Sinopse: A tal felicidade clandestina
A tal felicidade clandestina
Ela tinha olhos claros e os cabelos loiros e longos como os da Rapunzel. Era magrinha, mas suas roupas nos faziam olhar por horas. Ficávamos perdidas e sem graça perto dela. Sempre bem alinhada, seus materiais eram os mais desejados e caros do momento, e isso a transformava na garota mais exibida da escola. Ela vinha de uma classe média alta, enquanto nós morávamos em fazendas, usávamos sacolas plásticas como mochilas e nossos cadernos eram aqueles que o nosso dinheiro pudesse comprar. Nossas sandálias eram amarradas com elásticos para não saírem dos pés, enquanto as dela, saiam luzinhas nos saltos.
Sempre trazia seu lanche para escola. Sua dieta era balanceada, na quantidade certa, ou seja, não poderia dividir com ninguém. Mas tinha um dom para a maldade e fazia com maestria. Percebia a nossa admiração pelo seu modo de vida e fazia disso seu pedestal. Cheia de “não me toques” não falava com ninguém, apenas se isso lhe desse alguma vantagem. Aos poucos ela notou que eu a observava admirada e fez disso seu novo brinquedo. Se exibia todos os dias de formas diferentes e eu a olhava e pensava “Caramba, ela deve ser muito feliz”. Mas na minha inocência, não percebia quão amargurada e sozinha ela era.
Certo dia ela chegou à escola com um belo caderno de desenhos de capa dura e uma maleta de canetas coloridas de 24 cores. Meus olhos congelaram. Eu amava desenhar e aquilo era um sonho para mim, mas meus pais não tinham condições para me dar algo parecido e eu entendia. Mas ver tão perto de mim, me deixou fascinada, e ela viu aí uma brecha para se divertir um pouco. Enfim, nesse dia a aula foi de artes, fizemos o alfabeto inteiro colorido com figuras. Alguns com seus cadernos de desenho conseguiram fazer um belo trabalho. Porém, fiz no meu caderno de escrever, as letras e os desenhos foram os menores possíveis para economizar as folhas e não gastar todo o caderno até o fim das aulas.
O trabalho dela foi o mais elogiado e ela me olhou com ar de superioridade. O meu sem colorir nem desenhar direito, foi repreendido pela professora e meus colegas me chamaram de preguiçosa. Fiquei muito mal, triste, pois eu realmente me esforcei, mas eu só tinha um caderno, um lápis e uma borracha para realizar tal feito. Na saída da escola, a garota rica me parou e me entregou o caderno dela e o estojo, e disse que não faria falta porque ela tinha muitos em casa. Alguns colegas presenciaram a cena e ficaram boquiabertos pela atitude dela.
Peguei o material com os olhos marejados, agradeci e fui chorando de alegria para casa. Guardei o meu presente como se fosse um tesouro. Dormi e sonhei com os desenhos mais lindos, flores, frutas, animais, entre outros. No dia seguinte acordei feliz, peguei meu material, coloquei na sacola e fui para escola com uma sensação tão boa que não pude explicar.
Quando entrei na sala de aula, ela não estava. Logo me chamaram na secretaria. Chegando lá, meu corpo todo paralisou. A mãe da garota e ela estavam conversando com a diretora e a professora sobre algo. Quando entrei, elas me olharam e a professora indagou:
- Cadê os materiais da sua colega?
E eu perplexa e sem entender me vi perdida com a sacola em uma das mãos e o coração na outra. A diretora veio em minha direção, pegou minhas coisas, tirou o caderno de desenho e o estojo e mostrou a garota perguntando se eram aqueles os materiais desaparecidos. Ela balançou a cabeça afirmativamente e disse:
- Ela roubou!
Naquele instante o mundo sumiu debaixo dos meus pés. Me senti tonta e uma náusea muito forte tomou conta de mim. Nesse momento sai da sala da diretoria em direção ao banheiro e percebi que todos os meus colegas estavam me vendo ser acusada de algo que não cometi. No momento o que vinha na minha cabeça era “Será que eu entendi errado? Ou será que ela não me deu os materiais e foi só um sonho? ”. Foi aí que lavei meu rosto vermelho de tanto chorar, peguei minhas coisas e decidi que ia para casa e que não iria mais voltar naquele lugar.
Ao sair do banheiro todos me olhavam espantados do lado de fora, e a única coisa que eu pedia era que alguém me acordasse daquele pesadelo. Aquela felicidade clandestina que eu havia desfrutado na noite anterior havia se esvaído em poucos instantes e eu percebi que não tinha sido uma felicidade genuína. No meio da multidão de crianças curiosas, pude ver a mãe da garota vindo em minha direção com o caderno e o estojo nas mãos e o olhar perplexo, num misto de piedade e vergonha. Ficamos em silencio por alguns instantes que para mim duraram a eternidade. Enfim, ela me estendeu os materiais e disse que alguns colegas disseram a ela que viram o momento em que a filha dela havia me dado os materiais no dia anterior, e me pedia desculpas pelo constrangimento que a filha dela causou.
Quando meus olhos se encontraram com os daquela senhora senti uma mistura de pena e ternura por ela. Seus olhos emanavam uma tristeza tão grande por saber do que a filha era capaz. Olhando ela ali na minha frente tentando se desculpar por um erro que não foi dela, senti uma vontade enorme de abraçá-la. Caminhei para perto dessa senhora, peguei os materiais e os coloquei no chão e a abracei. Abracei forte. Pois percebi que acima de tudo ela era mãe, e uma mãe só quer que o filho seja alguém de bem. Me soltei de seus braços, enxuguei os olhos e a olhei e sorri. Percebi em seu rosto uma lagrima que teimava em cair, mas ela não tirava os olhos dos meus. Peguei a minha sacola, coloquei nas costas e caminhei em direção ao portão de saída.
Ninguém me impediu de partir, pois sabiam que eu precisava de um tempo para me reencontrar. Saí de cabeça erguida, olhando para frente, os passos lentos, minha sacola plástica carregando meus materiais em uma das mãos e na outra a certeza de que minha consciência estava limpa. Não me importei no quanto tempo levaria até minha casa debaixo daquele sol escaldante. O que realmente importava era aquela sensação de felicidade impar e singular que eu sentia naquele momento, e a vontade de chegar em casa, guardar os materiais, subir no pé de goiaba e passar a tarde ali lembrando de como foi sentir por um dia aquela tal felicidade clandestina.
Lorrayne Kaliope Morais Lobo Barbosa Ribeiro
Autor(a): lorrayne_kaliope_ribeiro