Sinopse: Felicidade Clandestina
Eu já viajei para uma infinidade de lugares. Não eram lugares comuns, como qualquer criança da minha idade iria à companhia de seus pais. Eram lugares mágicos, diferentes, às vezes com dragões, outras com fadas e elfos, daqueles em que você pode fazer o que desejar, e o melhor, você pode ser o que quiser.
Mas ao contrário dos lugares comuns, em que para embarcar há que possuir uma passagem ou cartão de embarque, nestes, o passaporte é sempre um livro e para viajar só era necessário ler. Ler de verdade, de modo a mergulhar nas histórias até se sentir parte dela.
Claro que para continuar fazendo as minhas viagens, cada vez mais livros e histórias são necessárias. A internet tem sido como um paraíso para quem busca novas histórias, mas aí também reside o meu tormento: os melhores livros virtuais são pagos e minha família não tem condições de comprar. A única das minhas colegas que possui acesso a uma infinidade de livros virtuais por ser filho de um dono de livraria, parece ter uma tendência sádica e gosta de fazer as outras colegas sofrerem à espera de um ato de bondade de compartilhar algum e-book.
Não é difícil reconhece-la entre as outras meninas, gordinha, mais baixa que a média, cabelos ruivos e desgrenhados e um busto muito grande comparado ao nosso, que ainda é praticamente inexistente. Talvez o fato de não ser parecida com a maioria das meninas fez com que ela não se sinta parte do grupo e se comporte tão mal conosco. Talvez por isso goste de nos ver implorar para compartilhar conosco seus e-books, os quais ela sequer gosta de ler.
As outras meninas da nossa turma, assim como eu, não apenas são diferentes fisicamente, mas temos uma situação financeira menos favorecida e além dos livros da biblioteca da escola, que não são renovados com muita frequência, tendo também prazos muito curtos para empréstimo, não temos como alimentar a nossa fome de histórias. E para tornar a situação ainda mais crítica, justamente as que não podem não tem acesso, são as apaixonadas por e-books.
Mas eu já estava acostumada às ações mesquinhas da minha colega quanto ao compartilhamento de seus livros virtuais (assim como dos físicos), nem mesmo nos nossos aniversários ela nos enviava um livro de presente, era apenas um cumprimento seco numa rede social. Até que certo dia, abusando da minha inocência e da minha esperança intocável, ela me falou que tinha conseguido e poderia me dar o que eu (e todas as outras colegas devoradoras de livros) tanto buscava: a coleção completa do clássico O Mágico de OZ. Assistimos ao filme e já tínhamos lido algumas obras resumidas. Mas adorávamos o tema e o que há muito sonhávamos era poder ler a coleção clássica completa da obra, que, por sinal, é muito cara.
Assim, tamanha foi a minha surpresa quando ela disse que poderia me dar. Mas esse não foi o único sentimento que me acometeu naquele momento. Foi como se mil vulcões entrassem em erupção dentro de mim. Eu me senti eufórica, uma alegria tomava conta de cada parte de mim. Contudo esse estado de êxtase durou não mais do que alguns segundos, quando minha malvada colega continuou, dizendo que estava sem internet e que eu teria que levar um pen drive à sua casa para que ela copiasse para mim. Além disso, me fez prometer que não repassaria o arquivo pois para acessá-lo teria que me passar uma senha secreta, já que era um arquivo protegido.
Para mim, nada foi problema, na hora combinada estava lá, na frente da casa dela, ansiosa para receber o arquivo que me levaria para um mundo todo encantado e no qual eu ficaria por muitos e muitos dias. Mas de repente, ela apareceu e me disse, sem dó, que não poderia me entregar o arquivo pois seu computador teve um problema e foi para a assistência técnica, mas que talvez no outro dia já estivesse pronto. Embora aquilo fosse como “um balde de água fria”, rapidamente me recompus e renovei minhas esperanças para o próximo dia.
O que eu não sabia é que tal cena se estenderia por quase um mês, indo cheia de animação e voltando para casa frustrada, reunindo as esperança para o próximo dia. Foi quando em uma bela tarde, depois da escola, passei mais cedo na casa dela e a mãe dela nos surpreendeu conversando. Ao explicar o motivo da minha frequente visita a mão ficou completamente indignada. A boa mulher percebeu o ato malvado que sua filha tinha cometido e não apenas a repreendeu, como me deu o arquivo e estava desbloqueado, não havia senha secreta. A mãe explicou que o computador sempre esteve funcionando perfeitamente e que estava entristecida com o ocorrido.
Eu agradeci com um sorriso que não conseguia sair do rosto, era o dia da minha felicidade, não uma felicidade ilícita, como vinha sendo, sem compartilhar, com restrições, às escondidas, de acordo com a boa vontade de quem detinha o poder sobre mim, mas uma felicidade livre, legítima, a coleção era minha, sem condições e sem entraves ou humilhações. Voltei para casa saltitando, com uma alegria indomável, um pleno contentamento que não poderia ser descrito, explicado ou definido.
Não poderia ser diferente, os livros para mim eram pedaços do paraíso e aquela coleção, em especial, representava um mundo inteiro a desbravar. Ao chegar em casa, porém, tamanha a felicidade, que apenas abri o arquivo, olhei, mas não li ainda, era especial demais para começar assim.
Apenas no outro dia, depois de mais calma, agora acreditando que aquela situação não era um sonho, sentei na frente do computador e iniciei a leitura. E a viagem foi fantástica, superando todas as minhas expectativas. Mas eu não poderia guarda-la para mim, uma felicidade desse tamanho, precisava ser compartilhada e dei o arquivo para todas as nossas colegas, que desfrutaram daquele delicioso passeio.
A partir disso, tive uma ideia: criar um blog que funcionasse como clube de leitura para todas as meninas que, como eu, viajavam através dos livros e alí poderíamos conversar sobre o que achávamos e imaginar em conjunto um mudo perfeito em que todas poderíamos ser encantadas.
Mas para surpresa da minha colega, que nos torturou por tanto tempo, também a incluí, o que fez com que, no final, até ela, que não gostava, lesse toda a coleção. Depois dessa experiência ela sumiu, não a menina em si, mas aquela menina má e sádica. Ela se transformou em alguém capaz de compartilhar e de ter carinho pelos outros. Sentiu-se parte do grupo e se tornou uma de nós, louca por livros, passou a trazer mais e-books para que todas se deliciassem, era uma outra pessoa.
Hoje tenho boas lembranças do clube de leitura e de cada uma das meninas que participou dele, até mesmo da minha colega, detentora de tantas preciosidades, que nem mesmo conseguia enxergar. É por isso que sei que os livros podem tudo, o mundo encantado para onde ele nos leva pode nos transformar e nos tornar crianças felizes, pessoas felizes e a nossa felicidade, proporcionada pelas histórias, é genuína, é de cada um e por isso não, não poderia ser, de forma alguma, uma felicidade clandestina.
Autor(a): angelosalvador