Sinopse: Felicidade Clandestina
FELICIDADE CLANDESTINA
Deixando escapar um suspiro satisfeito nos lábios, contemplei meu quarto de infância completamente vazio. Eu havia vivido ali por dezoito anos da minha vida, tinha saído pouquíssimas vezes de Recife, e agora estava prestes a me mudar para um lugar completamente diferente.
Sobre a bancada de estudos, uma das poucas coisas que eu não levaria, estava o exemplar de Reinações de Narizinho – muito mais gasto e velho que qualquer um dos outros livros, que agora estavam distribuídos aleatoriamente nas caixas dispostas pelo cômodo. Oh, eu amava aquele livro.
Adquiri-o numa situação extraordinária. Eu me lembrava bem da garota cruel que o possuíra antes de mim, ela era rechonchuda, de cabelos lanzudos acobreados, baixotinha e cruel, mas tinha um diferencial que pelo menos para mim a tornava a garota mais sortuda de Recife: o pai dela era dono de uma livraria.
O privilégio de se ter qualquer livro em primeira mão nunca deveria ser negado a uma jovem com intenso amor a leitura. Enquanto crescia, observei minhas amigas mergulharem em suas rotinas enfadonhas, e evidentemente eu me incluía no meio, porque rotinas enfadonhas estão diretamente ligadas ao ato de amadurecer. Diferenciando-me delas, porém, em casa eu contava com uma fonte sólida de escapes, que embora eu tivesse fisicamente deixado minha cidade natal um par de vezes, permitiam que por meio do mundo das ideias eu viajasse para lugares, cenários, contextos e tempos completamente diferentes do que eu estava inserida.
Reinações de Narizinho foi, muitas vezes, uma grande fonte de conforto e diversão para mim. Um pequeno tesouro adquirido graças a generosidade de uma mulher e os maus modos de sua filha – mesmo depois de anos, eu me peguei algumas vezes refletindo sobre seu comportamento, tentando justificar tamanha crueldade ao alimentar minhas esperanças diariamente com seu plano diabólico, para provavelmente se gozar na visão da garota franzina e loira em semblante fúnebre.
“E você fica com o livro por quanto tempo quiser” foi o que a mãe dela me disse, quando nos encontrou após tantos dias que se seguiram comigo batendo a sua porta e, repetidamente, saindo de mãos vazias. Naquele dia, porém, eu deixei sua casa com Reinações de Narizinho apertado contra meu peito, com as palavras da Dona Lourdes ainda ressoando alto em minha cabeça.
Eu tomei meu tempo com Reinações de Narizinho, em respeito as tardes de sol escaldante que eu atravessei Recife indo atrás deste livro. Eu saboreei cada capítulo, folheei, reli, cheirei e na minha concepção infantil da época ‘pelo tempo que eu quisesse’ poderia significar uma vida inteira, mas minha mãe era uma mulher sistemática e quando se fez um mês que eu estava com o livro em casa, ela me fez devolvê-lo.
Com o coração apertado, eu o levei até a casa da garota má. Eu ainda a via na escola todos os dias, mas decidi que era certo levar o livro até sua casa para que sua mãe soubesse que estava sendo devolvido. Por coincidência, foi justamente a Dona Lourdes que abriu a porta naquele dia, e não sua filha malvada.
“Oi Hermione” ela me saudou com olhos gentis e um grande sorriso “Você já terminou de ler o livro?”
Com um aceno de cabeça, eu confirmei, e estendi os braços com a cópia de Reinações de Narizinho. Em meu íntimo, eu esperava que ela o pegasse logo e acabasse com aquela tortura. Seria como tirar um curativo de um machucado, é melhor tirar de uma vez que aos poucos.
Mas Dona Lourdes tinha outros planos para aquela tarde. Ela me convidou para dentro, e foi a primeira vez que eu tinha entrado naquela casa enorme, serviu-me uma fatia generosa de bolo de laranja com um copo de suco.
“Está gostoso?” ela me perguntou, sentada a cadeira de frente para mim e com as mãos juntas sobre a mesa.
Dona Lourdes era rechonchuda, baixinha, de cabelos lanzudos acobreados. Muito semelhante a filha, claro, mas em seu rosto havia bondade e gentileza – talvez até um pouco de pena.
Mas atendendo a pergunta dela, eu mais uma vez acenei com a cabeça em afirmação. Havia sido ensinada a não conversar de boca cheia, entretanto, minha natureza reflexiva nunca me fez ser uma criança propensa a falar muito. Vez ou outra, gosto de me lembrar que saber ouvir é uma virtude para poucos, e nesse dia minha virtude foi testada.
Depois de me saciar com o bolo de laranja, fui levada ao quarto de estudos da Dona Lourdes e apresentada a sua estante fenomenal de livros. Foi dela que partiu a minha inspiração para ter o meu próprio nicho e a ambição de preencher cada prateleira com o maior número de títulos que eu conseguisse.
Naquele dia, Dona Lourdes fez uma coisa que é muito difícil para a maioria dos adultos: ela me deixou tocar cada um de seus preciosos livros, sem temer que uma criança estabanada os derrubasse ou sujasse suas páginas com dedos engordurados de bolo e saliva.
Eu folheei exemplar por exemplar, fiz pouquíssimas perguntas e saí de lá com a ligeira sensação que precisava ler todos os livros do mundo, para, posteriormente, pensar em publicar o meu.
Quando estava prestes a sair, a voz da Dona Lourdes me pegou desprevenida.
“Não se esqueça do seu livro, Hermione” ela disse, indicando o Reinações de Narizinho que tinha ficado sobre o aparador com o vaso de flores.
Eu olhei para ela e abri a boca para protestar, mas nenhum som se emitiu. ‘O silêncio é um amigo que nunca trai’, assim dizia Confúcio.
Lentamente, eu estiquei os braços novamente e tomei os livros em minhas mãos. Abracei-o fortemente contra o peito e saí da casa da Dona Lourdes com a sensação de que coisas extraordinárias acontecem a pessoas comuns. Naquele dia, eu voltei para casa pulando.
Quando cheguei em casa, reli Reinações de Narizinho como se fosse a primeira vez. Saboreei mais uma vez cada capítulo, estudei cada personagem e me embebedei com o universo fantástico de Monteiro Lobato. Eu nunca me esqueci de Dona Lourdes, mas o nome de sua filha malvada se perdeu em minha memória.
Dez anos depois, as páginas do livro não são mais brancas e cheirosas, são amarelas e marcadas. Refletem, claramente, uma obra bem aproveitada, que foi amada, diria até adorada, e isso é muito mais que algumas pessoas jamais vão experimentar.
Autor(a): ana2enzo