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Sinopse: A doce felicidade clandestina



A doce felicidade clandestina

Alice era uma garota gorda, sardenta de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto eu, assim como as outras garotas da escola ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, Alice enchia os bolsos da blusa, por cima do busto com balas.
Porém, Alice apesar de pouca beleza e nenhuma simpatia, possuía oque qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Mas pouco aproveitava, e nós ainda menos. Pois não tinha nenhum apresso pela leitura, sua paixão era outra. Ela nem ao menos tinha a generosidade de compartilhar com os amigos os livros mais baratinhos, pois nas datas de aniversários ela costumava presentear com cartões postais da loja do pai, com paisagens de Palmeira das Missões mesmo, onde morávamos, com a imagem do pórtico da cidade mais do que conhecido. Atrás ainda escrevia com letra de forma coisas como “Felicidades” ou “Sucesso”.
Alice era toda crueldade e vingança, sempre chupando balas e fazendo barulhos. Como aquela garota devia nos odiar por sermos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas e de cabelos livres. Comigo exerceu calma e feroz seu sadismo, achando divertido o meu sofrer. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe pelos livros que ela não lia.
Até que ela teve a cruel ideia de exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía as Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro apaixonante, realmente o livro dos meus sonhos, porém, completamente a cima das minhas posses, pois meu pai estava desempregado e minha mãe faz doces para sustentar a família de cinco pessoas, como sou a mais velha, ajudo mamãe a embalar os doces para papai fazer as entregas. Por sorte, existe uma família na cidade que encomenda doces todos os finais de semana.
Alice me propôs que eu fosse a sua casa ao dia seguinte, pois iria me emprestar o livro.
Até o dia seguinte, me transformei na própria esperança de alegria: eu flutuava na minha imaginação criando histórias de como seria ter aquele livro em minhas mãos.
No dia seguinte adiantei o trabalho de embalagens dos doces para papai fazer a entrega, e fui literalmente correndo a casa de Alice buscar o livro. Ela não morava em um sobrado como eu, e sim em uma linda casa, porém não me convidou a entrar, apenas me olhou com desprezo no fundo dos meus olhos e disse que havia emprestado o livro a outra menina e que eu voltasse no dia seguinte para busca-lo. Boquiaberta, sai devagar, mas a esperança de ter aquele livro emprestado fez com que em poucos passos eu passasse a esperar ansiosamente pelo próximo dia. Passei a viver dias de uma esperança ilusória que parecia nunca ter fim, pois o plano secreto e maldoso era me torturar com a promessa de que iria me emprestar o livro.
Passei dias e dias com a mesma rotina, cheguei a ter olheiras, meu dia se resumia a embalar os doces de mamãe para a entrega, e sair correndo até a casa de Alice com o coração apertado esperando um dia ter o tão sonhado livro em minhas mãos. Não sei e nem me dei por conta de quanto tempo durou aquela tortura emocional mas foram muitas as vezes que fui à casa de Alice.
Até que um dia, quando eu estava a porta de sua casa humildemente ouvindo sua recusa humilhante apareceu sua mãe, ela devia estar estranhando a minha insistente aparição diária a porta de sua casa, então pediu explicação a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, porém vaga de justificativas. A mãe de Alice achava cada vez mais estranho o fato de não entender o que eu fazia a sua porta todos os dias. Até que aquela mãe boa entendeu e exclamou com surpresa para a filha: Mas este livro nunca saiu daqui de casa, e você nunca o quis ler!
A pior descoberta daquela mãe, seria sobre a dureza do coração da filha que tinha, observava em silêncio para ver até onde ia a perversidade da filha com aquela pobre garota que só queria ler um livro.
Foi ai então ela toma conhecimento dos fatos e ordena doce e firmemente à filha: “você vai emprestar o livro agora mesmo.” E para mim: “e você fique com o livro por quanto tempo quiser.” Ainda ordenou à garota que quando eu resolvesse devolver o livro a própria Alice iria a minha casa buscar.
As palavras daquela mãe dizendo: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa grande ou pequena poderia ter a ousadia de querer.
Eu fiquei tão estonteada, que peguei o livro em minhas mãos e sai a caminhar rumo a minha casa com o livro contra o peito e o coração quente batendo em disparada.
Chegando em casa não comecei a ler, fiz de conta que esqueci estar em posse daquele tão esperado livro e fui o degustando aos poucos. Li cada parágrafo e cada página calmamente, sem pressa, para digerir o que estava acontecendo, pois tive tempo para isso, as encomendas de mamãe haviam diminuído e me sobrara mais tempo para a leitura.
A minha doce felicidade clandestina.
Levei alguns dias para ler aquele livro e a cada página lida se aproximava a hora de me despedir dele, então meu coração começou a ficar apertadinho e meu desejo pela leitura aumentava ainda mais, mal sabia eu que aquele era o começo de uma vasta e encantadora jornada de leituras.
Chega então o tão terrível dia de devolver o livro, eu avisei à minha amiga Alice “devoradora de doces” que chegara a hora de buscar o seu livro no humilde chalé onde eu morava com a minha família, e ela assim o fez.
Ao chegar em minha casa, eu a tratei com toda a educação que meus pais me ensinaram a ter com as visitas, e a convidei a entrar, pois ela estava acompanhada de sua mãe.
Minha mãe educadamente veio ao encontro delas e lhes ofereceu um café, a garota má, porém gulosa, aceitou na esperança de que por sermos pobres não haveria nada a lhes oferecer, sendo assim, seria mais uma ótima oportunidade de continuar a me humilhar.
Então minha mãe gentilmente pôs uma linda mesa farta com um pouco de cada tipo de seus doces e salgados preparados para a venda do dia e as convidou à servir-se.
Foi um verdadeiro choque para Alice descobrir que todos as deliciosas guloseimas que ela tanto gosta, e estava de castigo sem poder saborear pelo fato de ter me negado o livro por tantos dias, eram então feitos por minha mãe.
Ela comeu tanto, e com tanto gosto, parecendo uma esfomeada, a menina má, matou sua própria gula até se empanturrar e ainda levou uma quantia para casa. Ao sair, agradeceu pelos doces e ainda me pediu desculpas pelo ocorrido.
A partir desse dia, Alice passou a me visitar frequentemente, sempre com um livro diferente para me emprestar, e eu passeia a entregar pessoalmente as encomendas feitas pela mãe de Alice e frequentar sua casa, pois Alice não está mais de castigo e sua mãe encomenda doces semanalmente.
Hoje Alice e eu somos amigas e ela passou a tratar todas as amigas melhor, já não faz mais maldades e chegou até a dar um livro de presente de aniversário para Julia, nossa colega de classe.
Moral da História: por mais humilde que o outro seja ele sempre terá algo de bom para oferecer.
E também: não existe amargo que o doce não adóce.

Autor(a): simone_vargas_dos_santos
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