


              GERONÇA                ¾ Eu perguntei quem fez isso?


              AURÉLIA                   ¾ Foi eu, sinhá.


              GERONÇA                ¾ Eu sabia. Tinha que ser Aurélia. Sempre Aurélia. Quantas vezes mais eu terei de dizer que não se corta os caules dessa forma, sua imbecil? Será que vou ter que abrir essa sua cabeça vazia a pancadas e enfiar a informação lá dentro?


              AURÉLIA                   ¾ Eu num sirvo pra isso não, sinhá. Preferia era de tá nas roça de café com os outros. Eu não sei cuidar de flor.


Geronça desfere uma violenta bofetada no rosto de Aurélia, que começa a chorar.


              GERONÇA                ¾ Quem decide o que meus escravos fazem ou não na minha fazenda sou eu, sua infeliz. (PEGANDO-A PELOS CABELOS) Vou dar-te um corretivo para aprenderes a não me afrontar, sua negra vadia. (PARA OS OUTROS) E voltem ao trabalho.


Honório, Casimira e Leão voltam a trabalhar, enquanto Aurélia é arrastada pelos cabelos por Geronça escadaria acima. Os escravos se entreolham amedrontados.


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1° INTERVALO COMERCIAL


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CENA 12. FAZENDA MATA CAVALOS. VARANDA. INTERIOR. DIA.


Lorena e Fabíola conversam.


              FABÍOLA                   ¾ Conheceu um rapaz?


              LORENA                    ¾ Meu cavalo se assustou e disparou.


              FABÍOLA                                                                                                                    ¾ Meu Deus!


              LORENA                    ¾ Eu poderia ter morrido. Então ele apareceu do nada e me salvou.


              FABÍOLA                   ¾ Ele quem, Lorena?


              LORENA                    ¾ Não sei. Ele não quis revelar seu nome. Mas parecia um anjo, Fabíola. Impressionei-me em muito com sua figura. Quando acordei em seus braços...


              FABÍOLA                   ¾ Nos braços dele?


              LORENA                    ¾ Sim. Eu desmaiei, não sei. Estávamos numa cascata que existe perto. Um lugar lindo. Nunca soube que havia um recanto como aquele no meio da mata da Raiz da Serra.


              FABÍOLA                   ¾ E ficaram os dois, a sós, no meio da mata?


              LORENA                    ¾ Sei que foi uma loucura, mas ficamos. Ele tocou em minha mão...


              FABÍOLA                   ¾ Ele a tocou? Lorena, você deve ter enlouquecido ou então sonhado com tudo isso.


              LORENA                    ¾ Acho que foram as duas coisas.


              FABÍOLA                   ¾ Imagine se tia Geronça descobre!


              LORENA                    ¾ Deus me livre!


              FABÍOLA                   ¾ Mas de onde surgiu esse homem? Ele é da cidade?


              LORENA                    ¾ Creio que não. Nunca o vi antes. Isso é o mais intrigante.


Elas ouvem gritos.


              FABÍOLA                   ¾ O que será isso?


Geronça entra na varanda arrastando Aurélia pelos cabelos.


              GERONÇA                ¾ Ande estaferma! Ande que eu vou te mostrar! Vou te mostrar o que faço com quem me desafia.


              LORENA                    ¾ O que aconteceu?


              GERONÇA                ¾ Essa insolente vai aprender a me obedecer, por bem ou por mal.


Geronça entra na casa-grande arrastando Aurélia pelos cabelos. Aurélia grita e chora.


              FABÍOLA                   ¾ Coitada!


              LORENA                    ¾ (INDIGNADA) Se tia Geronça irá castigá-la, terá que fazer isso na minha frente. Venha comigo.


              FABÍOLA                   ¾ Pelo amor de Deus, Lorena. Sabe que tenho pavor dessas coisas. Não me peça para presenciar isso.


              LORENA                    ¾ Pois eu vou.


Lorena entra na casa-grande. Fabíola hesita, mas vai atrás da prima.


CENA 13. FÁBRICA DE PÓLVORA. INTERIOR. DIA.


Assírio está pensativo com um sorriso nos lábios. Eugênio o observa. Um tempo.


              EUGÊNIO                  ¾ Se ainda o conheco bem, Sr. Assírio, algo aconteceu em seu passeio pela Raiz da Serra.


Assírio sorri.


              ASSÍRIO                    ¾ Conheci uma fada.


              EUGÊNIO                  ¾ Ah, uma mulher. Estás me saindo pior que a encomenda. Nem bem chegou e já estás a arrebatar os corações femininos de Serra dos Cavalos.


              ASSÍRIO                    ¾ Falo sério, Eugênio. Nunca vi tamanha formosura, nem mesmo na Corte. Trocamos apenas algumas palavras, mas foi um encontro que inexplicavelmente deixou uma marca dentro de mim.


              EUGÊNIO                  ¾ Nossa! E quem é essa tal fada?


              ASSÍRIO                    ¾ Prefiro não dizer. Nem sei se isso dará em algo. Não revelei minha identidade a ela.


            EUGÊNIO                  ¾ Não contou quem é?


            ASSÍRIO                    ¾ Não.


            EUGÊNIO                  ¾ Mas por quê?


            ASSÍRIO                    ¾ Acho que tive medo.


            EUGÊNIO                  ¾ Medo? Mas de quê?


            ASSÍRIO                    ¾ Meu caro... Vivi muitos anos fora do Brasil, mas não sou um completo alienado. Nem esqueci certas coisas do passado. Sei o que muitas pessoas nesta cidade pensam sobre meu pai. O respeitam porque temem seu poder ou porque precisam do seu dinheiro. Mas imagino o que são capazes de dizer pelas suas costas.


            EUGÊNIO                  ¾ Teve receio de dizer a essa moça que é filho de um negro?


            ASSÍRIO                    ¾ Sim. Receio de ser repudiado pelo preconceito ou aceito simplesmente por convenção. Lembro de quando era criança, dos olhares espantados quando descobriam de quem eu era filho.


            EUGÊNIO                  ¾ É natural. Suas feições não lembram em nada o sangue que carrega nas veias. Mas se quer um conselho, não tenha medo de assumir sua origem. Seu coração saberá descobrir se os que vivem à sua volta o amam de verdade ou não.


Pausa.


              ASSÍRIO                    ¾ Mais tarde jantarei com meus padrinhos e em seguida irei ao Hotel Francês. Haverá um sarau hoje à noite.


              EUGÊNIO                  ¾ Irás gostar. É muito animado. Não fica devendo em nada aos da Corte.


Assírio continua pensativo.


CENA 14. SERRA DOS CAVALOS. RUA MOVIMENTADA. EXTERIOR. DIA.


Mônina e Didá passeiam por uma movimentada rua de Serra dos Cavalos.


              DIDÁ                                                                                                                           ¾ Ouvi comentários sobre o sarau que ocorrerá hoje no Hotel Francês.


              MÔNINA                   ¾ Os saraus organizados pelo Hotel Francês são disputados. Neles circula a nata da sociedade de nossa região.


              DIDÁ                          ¾ Daria tudo para estar lá, mamãe.


              MÔNINA                   ¾ Filha, não achas que ainda és jovem por demais para tais desejos? E nem todos os festejos que ocorrem por lá são próprios para mulheres de recato.


              DIDÁ                          ¾ Mas sei que minha mãe já esteve presente em alguns eventos promovidos por Sr. Maurice e Mdme. Clementiny no hotel.


              MÔNINA                   ¾ Já, mas devidamente acompanhada de seu pai e depois de já estarmos casados. Tenha paciência, minha filha. Logo chegará o dia em que poderá freqüentar os salões do Hotel Francês, obviamente nas festas familiares e conduzida pelas mãos de seu marido.


              DIDÁ                          ¾ Fico a imaginar-me entrando por aquelas portas, ao lado de Assírio...


              MÔNINA                   ¾ Didá, minha filha, não comeces a fantasiar. E logo com Assírio Strauss.


              DIDÁ                          ¾ Por quê? Minha mãe acha que não estou à altura dele?


              MÔNINA                   ¾ Não se trata disso, minha querida. O fato é que Assírio acaba de chegar e não sabemos quanto tempo permanecerá entre nós.


              DIDÁ                          ¾ Meu pai lhe confidenciou algo? Assírio não veio para ficar?


              MÔNINA                   ¾ Não sabemos, Didá. Esse é o problema. Penso em quanto tempo ele agüentará em nosso convívio estando acostumado ao ambiente europeu. És uma bela jovem e tenho certeza que estás a altura de qualquer homem de bem desta cidade, inclusive de Assírio Strauss. Porém, não convém alimentar sonhos e esperanças vans em relação a ele.


Continuam a andar, enquanto Didá reflete sobre as palavras da mãe.


CENA 15. FAZENDA MATA CAVALOS. COZINHA. INTERIOR. DIA.


Aurélia chora diante de Geronça, Lorena, Fabíola, Auta e Benedita.


              AUTA                                                                                                                          ¾ Sinhá, a nega sabe que Aurélia é bocuda, mas ela não faz por mal.


              GERONÇA                ¾ Fique no seu canto e não interfira, Auta. Há muito que venho fechando os olhos diante do desleixo dessa atrevida. Benedita, traga a palmatória.


Aurélia chora, sentindo a dor dos puxões de cabelo.


              FABÍOLA                   ¾ Não faça isso, tia Geronça. Aurélia está arrependida. Não está, Aurélia? Diga que está arrependida.


              LORENA                    ¾ Por Deus, foi apenas um buquê de cravos. Para que tudo isso?


              GERONÇA                ¾ Quietas as duas! E é bom começarem já a aprender como se lida com a escravaria. Logo estarão casadas e precisarão de firmeza para gerir um lar. (PARA BENEDITA) Está surda, Benedita? Traga a palmatória.


              AURÉLIA                   ¾ Pode buscá, Benedita. Num vai ser a primeira vez que vou levá pancada nas mãos ou na cara.


              AUTA                         ¾ Mas será que vassuncê perdeu o juízo, Aurélia?


Todos ouvem o crepitar de uma panela em ebulição ao fogo. Geronça se aproxima do fogão e levanta a tampa.


                               GERONÇA                ¾ Mudei de idéia. Eis aqui o seu castigo.


         Auta se desespera em silêncio, enquanto Fabíola cobre o rosto num susto.


                        LORENA                    ¾ Eu não vou ficar aqui para ver isso.


GERONÇA                ¾ Quieta, eu já disse! (...) Vamos, Aurélia. É a água fervente ou a Polé. Já que é tão astuta, que sabe exatamente o que deve e o que não deve fazer nesta fazenda, decerto saberá avaliar qual decisão a tomar.


Aurélia hesita, mas vai se aproximando até chegar perto do fogão, sob o olhar assustado de todas e sob o olhar frio de Geronça. Aurélia hesita mais uma vez e vai aproximando a mão direita da panela de água fervente. O temor aumenta. Geronça permanece impassível. Aurélia mergulha a mão na panela e solta um grito terrível, desmaiando em seguida.


CENA 16. FAZENDA MATA CAVALOS. CASA-GRANDE. JARDIM. EXTERIOR. DIA.


Do jardim Casimira, Honório e Leão, que continuavam trabalhando com as flores, se assustam com o grito de Aurélia.


              CASIMIRA                ¾ Sinhá Geronça matou Aurélia! Ela matou Aurélia!


Os três estão apavorados.


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2° INTERVALO COMERCIAL


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CENA 17. FAZENDA MATA CAVALOS. CASA-GRANDE. JARDIM. EXTERIOR. DIA

 Continuação imediata da cena anterior.


              HONÓRIO                 ¾ Eu vô lá! Eu vô lá!


Leão e Casimira seguram Honório.


              CASIMIRA                ¾ Tá doido, homem! Sinhá Geronça te mata!


              HONÓRIO                                                                                                                  ¾ Mas Aurélia é minha irmã. É minha irmã que tá lá. Ocês ouviram o grito.


              LEÃO                         ¾ Sossega, Honório, sossega. Casimira tem razão. A gente num pode fazer nada.


              CASIMIRA                ¾ Ocê só vai piorá as coisa pra ela.


              LEÃO                         ¾ Aurélia já tá desgraçada pros olhos de Sinhá Geronça, Honório. E num é por falta de aviso. Tu sabe que ela tem aquela língua solta. Agora tu vai querê se desgraçá tombém?


              HONÓRIO                 ¾ (SE DESVENCILHANDO DELES) Diacho de vida! Diacho de vida!


Honório se senta revoltado sob a vigilância de Casimira e Leão, que temem que ele faça alguma loucura.


CENA 18. FAZENDA MATA CAVALOS. COZINHA. INTERIOR. DIA.


Auta e Benedita tentam reanimar Aurélia, que continua desmaiada. Fabíola chora agarrada a Lorena, que observa abismada a frieza de Geronça.


              AUTA                         ¾ Aurélia... Aurélia... Acorda, fia, acorda...


              BENEDITA                ¾ Ela tá gelada.


Aurélia desperta e chora olhando para a mão em carne viva, cheia de bolhas doloridas.


              AURÉLIA                   ¾ Tá doendo, Auta. Tá doendo muito.


              AUTA                         ¾ Vai miorá, fia. Guenta firme que vai miorá.


              GERONÇA                ¾ Se me pôr a perder mais um buquê, farei o mesmo com a outra mão. (...) Compreendeste, escrava? (...) Levem-na para a senzala e cuidem do ferimento, porque amanhã o dia começará cedo para Aurélia. Muitos buquês ela terá ainda que produzir.


Auta e Benedita ajudam Aurélia a levantar. Ela sente muita dor e o ferimento é horrível. Fabíola e Lorena estão perplexas.


CENA 19. FAZENDA MATA CAVALOS. EXTERIOR. ANOITECER.


Um belo e dramático STOCK-SHOT da Fazenda Mata Cavalos anoitecendo. O sol lança seus últimos raios no horizonte e os escravos que trabalharam o dia inteiro nas roças de café retornam da lida sob a vigilância do feitor e dos capatazes.


CENA 20. CASA DE DR. HEITOR. EXTERIOR. NOITE.


Somente para localizar.


CENA 21. CASA DE DR. HEITOR. SALA DE JANTAR. INTERIOR. NOITE.


Heitor, Adelaide, Tobias, Alcina e Assírio jantam. Badira e Rute permanecem por ali, a postos, caso sejam requisitadas.


              HEITOR                                                                                                                      ¾ Minha alegria é tanta com o seu retorno, Assírio, que nem sei ao certo como externá-la. Sabe que o tenho como a um filho, como se tivéssemos de fato o mesmo sangue.


              ASSÍRIO                    ¾ Suas palavras me emocionam, padrinho.Também os tenho a todos como parte de minha família.


              ADELAIDE                ¾ Lembro como hoje o dia em que foi batizado por padre Ovídio. Seu pai não queria, mas nós o persuadimos.


              HEITOR                                                                                                                      ¾ Seu pai sempre foi e continua a ser um truculento. Só eu sei quantas vezes já tentei prestar-lhe uma consulta e ele se nega veementemente. Um homem na idade de Sebastião e com negócios a executar não deveria pôr os cuidados com a saúde de lado.


              ASSÍRIO                    ¾ Sei do que fala, padrinho. Eugênio já me confidenciou algo a respeito. Estou aguardando apenas o melhor momento para ter uma séria conversa com meu pai.


              HEITOR                     ¾ Então, boa sorte.


              TOBIAS                     ¾ Mas não vamos passar o jantar inteiro a falar sobre temas tão pouco alvissareiros. Assírio deve ter tantas coisas a nos dizer sobre sua estada na Europa.


              ADELAIDE                ¾ Tobias tem toda razão. E o jantar, Assíro, está sendo de seu gosto? Rute caprichou no pernil.


              ASSÍRIO                    ¾ Maravilhoso, madrinha. Uma das coisas que mais senti saudades em todo esse tempo fora foi justamente do nosso tempêro. Não que a Europa não possua iguarias do melhor quilate, mas o nosso tempêro, ah, esse não há igual no mundo.


              ADELAIDE                ¾ (PARA AS ESCRAVAS) Sirvam-nos a todos um pouco mais de vinho. Menos para Alcina, é claro.


Badira e Rute imediatamente servem mais vinho.


              ALCINA                     ¾ Não sei por que não posso beber vinho. O padre não o bebe durante a missa?


              ADELAIDE                ¾ Alcina, não blasfeme!


Heitor, Tobias e Assírio riem.


ADELAIDE                ¾ Perdão, Assírio. Não há quem possa com a língua dessa menina.


ASSÍRIO                    ¾ Tobias me disse que estás aprendendo o latim com nosso companheiro Tenório.


ALCINA                     ¾ Sim. Com efeito em pouco tempo estarei lendo sonetos e muito mais.


HEITOR                     ¾ Não adianta coisa nenhuma lhe dizer que para uma mulher não há nada mais importante a aprender do que o bordado e a precisa condução de um lar. Esse latim que estás a aprender só servirá para que entendas melhor o que Padre Ovídio diz em suas missas.


ASSÍRIO                    ¾ Mas as coisas têm mudado muito desde o início da segunda metade de nosso século, padrinho. Na Europa então as mulheres estão conquistando cada vez mais lugares de destaque na sociedade, principalmente nas letras e nas artes.


ALCINA                     ¾ Está vendo, papai?


HEITOR                     ¾ Serra dos Cavalos não fica na Europa, Alcina. Estamos na América do Sul. Devias estudar a geografia e não o latim.


ALCINA                     ¾ E já soubeste do cosmorama que chegou a cidade, Assírio?


ADELAIDE                ¾ Ai, e esse cosmorama. Tornou-se a ladainha da semana.


ASSÍRIO                    ¾ Um cosmorama aqui? Que interessante!


ALCINA                     ¾ Pois sim, Assírio. Somente um rapaz de seu gabarito intelectual e com tudo o que viu na Europa, para entender a importância que a chegada desse cosmorama representa...


E Alcina continua a tagarelar para o divertimento de todos.


CENA 22. VIVENDA DO BARÃO. EXTERIOR. NOITE.


Somente para localizar.


CENA 23. VIVENDA DO BARÃO. SALA DE JANTAR. INTERIOR. NOITE.


Felipe, Ercília, Guilherme, Lorena e Fabíola jantam. Brázia serve água a Felipe e permanece por ali.


              LORENA                                                                                                                     ¾ Até o momento ainda não consigo crer no que vi. Se Fabíola não estivesse presente pensaria que tudo não passou de uma alucinação.


              FABÍOLA                   ¾ Um pesadelo melhor dizendo.


              FELIPE                       ¾ Bem feito para as duas. Não sei o que tanto vão buscar na Mata Cavalos.


              LORENA                    ¾ Papai, não se irrite. Sabe o quanto me agrada cavalgar.


              FABÍOLA                   ¾ E estive ao lado de minha prima o tempo inteiro, meu tio. (E TROCA UM RÁPIDO OLHAR COM LORENA) Não há com o que se amofinar. Não fosse o episódio com a escrava da fazenda, o dia teria sido magnífico.


              GUILHERME             ¾ E que assombro pode causar a punição de um escravo? É algo tão trivial em nosso dia-a-dia.


              LORENA                    ¾ Mas o que tia Geronça fez com a escrava foi uma temeridade!


              ERCÍLIA                    ¾ Minha filha, não convém questionarmos a forma como minha irmã trata seus escravos. Não é de bom tom.


              FELIPE                       ¾ Nunca escondi a pouca afeição que tenho por Geronça e seu marido, mas não posso deixar de observar que minha cunhada deve ter tido suas razões para agir como agiu. Negros são como cães, precisam ser domesticados.


              GUILHERME             ¾ E por falar em negros, já souberam do retorno de Assírio Strauss a Serra dos Cavalos?


              FABÍOLA                   ¾ Assírio... É um nome tão pouco convencional...


              GUILHERME             ¾ Sendo filho de quem é...


              LORENA                    ¾ Esse tal Assírio tem alguma ligação com o proprietário do Palacete Strauss?


              ERCÍLIA                    ¾ Trata-se do filho de Sebastião Strauss. Foi educado na Áustria. Deve estar um homem feito.


              FELIPE                       ¾ Negros com ranço europeu. E eu vivi para presenciar isso. Strauss deu o golpe do baú naquela cantorazinha de cabaré e hoje pensa que é alguma coisa.


              ERCÍLIA                    ¾ Senhor, as meninas!


              GUILHERME             ¾ São os ventos da modernidade se aproximando de Serra dos Cavalos, meu pai. E olhem que a abolição vem vindo aí...


              FELIPE                       ¾ Nunca. Nosso imperador pode ser um liberal, mas não chegaria a tanto.


              LORENA                    ¾ Bem, não conheço esse Assírio, mas que é engraçado um negro educado na Áustria, lá isso é.


              FABÍOLA                   ¾ Já escutei os escravos dizerem que ele não é negro. Quero dizer, que ele não parece ser negro.


              LORENA                    ¾ Ora, Fabíola, o filho de um negro só pode ser negro.


              FELIPE                       ¾ Brázia, mande Anastácio preparar o côche. Irei ao Hotel Francês e não tenho hora para voltar.


Brázia se retira. O barão continua comendo e o constrangimento é geral.


CENA 24. FAZENDA MATA CAVALOS. SENZALA. INTERIOR. NOITE.


Alguns escravos dormem, alguns comem e outros pensam na vida. Num canto Aurélia é amparada por Benedita, enquanto Auta termina o curativo na mão queimada.


              AUTA                                                                                                                          ¾ Pronto, fia. Esse ungüento que fiz com as erva vão fazê as bolha secá rapidinho. Tombém vai miorá a dor.


              AURÉLIA                   ¾ (CHORANDO) Por que tanta maldade, meu Deus? Por que nos odeiam tanto? Por quê?


              BENEDITA                ¾ Ocê sabe como sinhá Geronça é, Aurélia. Parece inté que provoca de caso pensado. Tá vendo no que dá?


              AURÉLIA                   ¾ Eu só falei que queria trabalhá nas roça de café.


              AUTA                         ¾ Eles é que são nosso dono, Aurélia. É eles que decide o que a gente faz e pra onde a gente vai. Decide inté quando a gente deve de morrê. E há de ser assim pra sempre.


              AURÉLIA                   ¾ Pois eu num aceito. Sinhá Geronça ainda há de pagá a dor que tô sentindo agora. Ela há de pagá. Eu juro.


Auta e Benedita se entreolham assustadas com a certeza de Aurélia.


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3° INTERVALO COMERCIAL


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CENA 25. GAZETA DE SERRA DOS CAVALOS. INTERIOR. NOITE.


Eugênio, Álvaro, Tobias, Tenório e Manoel conversam.


              TENÓRIO                                                                                                                   ¾ Continuo considerando isso arriscado. Não acham estranho que esse tal fazendeiro queira contribuir com uma quantia tão vultuosa?


              ÁLVARO                   ¾ Não acredito que haja motivos para tanto, Tenório. A abolição vem se tornando um desejo cada vez mais comum em todos os círculos de nossa sociedade, não me causando estranhamento algum que as doações a nossa causa também se tornem mais polpudas. Ademais, esse fazendeiro conseguiu contactarnos através daquele nosso amigo fidalgo, que vive em Campos dos Goytacazes e que já nos ajudou com dinheiro por muitas vezes.


              MANOEL                   ¾  E quando teremos a quantia?


              EUGÊNIO                  ¾ Em breve e utilizando o mesmo expediente de sempre. Ou seja, será depositado numa conta bancária na Corte em nome da Irmandade. Assim que nosso companheiro for a São Sebastião do Rio de Janeiro, poderá descontar o montante e trazê-lo ao retornar a Serra dos Cavalos.


              TOBIAS                     ¾ Concordo com Álvaro quando diz que não teremos problemas. Basta que continuemos agindo com a cautela de sempre. Souberam da festa que ocorrerá na Fazenda Mata Cavalos?


              ÁLVARO                   ¾ É no que mais se fala a boca miúda pela cidade, é claro depois da volta de Assírio a cidade. D. Diogo e D. Geronça oferecerão um almoço para um público seleto em comemoração ao fim da Guerra do Paraguai. Pasmem.


              EUGÊNIO                  ¾ E logo quem, D. Diogo, que enviou vários de seus escravos para a guerra somente para adular o imperador. Nem todos os negros que se juntaram às tropas brasileiras no Paraguai o fizeram por livre e espontânea vontade e com a promessa de conseguirem suas alforrias. E quantos retornaram vivos dos campos de batalha?


              ÁLVARO                   ¾ D. Diogo é um pústula. E essa festa nos veio muito a calhar. Será a chance que esperávamos de estarmos na Mata Cavalos e procurarmos o ponto fraco daquela fazenda. Eles não podem ser infalíveis, ninguém é. Haveremos de arranjar uma forma de dar fuga ao menos a um terço da escravaria dos Ribeiro Vilhena.


              TENÓRIO                  ¾ Não acham que estão esquecendo de um pequeno detalhe? Quem disse que D. Diogo convidará a todos nós? Certamente eu, por causa de meu tio, que é pároco da cidade, Tobias, por ser filho de Dr. Heitor, e Manoel, acompanhado de seus pais, estaremos lá. Mas e quanto a Álvaro e Eugênio. Duvido que sejam convidados.


              MANOEL                   ¾ Tenho uma alternativa. Álvaro irá juntamente comigo e meus pais. Duvido que D. Diogo crie problemas com os donos do Hotel Francês. Quanto a Eugênio, poderá ir como convidado de Dr. Heitor de Castilhos.


              TOBIAS                     ¾ Excelente idéia, Manoel. Certamente papai não se oporá. Lembre-se que ele e mamãe são padrinhos de Assírio.


              MANOEL                   ¾ (VERIFICANDO SEU RELÓGIO DE BOLSO) Companheiros, já é hora de irmos para o sarau. Assírio já deve estar a nossa espera no Hotel Francês.


              EUGÊNIO                  ¾ Sinto não poder acompanhá-los, mas minha esposa e minha filha me esperam em casa.


              MANOEL                                                                                                                    ¾ Está aí um modelo de retidão. Prometo a todos que quando me casar terei conduta semelhante a de meu amigo Eugênio. Mas por enquanto, vamos farrear!


Todos riem e começam a se preparar para sair. Pegam chapéis, casacos, bengalas.


              TENÓRIO                  ¾ Hoje eu vou tirar o pé da lama.


              TOBIAS                     ¾ E padre Ovídio, Tenório? Ele sabe que vais para a gandaia?


              TENÓRIO                  ¾ Disse a meu tio que estou a ministrar aulas de matemática para um comerciante da cidade à noite. Ele quis saber o nome do meu aluno, é claro. Mas prontamente aleguei que o comerciante me pedira segredo, envergonhado que estava por não saber efetuar as quatro operações. Titio ficou tão consternado com o dilema de meu suposto aluno, que me exigiu grande empenho nas aulas e, o melhor de tudo, que eu poderia me estender nas lições até a madrugada.


Riso geral.


              TOBIAS                                                                                                                      ¾ Cuidado, Tenório. Não se deve enganar um sacerdote. Ainda vais acabar indo para o inferno.


Continuam rindo e vão deixando a gazeta.


CENA 26. HOTEL FRANCÊS. EXTERIOR. NOITE.


Um STOCK-SHOT da fachada do hotel.


CENA 27. HOTEL FRANCÊS. SALÃO DE FESTAS. INTERIOR. NOITE.


O salão do hotel está fervendo. Garçons servindo bebidas, moças vendendo charutos, muitos casais dançando ao som do piano e da rabeca. Álvaro, Tobias, Tenório e Manoel chegam e cumprimentam Mdme. Clementiny. Ela aponta para Assírio, que está dançando com uma moça no meio do salão. Eles vão até lá e fazem a maior fuzarca em torno de Assírio, que abraça os amigos. Tenório começa a dançar com uma senhora.


CENA 28. HOTEL FRANCÊS. SALÃO DE JOGOS. INTERIOR. NOITE.


Um grupo de jovens joga brilhar. Outros grupos formados por homens mais velhos jogam cartas. Num deles está Felipe. Pela cara dele as coisas não vão bem. Maurice observa de longe. Um tempo. Álvaro, Tobias, Tenório e Manoel entram. Os quatro bebem vinho.


              MANOEL                   ¾  Meu pai, queremos jogar uma partida de bilhar.


              MAURICE                  ¾  Como vêem, terão que esperar.


Maurice continua observando Felipe, chamando a atenção de Manoel.


              TENÓRIO                                                                                                                   ¾ (DE PILEQUE) Então vamos voltar para o salão. Quero dançar.


              TOBIAS                                                                                                                      ¾ Calma, Tenório. Vais acabar com as pernas bambas. E também é melhor não exagerar no vinho, não estás acostumado. Teu tio não há de gostar se chegares em casa bêbedo.


              ÁLVARO                                                                                                                    ¾ Não conheces o ditado, Tobias? Quem nunca comeu melado...


              MANOEL                   ¾ Novamente preocupado com o barão, meu pai?


              MAURICE                  ¾ Do jeito que vai, o Barão da Serra acabará perdendo até as ceroulas.


              ÁLVARO                   ¾ Barão de Serra Nenhuma, como diz o pai de Assírio.


Todos riem, menos Maurice.


              MAURICE                  ¾ É uma calamidade. Mon Dieu!


              TENÓRIO                  ¾ E por falar em calamidade e em “Mon Dieu”, lembrei-me da senhorita Aimée, a beleza mais perturbadora do Teatro Alcazar. Ah, quantas saudades da Corte. Sabiam que por causa de Aimée um negociante português alvejou um soldado de polícia por mera desconfiança de que este lhe estivesse fazendo concorrência no coração da francesa? E tudo ocorreu nas dependências do Teatro Alcazar.


              MAURICE                  ¾ Aquilo se transformou num covil. Escândalos, conflitos e até crimes acontecem ali, apesar da constante vigilância policial.


              MANOEL                   ¾ Pois considero no mínimo instigante esse misto de arte e licenciosidade que gira em torno do Teatro Alcazar. Ademais, o que seria da vida dos sinhôs moços da Corte sem o Alcazar? Ninguém sairia de casa depois das nove horas da noite.


              MAURICE                  ¾ Tua mãe morre se souber que já andastes por lá.


              ÁLVARO                   ¾ O interessante é que não obstante os fatos desagradáveis que amiúde se desenrolam, a casa de espetáculos da Rua da Vala continua acolhendo todas as noites, pelo que sei, figuras luminares da vida nacional: o Conde de Porto Alegre, o Barão de Cotegipe, o Barão do Rio Branco.


              TOBIAS                     ¾ O Alcazar desperta a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro da vida monótona e modorrenta. E todas essas confusões são coisas do espírito carioca, sempre irreverente.


Assírio entra, também bebendo vinho.


              MANOEL                   ¾ Assírio, junte-se a nós.


              TENÓRIO                  ¾ Eu proponho um brinde, um brinde a Senhorita Aimée.


              ASSÍRIO                    ¾ De quem se trata?


              TENÓRIO                  ¾ Aimée, um demoninho loiro, uma figura esbelta, graciosa, meio angélica, uns olhos vivos, um nariz como o de Safo, uma boca amorosamente fresca, que parece ter sido formada por duas canções de Ovídio, enfim, a graça parisiense “toute purê”.


              ÁLVARO                   ¾ Pois eu conheço uma donzela que ostenta todas essas qualidades e ainda muitas outras. E que está muito mais perto de nós do que a Senhorita Aimée. Assim proponho um brinde a maior graça de nossa região. Um brinde a filha do Barão da Serra! Um brinde a Lorena de Castro!


              TOBIAS                     ¾ Um brinde a Lorena!


              MANOEL                   ¾ Um brinde a Lorena!


              TENÓRIO                  ¾ É, um brinde a Lorena!


              ASSÍRIO                    ¾ Lorena?


Todos continuam esfuziantes, enquanto Assírio espera por uma resposta.                                     .


_________________________________________________________________________


4° INTERVALO COMERCIAL


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CENA 29. HOTEL FRANCÊS. SALÃO DE JOGOS. INTERIOR. NOITE.


Continuação imediata da cena anterior.


              MANOEL                                                                                                                    ¾ Ora, esquecemos que nosso nobre amigo Assírio esteve longe de Serra dos Cavalos por longos dez anos. Deste modo, não sabe quem é Lorena de Castro, a fada que povoa os sonhos de todos os mancebos desta cidade.


              ÁLVARO                   ¾ Trata-se da filha de Felipe de Castro, o Barão da Serra.


              TOBIAS                     ¾ E ex-aluna de Álvaro Lisboa.


              ÁLVARO                   ¾ Ensinei-lhe o português durante o curso primário, só isso. Pelo menos o Barão da Serra foi suficientemente sensato ao alfabetizar a filha.


              TOBIAS                     ¾ É burlesco, mas ainda prevalece a idéia de que a leitura dos romances pode provocar a perdição das moças, que podem se empolgar com emoções e sentimentos indevidos para a mulher honesta.


              MANOEL                   ¾ A leitura para uma mulher deve se restringir a obras educativas e instrumentais para o seu papel de mãe e dona de casa. É o que pregam os cânones.


              MAURICE                  ¾ Pois me parece que a sensatez do barão só encontrou terreno fértil na educação de sua filha. Acabou de perder mais uma partida de cartas.


Todos olham para o barão, que parece não acreditar que perdeu o jogo. Irado, o barão acende um charuto enquanto seu ganhador comemora bebendo vinho.


              ASSÍRIO                    ¾ Então aquele é o Barão da Serra?


TENÓRIO                              ¾ (RINDO) Ou Barão de Serra Nenhuma, como o apelidou seu pai. O velho Strauss e o barão não se suportam.


            Álvaro cutuca Tenório, mas ele continua rindo.


ASSÍRIO                    ¾ Meu pai disse isso?


TOBIAS                     ¾ A verdade é que o Barão da Serra é um tradicionalista escravocrata. Não é de se admirar que não goste de seu pai.


MANOEL                   ¾ Acho melhor mudarmos de assunto. Que tal voltarmos às mulheres? Aimée, Lorena de Castro...


TENÓRIO                  ¾ Isso! Isso! As mulheres!


Assírio continua olhando pensativo para o barão, que inicia uma nova partida de cartas.


              ASSÍRIO                    ¾ [OFF] Lorena... Só pode ser ela.


CENA 30. SERRA DOS CAVALOS. AMANHECER. EXTERIOR. DIA.


Um belo STOCK-SHOT do amanhecer na região da Serra dos Cavalos.


CENA 31. PALACETE STRAUSS. EXTERIOR. DIA.


Só para localizar.


CENA 32. PALACETE STRAUSS. GABINETE DE SEBASTIÃO. INTERIOR. DIA.


Assírio folhea um livro. Cipriano entra.


              CIPRIANO                 ¾ Sra. Firmina disse que sinhozinho deseja me falar.


              ASSÍRIO                    ¾ Sente-se aqui.


              CIPRIANO                 ¾ Licença.


Cipriano, meio sem jeito, senta perto de Assírio.


              ASSÍRIO                                                                             ¾ Cipriano, por certo deve conhecer, mesmo que de vista, a filha do Barão da Serra. Uma senhorinha de nome Lorena.


              CIPRIANO                 ¾ Conheço sim senhor. Sinhazinha Lorena, filha do Barão.


              ASSÍRIO                    ¾ Pois sim. Acha que conseguiria entregar-lhe uma mensagem? E claro com total discrição.


              CIPRIANO                 ¾ Sim senhor. Sempre que vou buscar mantimentos na bodega a mando de Nhá Olegária, vejo a mucama de Sinhazinha Lorena por lá. Sei até o nome dela. É Brázia.


              ASSÍRIO                    ¾ E acredita que a mucama concordaria em passar uma mensagem minha a sua senhorinha?


              CIPRIANO                 ¾ E que serventia pode ter uma mucama ou um moleque de recados, senão a de servir de pombo-correio entre as sinhás e os sinhôs da cidade?


Assírio sorri, satisfeito.


CENA 33. CASA DO PADRE. INTERIOR. DIA.


Alcmena serve café a Padre Ovídio e Tenório, que está com uma cara péssima.


              OVÍDIO                                                                               ¾ Meu filho, sei que aprecias teu trabalho de mestre, mas é preciso que tenhas cuidado com tua saúde. Ontem chegastes às tantas e agora já te preparas para sair.


              TENÓRIO                  ¾ Tenho um aluno de latim pela manhã, meu tio.


              OVÍDIO                     ¾ Vês como teu irmão é trabalhador, Alcmena? Terá sorte se arranjares um pretendente a altura dele.


              ALCMENA                ¾ Acho tão misteriosa essa história de um comerciante que contrata aulas de matemática à noite e varando a madrugada...


              TENÓRIO                  ¾ Estranho por quê? Se ele trabalha durante todo o dia, a que horas poderia estudar senão à noite?


              ALCMENA                ¾ Sei... Titio, soube que ontem houve um sarau no Hotel Francês?


Tenório engasga e tosse muito.


              OVÍDIO                     ¾ Olhe a gula, Tenório. Acabarás morrendo engasgado.


              ALCMENA                ¾ Li uma vez na gazeta da cidade que os saraus do Hotel Francês costumam acabar quase ao amanhecer.


              OVÍDIO                     ¾ E isso é hora de falar de saraus e de hotéis franceses, Alcmena? Licenciosidade é o que há por lá. E também neste pasquim horroroso que chamam de jornal e que andas a ler. Para uma mulher, como diz o ditado popular, o melhor livro é a almofada e o bastidor.


              ALCMENA                ¾ Ave-Credo! Foi só um comentário.


Alcmena continua olhando desconfiada para Tenório, que se faz de desentendido.


CENA 34. VIVENDA DO BARÃO. EXTERIOR. DIA.


Só para localizar.


CENA 35. VIVENDA DO BARÃO. QUARTO DE LORENA. INTERIOR. DIA.


Lorena trança os cabelos de Fabíola. Batidas a porta.


              FABÍOLA                   ¾ Entre.


Brázia entra.


              LORENA                    ¾ O que quer, Brázia?


Um tempo. Brázia está constrangida.


              FABÍOLA                   ¾ Perdeste a língua?


              BRÁZIA                     ¾ (MOSTRANDO UM BILHETE) Mandaram isso pra sinhazinha...


              LORENA                    ¾ Quem mandou o que e para quem, criatura?


              BRÁZIA                     ¾ Um moço mandou esse bilhete pra Sinhazinha Lorena.


              FABÍOLA                   ¾ Moço? Mas que moço?


              LORENA                    ¾ Quieta, Fabíola. Dê-me aqui. (E PEGA O BILHETE) Está certa de que ninguém a viu entrar na vivenda com isso?


              BRÁZIA                     ¾ Sim, sinhá. Eu escondi bem escondidinho.


              LORENA                    ¾ Agora vá. E não comente esse episódio com ninguém, ouviu bem?


              BRÁZIA                     ¾ Licença.


Brázia sai e Lorena abre o bilhete.


              FABÍOLA                   ¾ Eu não sei quem é mais inconseqüente, se você ou essa mucama. Desde ontem que estás a cometer loucuras.


              LORENA                    ¾ É um bilhete amoroso.


              FABÍOLA                   ¾ Deus, o que será de nossa reputação?... O que diz?


              LORENA                    ¾ (LENDO) Celestial Lorena, idolatrada de minh’alma, formosa, mais que bela. Duvida que as estrelas tenham fogo, duvida que o sol tenha luz e ardor. Duvida da verdade como um jogo, mas não duvida, não, do meu amor. Querida Lorena, eu não sou bom poeta e não tenho arte para traduzir meus gemidos. Mas que te amo mais que a tudo, oh muito mais, crê sempre. Teu anjo para sempre. Te espero hoje a tarde em nosso recanto.


Elas estão em febre com aquelas palavras.


              FABÍOLA                   ¾ (ABANANDO-SE COM UM LEQUE) Mas que atrevido!


              LORENA                    ¾ É ele, Fabíola. O meu anjo salvador. Ele quer que eu o encontre na cascata, em nosso recanto.


              FABÍOLA                   ¾ Tu não irás.


              LORENA                    ¾ É claro que vou.


              FABÍOLA                   ¾ Lorena, estás doida? Não pode se encontrar com um desconhecido, no meio da mata e sem uma acompanhante. Imagine se descobrem! Não vês que uma atitude tresloucada como essa pode te colocar no galarim da fama? E ademais e se esse homem estiver com más intenções? Sabe-se lá o que ele pode tentar estando a sós contigo e em local tão afastado de tudo e de todos, meu Deus!


              LORENA                    ¾ Esquece que fiquei grande tempo à sua mercê, desacordada em seus braços naquele lugar? Não, ele não me fará nada. Alguém que escreve palavras tão doces e tão fortes como as que estão neste bilhete, não poderia me fazer mal algum. Eu irei ao seu encontro. E tu, minha prima, me auxiliará nessa aventura.


Fabíola suspira, enquanto Lorena continua em febre.


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FIM


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Autor(a): marcosrogerio

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CENA 01. VIVENDA DO BARÃO. QUARTO DE LORENA. INTERIOR. DIA. Continuação imediata do capítulo anterior. Lorena e Fabíola conversam.               FABÍOLA                   ¾ ...


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