Sinopse: felicidade clandestina
Felicidade Clandestina – Clarice Lispector
Ela era magra, alta, morena e de cabelos lindamente crespos, meio loiros. Tinha um busto lindo, enquanto nós todas ainda éramos tímidas. Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com flores. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de restaurante.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um pratinho de salgados, ela nos entregava em mãos um cardápio propaganda da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem de comidas mesmo, com seus pratos mais vendidos. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “bom apetite” e “volte sempre”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura ousadia, chupando balas com delicadeza. Como essa menina nos ignorava, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de comer, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe o lanche que ela não comia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía sanduíche de presunto.
Era um lanche maravilhoso, meu Deus, era um almoço para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o daria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam, estava muito ansiosa.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia dado o lanche a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Natal. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do lanche, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí somente uma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono do restaurante era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o lanche ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo esbelto. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o lance esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o doei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este lanche nunca saiu daqui de casa e você nem quis comer
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Natal. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai doar o lanche agora mesmo. E para mim: “E você venha buscar por quanto tempo quiser. ”Entendem? Pelo tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o tão sonhado lanche na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o lanche. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o melhor lanche com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a comer. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, comi a metade do lanche maravilhoso, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo tomar água, fingi que não sabia onde guardara o lanche, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o lanche aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um lanche: era uma mulher com a fome saciada.
Autor(a): adevnilda